07 Fevereiro 2025
Caso de relacionamento abusivo que ganhou as redes escancara como o machismo dificulta que os próprios homens se posicionem
A reportagem é de Bettina Gehm, publicada por Sul21, 04-02-2025.
“Nunca vi um grupo de homens se unindo para algo positivo. Parece que, em sua maioria, os relatos sobre qualquer forma de organização entre eles giram em torno de falar mal de mulheres, cometer atrocidades ou violar direitos humanos”. O desabafo é de uma usuária do X (antigo Twitter) após vir à tona, em um episódio do Rádio Novelo Apresenta, o relacionamento abusivo do editor André Conti com a jornalista Vanessa Bárbara. Em 2011, ele mantinha um grupo de e-mails com outros homens no qual compartilhavam, segundo o relato, informações íntimas de suas parceiras, encobriam a traição de Conti e faziam comentários misóginos.
O caso viralizou nas redes sociais em janeiro e, desde então, fomentou reflexões sobre ambientes masculinos que perpetuam comportamentos machistas. A maioria desses debates, no entanto, ocorre entre mulheres – são elas que exploram a inesgotável discussão sobre por que os homens se voltam com ódio a tudo que é feminino, mesmo dizendo amar mulheres.
Por isso, o Sul21 ouviu a perspectiva de dois homens sobre o tema: o professor da UFRGS Fernando Seffner, que pesquisa gênero e sexualidade, e o coordenador de uma roda de conversa masculina que debate iniquidade de gênero, Marcos Conte. Eles falaram sobre ambientes onde os homens, ao mesmo tempo em que trabalham para proteger uns aos outros das consequências de comportamentos machistas, ridicularizam aqueles que se mostram vulneráveis.
Atualmente coordenado por Marcos, o grupo Desencaixados foi criado em Porto Alegre no ano de 2019 – instigado por uma mulher – e inspirado no projeto Memoh, do Rio de Janeiro. Marcos afirma que o caso de Vanessa Bárbara foi minimamente comentado no Whatsapp entre os participantes do grupo, mas que nenhum outro amigo homem tocou no assunto.
“Esse é um não-tema para a maior parte dos homens, enquanto as mulheres estavam discutindo sobre isso”, pondera Marcos. “Tem mais a ver com uma postura de proteção. Acho que todos os homens sabem que eles têm ‘teto de vidro’ – que em algum momento já participaram desses grupos, sejam eles mais ou menos misóginos. Também há um entendimento de que isso é uma coisa para as mulheres resolverem”.
Marcos vê a roda de conversa que ele coordena como uma “reação ao feminismo”: “as mulheres – as companheiras, as filhas, as amigas, todas avançaram na sua percepção sobre relações de gênero. Isso aparece como um desafio para os homens”, diz.
Muitas das preocupações levadas à roda de conversa dizem respeito ao cotidiano e como os participantes lidam com as mulheres, sejam elas esposas, familiares ou colegas de trabalho. No curto prazo, Marcos explica, o intuito é beneficiar as relações que os homens vivem com outras pessoas e debater a necessidade de competição que eles estabelecem com frequência entre si.
“Um resultado menos imediato tem a ver com o reconhecimento dos homens de que eles também têm gênero. Eles se enxergam muito como o ser humano padrão, o indivíduo, e raramente enxergam que também têm gênero e sexualidade. Mas os homens não são o normal da sociedade, a base de qualquer comparação”, explica Marcos. “Essa discussão afeta tudo, desde nossas relações cotidianas até a maneira como criamos serviços de saúde, como desenhamos carros, como fazemos políticas públicas. As expectativas de gênero definitivamente beneficiam os homens, mas ao mesmo tempo estabelecem uma série de padrões que são danosos a eles”.
Segundo Fernando, professor da UFRGS, o mecanismo social que produz homens machistas é muito difícil de ser desmontado. Essa realidade é observada especialmente no caso de Vanessa Bárbara, em que seu companheiro integrava uma espécie de “elite intelectual”, composta por jornalistas e escritores. O próprio André Conti era editor e sócio-fundador da editora Todavia.
“Os dados mostram que, conforme há um incremento na taxa de escolaridade, há também uma melhor compreensão das relações de equidade entre os gêneros. Não podemos afirmar que pessoas que estudam mais são menos machistas do que as outras”, salienta Fernando. “De qualquer maneira, a ampliação da escolaridade, do acesso a bens culturais, ajuda a produzir homens menos machistas e mulheres mais feministas. Mas o episódio que aconteceu mostra que essa não é uma relação direta”, afirma.
