19 Março 2025
"A decepção e a consequente angústia surgiram quando as alteridades, as diferenças de gênero, idade, raça e etnia começaram a ser acolhidas como o achado ideológico e político com o poder de revigorar uma esquerda órfã da prática e do conceito de classe. No mesmo tempo, na trincheira cristã, desaparecia a herança de Medellín e a confiança no protagonismo dos pobres", escreve Flavio Lazzarin, padre italiano fidei donum que atua na Diocese de Coroatá, no Maranhão, e agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
O conflito, que ultimamente me angustiava, não era com aqueles que estavam do outro lado da trincheira, mas com os que pensava estivessem no mesmo lado. O enfrentamento dos que me acostumei a chamar de inimigos da vida, violentos e perseguidores dos pobres, fundamentava – ou, na melhor das hipóteses - contribuía à unidade dos que achavam ter feito a opção libertadoras pelos pobres, pelo bem, pela ética, pela verdade, pela beleza, pela Vida.
A confiança nos parceiros e nas parceiras não foi desmentida a partir das limitações que marcam todos os seres humanos. Em suma, a desilusão não surgia das dificuldades de convivência com temperamento e caracteres diferentes, nem da constatação das incoerências éticas, as nossas e as dos outros.
A decepção e a consequente angústia surgiram quando as alteridades, as diferenças de gênero, idade, raça e etnia começaram a ser acolhidas como o achado ideológico e político com o poder de revigorar uma esquerda órfã da prática e do conceito de classe. No mesmo tempo, na trincheira cristã, desaparecia a herança de Medellín e a confiança no protagonismo dos pobres.
E, a partir de várias e peremptórias afirmações do “lugar de fala”, a possibilidade de diálogo ficou frequentemente prejudicada.
Vejo que, salva a absoluta e indiscutível liberdade e legitimidade de se afirmar como povo, etnia e gênero, protagonistas do discurso e da luta, existe o perigo que a identidade, ao construir a multiplicidade, possa, em nome da própria diferença, anular qualquer determinação social comum, incluindo a agora limitadíssima categoria unitária de classe e - uma decisão que considero muito mais perigosamente – a inserção no processo de construção da universalidade.
De fato, como é possível construir uma alternativa política a partir de uma realidade social atomizada e fragmentada?
Como construir uma universalidade amorosa, desarmada e pacífica?
Como derrotar definitivamente o ódio e construir uma sinfonia universal, harmonia de diferenças irredutíveis, mas dialogantes?
Seria inaceitável, porém, ignorar que a atual insistência sobre as identidades de gênero e raça é fruto de processos históricos seculares em que a identidade branca, europeia e cristã, dominou, colonizou e submeteu as mulheres e os povos originários, os povos negros escravizados e, apesar de serem brancos, os povos judeus e ciganos.
Se deve, porém, forçosamente afirmar que a defesa da identidade é patrimônio ideológico da direita nazifascista e dos regimes autoritários, em que a identidade a ser defendida matando, exterminando e encarcerando nos campos de concentração é a ideologia absolutista de quem controla a máquina repressiva do Estado.
Monoteísmos, presunções universalistas, patriotismos, etnicismos nacionalismos, ideologias, traduzem, também na modernidade, os instintos mais animais do ser humano: o medo de quem não fala a minha língua e não tem a minha fé.
Uma vez que, na história recente, as trincheiras da esquerda foram canceladas e a presunção de representar o bem fragmentou-se em inúmeras e conflitivas posturas diante das violentas conjunturas da atualidade, imaginei que o Evangelho pudesse ser aquela trincheira em que não vingam ideologias e discursos, mas somente atitudes e profecias existenciais.
Me dei conta, porém, que, mais uma vez, cai na armadilha sedutora da trincheira, como se comunhão e comunidade fossem conjugáveis com um exército certamente unido e concorde, mas parado, numa inútil guerra de posição.
E, assim, fui obrigado a abandonar as metáforas guerreiras e as familiaridades ideológicas, para o simbolismo do caminho de uma comunidade de caminhantes. E a comunidade, a que caminha, “em saída”, se dá como “comunhão de solidões” (Von Balthasar), na sombra da Cruz vitoriosa de Jesus.
Hoje, em tempos de Jubileu, variamente equivocado, se diz: “Peregrinos da Esperança”. Um êxodo na insegurança, na precariedade, na incerteza, no risco, nas surpresas do caminho, que nos encontra dispostos a formular novas perguntas e a apontar novas possibilidades.
