19 Março 2025
"O livro é muito mais do que uma antologia de escritos únicos e extraordinários, é uma criação livre de um intelectual brilhante que, pela primeira vez, reúne textos de todas as épocas em torno de um tema fundamental, mas muitas vezes esquecido: a noiva mística", escreve o monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado em La Stampa, 15-03-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
“Beije-me ele com os beijos da sua boca; porque melhor é o teu amor do que o vinho”, é a abertura do Cântico dos Cânticos, mas também, idealmente, a abertura de toda canção de amor tanto mística quanto profana, tanto espiritual quanto erótica.
Expressa o desejo de um beijo, de muitos beijos. Um poeta judeu de origem russa, Salman Shneur (1887-1980), comenta: “Minha pomba, você sabe como nós, judeus, nos beijamos? Quando o coração não pode mais ser distinguido do coração do outro, quando peito contra peito nenhum de nós sabe qual dos dois respira, quando material e imaterial desaparecem e apenas sobra um único sopro, quando não existem mais palavras, mas apenas a linguagem dos olhos: esse é o beijo”.
O beijo é o rosto contra rosto, os olhos contra olhos, o estar diante do eu e do tu com as pupilas que se falam, porque nos observamos nas pupilas e elas se dilatam, palpitam. O beijo é o início da celebração do amor, é o désir d'ivresse, dizia Arhur Rimbaud, no qual o amado é a taça para a amada e vice-versa.
E com o beijo vem o abraço, as carícias: a mão se abre, estende os dedos e começa uma exploração. A mão se torna carícia: mais do que tocar, primeiro escuta, estremece e tenta ouvir o tremor do amante. Os beijos e as carícias são os prelúdios (prae-ludus: antes do jogo), de modo a adiar o gozo que é sempre final: a gratuidade do perder tempo, ao mesmo tempo jogo de mãos e lábios, ousadias, reticências, espanto, os dedos acariciando, lendo, escrevendo, cantando no corpo do amante. No jogo amoroso, aprende-se a dizer sim, amém à vida, à alegria, ao desejo, exercita-se a arcana disciplina do prazer.
Portanto, é impressionante constatar que por cerca de dois mil anos, tanto no judaísmo quanto no cristianismo, o Cântico dos Cânticos foi lido, comentado e interpretado apenas como um caso amoroso entre Deus e Israel, entre Cristo e a igreja, entre Deus e a alma. Foi somente em meados do século passado que se começou a encontrar nele o aspecto mais elementar, o literal, ou seja, entender que se trata de um livreto que fala do amor humano. Pouco a pouco, a interpretação alegórica e espiritual perde vigor, e hoje todos os exegetas concordam que a história ilustrada no Cântico é uma história de amor, nem mesmo conjugal, uma história de dois jovens apaixonados que se buscam em obediência ao amor, ao desejo que os habita.
Portanto, é preciso ouvir no Cântico dos Cânticos o amor humano e erótico, aquele amor que é lei em si mesmo, aquele amor que sabe quando despertar, como arder e como se tornar real, aquele amor que é uma chama divina, uma sarça ardente, como está escrito no final do livro. São Jerônimo, considerando o Cântico como um poema erótico, escrevia que deveria ser lido depois dos sessenta anos, só então é possível praticar a sua leitura como poema de amor humano!
Giulio Busi passou há pouco dos sessenta anos e talvez seja por essa razão, mas certamente não só por isso, que a partir do Cântico dos cânticos concebeu para “I milleni” da Einaudi La sposa mistica, Corpi terreni, erotismo divino dal "Cantico dei Cantici" a Paul Celan.
La sposa mistica. Corpi terreni, erotismo divino. Dal "Cantico dei cantici" a Paul Celan, de Giulio Busi (Foto: Divulgação)
“’Beije-me com os beijos de sua boca!’. A partir disso, dessa pretensão - escreve Busi na introdução - impetuosa e peremptória, inicia-se o nosso namoro. Todo o livro se inspira na exortação, escrita em hebraico há mais de dois mil anos, repetida nas sinagogas e nos claustros, estudada por exegetas, revirada por cabalistas, sonhada por poetas. A tradição ocidental da noiva mística, tão extensa, variegada e luxuriante, não existiria sem o paradoxo do Cântico dos Cânticos”.
O livro é muito mais do que uma antologia de escritos únicos e extraordinários, é uma criação livre de um intelectual brilhante que, pela primeira vez, reúne textos de todas as épocas em torno de um tema fundamental, mas muitas vezes esquecido: a noiva mística. O simbolismo da noiva mística é um fenômeno literário com mais de quatro mil anos de história. Os mais de duzentos textos e quase o mesmo número de autores reunidos por Busi - valorizados pelas gravuras de Hilma af Klint - variam geograficamente do Egito Antigo à Mesopotâmia, da China à Índia, da tradição judaica bíblica e rabínica à tradição árabe com o Alcorão e os sufis, à tradição cristã com os evangelhos, os padres da igreja e os místicos, até chegar à literatura europeia com autores gregos e latinos, com escritores, poetas e romancistas medievais, modernos e contemporâneos.
E eis então a Matriz divina do mito semítico e o poema de Paul Celan para a mãe, o murmúrio do arcanjo Gabriel de João Damasceno e a frase de Charles Baudelaire “Tu que eu teria amado, ó tu que o adivinhaste!”, a alma Afrodite de Plotino e os antigos textos bizantinos coletados por Cristina Campo.
E ainda o Talmud, Apuleio, Kabir, Angela de Foligno, Enlil e Ninlil, Elredo de Rievaulx, Sefer ha-zohar, Alda Merini, Italo Calvino, Arthur Rimbaud, Franz Kafka e muitos outros que se sucedem, não em asséptica ordem cronológica, mas em uma precisa sequência do que a noiva mística é e representa.
Nesses inesgotáveis escritos, mundos se encontram, universos falam, embora, às vezes, permaneça aquela irredutível distância que é um reflexo da experiência de vida da noiva mística que une e, ao mesmo tempo, divide mundos distantes e irreconciliáveis. O mundo terreno e o mundo divino no desejo dos dois amantes muitas vezes parecem incapazes de se comunicar entre si, porque se trata de amor entre dois cosmos, duas esferas do ser. Mas nada nem ninguém impede que os amantes se desejem, se busquem, se encontrem e se amem.
A obra de Giulio Busi me ensinou que falar sobre o amor é uma arte. Todo mundo fala sobre o amor; no tempo em que vivemos - que só os tolos acreditam ser dominado por uma espécie de pansexualismo - o amor é contado, ostentado, mostrado, mas pouco vivenciado. Se fosse realmente vivenciado, não haveria tanta literatura nem seria o caso de mostrar o que é constantemente proposto pela mídia de massa. Não é verdade que existe um pansexualismo dominante, mas sim que hoje há uma senescência precoce dos sentidos, há uma impotência generalizada cada vez mais de tipo sexual, mas justamente porque a esse amor é difícil acessar com autenticidade e é difícil falar dele com sinceridade.
Ciente de que qualquer definição de amor é temerária, ainda assim assumo a definição que Busi dá do amor de “suas” noivas: “E como o amor é, por sua própria natureza, um ‘evento’ e precisa queimar para existir, o ensinamento das noivas, contido nestas páginas, deverá ser lido como um manual de erotismo. Um manual corporal, transgressor e, esperamos, misticamente prático”.
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