10 Março 2025
Especialista alerta para necessidade de prevenção do crime e proteção das vítimas.
A reportagem é de Bettina Gehm, publicada por Sul21, 09-03-2025.
Neste domingo (9), a lei que prevê o feminicídio como qualificador do crime de homicídio completa dez anos. Apesar da normativa ter ampliado a visibilidade da violência de gênero e aumentando a pena para agressores, as mulheres continuam sendo mortas – falta protegê-las dos assassinos e prevenir que o crime aconteça, segundo especialista ouvida pelo Sul21. Somente no Rio Grande do Sul, foram praticados 935 feminicídios entre 2015 e 2024.
“Embora tenhamos tido avanços, os números não mostram arrefecimento desse fenômeno”, pontua a professora Rochele Fellini Fachinetto, coordenadora do Grupo de Pesquisa Violência e Cidadania da UFRGS. “Tanto porque há um número expressivo de mortes de mulheres no brasil – os índices de homicídios também são altos – e porque há uma qualificação do registro de feminicídios”.
O número de feminicídios registrados no estado reduziu em 27% entre 2015 e 2024, mas os números seguem altos. A média é de 94 feminicídios por ano no Rio Grande do Sul. “Isso não significa que as mulheres estejam mais protegidas”, alerta Rochele. “Tem a ver com os registos. A pandemia também interferiu muito na dinâmica da violência doméstica”.
O ano com mais mortes foi 2018, quando 116 mulheres foram assassinadas. Quanto às tentativas de feminicídio, foram 2.918 registradas em dez anos – 359 somente em 2019, o ano com maior número de registros.
Rochele explica que a própria Lei Maria da Penha, sancionada em 2006, prevê três eixos para o enfrentamento à violência doméstica: prevenção, proteção e punição. No entanto, os serviços oferecidos às vítimas estão mais capilarizados nas capitais e o foco tem sido a punição dos agressores.
“Mas, mediante uma situação de agressão, a mulher precisa de um lugar que assegure que a vida dela não esteja em risco. Temos muito mais delegacias do que casas abrigo no país, e elas se concentram nas capitais. Ainda há muitas lacunas nos eixos da proteção e prevenção”, resume a professora.
As casas de abrigo para mulheres no estado têm o endereço mantido em sigilo, mas os Centros de Referência que prestam atendimento às vítimas de violência estão situados em Porto Alegre e mais 27 municípios. As Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher estão presentes em 22 municípios, além da Capital.
“Tivemos avanços com tipos de denúncia e formas de pedir ajuda, mas eles estão concentrados nessa malha cuja porta de entrada é a delegacia. O que fica mais visível para a sociedade é o desfecho fatal, que na verdade é um conjunto de violências que culmina na morte. Temos hoje um cenário de muito mais visibilidade, principalmente de dados”, afirma Rochele.
Porto Alegre figura em primeiro lugar quanto ao número absoluto de feminicídios, tendo registrado 99 crimes dessa natureza em dez anos. Em seguida vêm Caxias do Sul (45) e Pelotas (27). No ano de 2018, a Capital registrou 22 feminicídios.
Rochele atenta, no entanto, que seria necessário analisar o número proporcionalmente em relação à população dos municípios e as demais taxas de violência. “Alguns estudos mostram que, quanto mais serviços de atendimento e acolhimento, varas especializadas, delegacias – mas também serviços de saúde, educação e saneamento básico –, a tendência é que os índices de violência diminuam”, pondera a professora.
A Secretaria de Segurança Pública informa, junto aos dados, que nos casos de feminicídio tentado observou-se que fatores como as ações de incentivo para que as vítimas comuniquem as violências sofridas, a inclusão do tema em cursos de formação e treinamentos, a atenção no atendimento às vítimas e a instalação de mais delegacias de homicídios na Capital, aliadas à criação de serviços como a Patrulhas Maria da Penha acabaram por motivar enquadramentos mais rigorosos.
Há dez anos, o crime de feminicídio “ganhou nome” num contexto em que os acusados de homicídio de mulheres eram absolvidos ao usar a legítima defesa da honra como tese defensiva. Essa estratégia de defesa, que atribui o motivo do crime ao comportamento da vítima, foi invalidada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) somente em 2023.
“O que vai mudando é a visibilidade em torno do feminicídio e o entendimento de que esse é um caminho para o enfrentamento da violência”, afirma Rochele. “O cenário de invisibilidade no sistema de justiça e o recurso da legítima defesa da honra eram recorrentes, o que deixava a sensação de impunidade e de naturalização da violência”.
Em outubro de 2024, a Lei 14.994 passou a prever o feminicídio como um crime autônomo, ampliando suas penas mínima e máxima.
“O que temos de nos perguntar é em que medida isso tem um real impacto na redução das violências”, salienta a professora. “Essa lei faz parte do pacote anti feminicídio, que aumenta a pena para outros tantos crimes em contexto de violência doméstica. Essas medidas, muitas vezes, não vêm acompanhadas de um diagnóstico do que seriam iniciativas mais efetivas para a redução do crime”.
Conforme Rochele, o feminicídio é um “termo em disputa”. Algumas estudiosas consideram que toda morte de mulher é ligada ao viés de gênero, por exemplo. “Envolve morte no parto, na cirurgia plástica, porque tem a ver com uma submissão a um determinado padrão estético que é ditado por uma cultura patriarcal da objetificação do corpo da mulher”, afirma.
Na América Latina, essa dimensão do feminicídio está vinculada aos casos de Ciudad Juárez. O município mexicano registrou, desde 1993, uma onda de assassinatos brutais de mulheres. “Embora não fossem derivados de relações conjugais, os crimes também eram considerados feminicídios e pautaram a criminalização dessa violência no México”, pontua Rochele.
Já no Brasil, o judiciário recebe o feminicídio como um crime normalmente atrelado à violência doméstica. Rochele explica que muito do que se entende como feminicídio é decorrente da relação conjugal, embora nem toda morte de mulher por questões de gênero se situe num relacionamento. “Um exemplo é a morte de profissionais do sexo, que não vai ser enquadrada no feminicídio porque não se entende que ela está numa relação conjugal heterossexual”, diz.