Neste caminho incerto e perigoso, nasce uma pergunta: a apropriação por parte dos progressistas da temática da diferença e da identidade poderia ser uma alternativa virtuosa às universalidades grega, latina, da cristandade, afirmações identitárias eurocêntricas, patológicas, que rejeitam a diversidade e promovem inimizade, guerra, colonialismos, patriarcado, sexismos e racismos?
Devemos renunciar a projetos que visam unidade, fraternidade e uma universalidade digna deste nome?
Ou devemos nos resignar à fragmentação, à divisão, à guerra?
A perspectiva identitária parece-me se configurar como uma renúncia a enfrentar os verdadeiros inimigos, que, cada vez mais, crescem e se fortalecem na atual conjuntura.
Assistimos novamente à tragédia da volta dos monoteísmos assassinos e genocidas e ao despreparo de quem poderia se opor à esta sombria estação da história.
Isto se dá em âmbito cristão, onde, em todo o ocidente, com o aval de intelectuais e instituições, amplos setores eclesiásticos se conectam com o populismo de extrema direita, repetindo a cumplicidade com as ditaduras empresariais-militares, que, ao longo de três décadas, semearam opressão e violência na Abya Ayala.
No contexto ocidental, o coquetel religião-extrema direita é característica de setores significativos da Igreja católica, das Igrejas protestantes históricas e das mais recentes Igrejas neopentecostalistas.
Umbanda, Candomblé e Espiritismo não tiveram um papel expressivo no apoio à ditadura empresarial-militar no Brasil e, apesar de uma inicial narrativa de reconhecimento de cunho nacionalista, foram de fato objeto de perseguição e repressão. E hoje, não parecem ter um papel ativo na elaboração ideológica da nova direita. Pelo contrário, emergem como aliados da retomada dos territórios e das ancestralidades nas insurgências indígenas, camponesas e quilombolas.
A nos limitarmos, porém, ao campo ocidental, para a anamnese e o diagnóstico do conúbio religião-extrema direita, ignoraríamos que a mesma mescla fundamentalista e violenta se dá também no Oriente. Penso na visceralmente ocidental teocracia sionista do estado de Israel e ao seu espelho dialético, a teocracia xiita do Irã.
Penso também as misturas teocráticas islâmicas de matriz sunita Al-Qaeda, Hamas, Fatah, os Talibãs no Afeganistão... e os xiitas de Hezbollah... os huthis xiitas, mas também sunitas, do noroeste do Iêmen, e os teóricos e milicianos da Jihad para aniquilar o Ocidente infiel e pervertido.
E não posso ignorar a redução da religião à política na Índia do partido Bharatiya Janata Party (BJP), do primeiro-ministro Narendra Modi, que promove um nacionalismo hindu, anti-islâmico e anticristão.
Mais grave, porém, com conotações repressivas, liberticidas e bélicas, é a aliança pan-russa entre a Ortodoxia da Terceira Roma e a ditadura putinista, em guerra – eles também – contra o Ocidente corrupto e pervertido.
Trágico também o conúbio entre Trump e setores significativos das Igrejas, incluindo também parte do eleitorado católico, tradicionalmente republicano.
Precisa sublinhar que a ideologia-teologia antiocidental islâmica ou pan-russa encontram aliados e cumplices em todos os movimentos e partidos da nova direita na Europa, nas “Américas” e na nossa Abya Ayala. Assistimos a um processo exponencial de regressão da racionalidade, junto com a mitificação do líder carismático, o ódio sistemático reservado ao inimigo e a contestação radical da cultura gestada após a Revolução Francesa, mas guardando uma obediência canina ao sistema capitalista.
Demonizam o ‘comunismo’, um fantoche por eles criado à sua imagem e semelhança e toda herança liberal, com o estado de direito e a democracia.
Os fundamentalistas estão presentes em todas as religiões e normalmente são aliados dos tradicionalistas. Ambos se refugiam atrás do antigo lema dos religiosos apoiadores das ditaduras: “Deus, Pátria, Família”, temperado com uma boa dose de supremacismo branco, de discriminação e perseguição de indígenas, negros, quilombolas, camponeses, favelados, migrantes, homoafetivos... Luta de classe, que se mostra eficaz e vitoriosa, alimentando desprezo e violência contra os pobres.