Para o professor, o que aconteceu com Vanessa Bárbara tem a ver com uma assimetria de classes: “O homem tinha muito mais dinheiro e posição social do que a mulher. Por isso, tende a enxergar a mulher como propriedade. Os homens enxergam a mulher como objeto de alegoria de consumo”.
Apesar de envolver homens respeitados no meio acadêmico e cultural, fazendo com que alguns ouvintes do podcast se mostrassem decepcionados com a história compartilhada por Vanessa Bárbara, o comportamento deles não chega a ser surpreendente. “O horror é perceber que, no fundo, estamos sempre esperando a hora que vai aparecer uma denúncia. O mais trágico é saber que a gente não se surpreende”, afirma o professor Fernando.
Para além da questão de gênero, Fernando acredita que o episódio tem a ver com a forma como as pessoas se comportam “nos grupos onde não há vigilância social do outro grupo de quem se vai falar mal”. Por isso, o professor defende que haja equilíbrio de gênero em todos os ambientes – escola, polícia, judiciário, laboratórios de pesquisa. “O homem e a mulher têm que ir para um ambiente onde há 50% de cada gênero. Isso melhora as relações sociais”.
“Somos criados por mulheres, mas os homens tomam para si essa capacidade de transformar meninos em homens, e esse processo está completamente embebido em misoginia e homofobia”, resume Marcos. O processo começa na infância, incutindo na criança noções do que meninos e meninas podem ou não fazer. “Os meninos sempre podem fazer mais do que é considerado socialmente valorizado. As meninas podem desenvolver coisas que são muito legais, mas que não são valorizadas socialmente, como desenvolver amizades profundas. Nossas amizades são baseadas em contar vantagem, em criar mais fraternidades do que amizades”, afirma.
Marcos cita a pesquisadora Valeska Zanello, professora no Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de Brasília (UnB), para falar sobreo papel das confrarias masculinas: “Esses espaços masculinos definem muito os comportamentos que os homens têm dentro e fora de casa. O que aparece no podcast da Rádio Novelo não deixa de ser uma confraria, um espaço que só homens participam e que acaba servindo para desumanizar mulheres. Esses espaços estão muito presentes na nossa criação como homens, e envolvem uma exclusão não só das mulheres, mas de tudo que é considerado feminino – e inferior”.
Homens que se mostram vulneráveis, por exemplo, são vítimas dessa exclusão. Marcos explica que isso faz com que eles levem muito tempo para tratar da saúde mental e física, e isso também acaba prejudicando as mulheres. “É muito comum que os homens deixem para ir ao médico quando já não suportam mais [alguma condição de saúde]. Daí já é tarde demais, demanda cuidados demais, e quem vai cuidar são as mulheres. O descuido dos homens com eles próprios, além de prejudicar a vida deles, recai sobre as mulheres”.
Outro pretexto para que os homens sejam ridicularizados nessas “confrarias” é quando eles discordam dos demais, ou eventualmente se posicionam contra algum comportamento misógino que o grupo esteja perpetuando.
“Discordar do grupo, se posicionar ao lado das mulheres, faz o homem passar por um processo que não é muito diferente do qual as mulheres sofrem com os homens. A dificuldade de se posicionar num grupo como esse é que se acaba virando um pouco parte das vítimas”, salienta Marcos.
Nesse tipo de grupo, os assuntos normalmente são limitados, explica Marcos, a futebol, trabalho e mulheres. Esse último, sempre no sentido de comprovar a masculinidade. “É quase como uma caça, no sentido de mostrar quem se conseguiu abater. Os homens não se permitem entrar em temas pessoais. As conversas mais profundas são, na maior parte do tempo, inviabilizadas nesses grupos”.
Essa impossibilidade dos homens de se abrir uns com os outros e de discordar dos demais leva ao que Marcos chama de “epidemia de solidão masculina”: muitos dos participantes da roda de conversa que ele coordena vão ao grupo porque se sentem sozinhos. “Não poque eles necessariamente não tenham amigos”, salienta Marcos, “mas porque, por uma série de razões, eles mudaram alguma coisa na forma de viver e entender as coisas, começaram a se repensar – seja por conta própria ou, na maior parte das vezes, instigados por companheiras – e não têm com quem conversar sobre isso”.
O grupo Desencaixados, ao antagonizar com as comunidades red pill que se espalham pela internet, abre espaço para as mais variadas discussões. Marcos explica que as conversas partem de experiências vividas pelos homens. “Sempre vêm à tona temas relativos à sexualidade, saúde mental e cuidado da saúde. Muitos entram no grupo porque estão enfrentando a paternidade pela primeira vez, procurando saber o que se ensina para um filho e como ser um pai melhor do que o que eles tiveram”.