Lidamos com uma conjuntura que apresenta novidades até poucos anos atrás impensáveis: a direita tradicionalmente antijudaica, se recicla através do antissemitismo islâmico, enquanto apoia irrestritamente a política militarista de Israel. E no Brasil, esta direita é apoiada por amplos setores do pentecostalismo protestante, cujos delírios não têm explicação e parecem não ter ligação com a escatologia pregada por grupos restauracionistas norte-americanos, que apoiam Israel, esperando a batalha de Armagedom.
A conjuntura mais grave e preocupante, porém, é constituída pela importação de conflitos aparentemente insanáveis dentro de casa, crise, esta, precedida e acompanhada pela crise de popularidade e consenso do lulopetismo e pelo crescimento do consenso popular ao populismo de direita.
Onde existia familiaridade ideológica e certa harmonia construída enfrentando, critica e pacientemente, inevitáveis incompreensões e tenções, agora vingam os ultimatuns sem tréguas e armistícios e a radicalização da prática, que poderia continuar essencial e virtuosa, do “lugar de fala”.
Além de proporcionar fragmentação e divisões internas, a radicalização identitária, por ser mais enraizada nas classes médias urbanas e no ambiente universitário, contribui para o afastamento dos progressistas da base popular camponesa e urbana, que parece ter outras preocupações, com certeza ligadas a reprodução da vida, presa à urgências como emprego, renda e sobrevivência, terra, território e produção agrícola, mas, também – e talvez sobretudo - ao desejo de ser alguém, de se libertar da condição de “zé-ninguém”.
A pastoral da libertação das décadas passadas, com efeito, não propiciava somente a possibilidade da conquista da terra e de direitos, mas, no mesmo tempo, abria espaço para o protagonismo prático e teórico de homens e mulheres, que se libertavam da opressão e discriminação, e se reapropriavam da fala e da luta.
Além disto, nas questões morais ligadas a sexualidade e a família, apesar de estarem envolvidos no contexto da modernidade, os povos das periferias e do campo são caracterizados por outros valores, que poderíamos, impropriamente, caracterizar como conservadores e tradicionais. Lembro quando os anciãos camponeses definiam algo como “moderno”: significava que aquela coisa ou aquele fulano não prestavam mesmo.
Será que as recentes eleições presidenciais nos Estados Unidos nos deixam um recado importante? Tenho a impressão de que assistimos à certa derrota das pautas democráticas identitárias, também porque, dessa vez, Trump se elegeu com a contribuição significativa do voto de negros, latinos e asiáticos.
Será que “os pobres de direita” de Jessé de Souza, nos reservarão esta surpresa também nas eleições presidenciais do próximo ano?
No Brasil, ulterior complicador é a importação dos modelos identitários e das lógicas da guerra para a própria Igreja, hoje ameaçada por cismas, que refletem as polarizações dominantes nas atuais disputas geopolíticas.
Conjunturas em que os caminhantes, “os peregrinos da Esperança” podem se sentir acuados e impotentes, porque quando a violência atinge as relações com parentes, irmãs e irmãos, parceiros, camaradas e amigos, a palavra de Jesus nos adverte: “Não julgueis que vim trazer a paz à terra. Vim trazer não a paz, mas a espada. Eu vim trazer a divisão entre o filho e o pai, entre a filha e a mãe, entre a nora e a sogra, e os inimigos do homem serão as pessoas de sua própria casa.” (Mt 10, 34-36). É como se Jesus nos avisasse que processos de violência ‘familiar’ serão resolvidos com as armas da política tradicional, quer dizer, com violência, porque é isso que acontece desde sempre, desde a fundação do mundo.
A aparente reconciliação acontecerá, portanto, como sempre, através de decisões tomadas por quem tem o poder de decidir, que são, inevitavelmente, mais ou menos violentas e que, ao optar por uma parte em conflito, acabam eliminando a outra parte. Os sacrificadores supõem que possa inocentá-los o álibi de mãos não manchadas de sangue e da redução das vítimas ao mínimo possível, mas nunca poderão esconder a violência assassina de suas decisões.
Jesus nos diz que é improdutivo enfrentar esta lógica que governa o mundo com as armas tradicionais da política, ou seja, com a violência, que acaba nos acomunando especularmente aos violentos, mas chama-nos a reconhecer e denunciar o processo sacrificial e os sacrificadores e a optar para estar e lutar, sempre e junto com Ele, ao lado das vítimas.