20 Janeiro 2025
"Ao ser humano é dada a capacidade de discernimento, atributo que lhe permite o exercício da liberdade. Há, contudo, quem prefira abdicar desse direito de optar livremente. Prefere deixar que as decisões sejam tomadas pelo líder, guru ou mentor do grupo social com o qual a pessoa se identifica", escreve Frei Betto, escritor, autor do romance sobre a Amazônia “Tom vermelho do verde” (Rocco), entre outros livros.
Uma observação de Voltaire (1694-1778) nos ajuda a entender por que tantas pessoas emitem ofensas nas redes digitais e, assim, revelam mais a respeito do próprio caráter do que do perfil de quem é desrespeitado. “Ninguém se envergonha do que faz em conjunto”, escreveu em “Deus e os homens”.
Isso explica a insanidade dos linchamentos virtuais e a violência gerada pelo preconceito, como bem demonstra o filme “Infiltrado na Klan”, de Spike Lee, vencedor do Oscar de melhor roteiro adaptado em 2019.
Muitos de nós jamais ofenderíamos pessoalmente um interlocutor com injúrias e palavrões. No entanto, há quem seja capaz de replicar nas redes digitais ofensas a inúmeras pessoas, sem sequer se dar o trabalho de apurar se a informação procede.
Ao ser humano é dada a capacidade de discernimento, atributo que lhe permite o exercício da liberdade. Há, contudo, quem prefira abdicar desse direito de optar livremente. Prefere deixar que as decisões sejam tomadas pelo líder, guru ou mentor do grupo social com o qual a pessoa se identifica. Opta pela “servidão voluntária”, na expressão de La Boétie (1530-1563). É o que antropólogos chamam de “macho alfa”, tendência inata no ser humano de ser comandado por alguém que julga ter mais poder que ele. E todos que não comungam o credo do líder são considerados inimigos, hereges ou traidores, e devem ser varridos da face da Terra.
Essa submissão de si à vontade do outro ocorre em partidos políticos, empresas, associações e, sobretudo, em segmentos religiosos. No caso de Igrejas, a dominação ideológica é legitimada pela suposta vontade de Deus ecoada pela voz do pastor ou do padre. Assim, difunde-se uma perigosa teodiceia pela qual tudo se explica pela lógica divina, ainda que a humana não consiga digeri-la.
Se há uma catástrofe como a de Brumadinho, se estou desempregado, se perco um filho atingido por bala “perdida”, não devo protestar ou lamentar. Deus tinha algo em mente para permitir que tais desgraças acontecessem. Assim a teodiceia se transforma em panaceia.
É o recurso da apatia como anestesia da consciência. O exemplo paradigmático é o extermínio das vítimas do nazismo. A ordem genocida não saía da cabeça de um tresloucado, e sim de quem tinha plena (e tranquila) consciência do que fazia, como demonstrou Hannah Arendt.
A ordem inicial se desdobrava em sequência. Um dirigia o caminhão até o alojamento dos presos; outro os encaminhava ao veículo; outro ordenava se despirem e distribuía toalhas e sabão; outro apertava o botão vermelho; e, por fim, um grupo retirava os corpos da câmara de gás sem se preocupar por que foram mortos. Processo confirmado pela descoberta, em 1980, dos relatos escritos pelo grego Marcel Nadjari e guardados no interior de uma garrafa térmica enterrada no solo de Auschwitz, onde ele, prisioneiro, fazia parte do Sonderkommando, a equipe que retirava os cadáveres das câmaras de gás.
Isso se repete hoje em instituições que controlam o mercado financeiro mundial, como o FMI e o Banco Mundial. Ao propor ajustes fiscais, austeridade, teto de gastos a países periféricos, seus oráculos não são movidos por um sentimento de maldade com povos que verão agravada a situação de pobreza. Seguem a lógica do sistema: esses países tomaram dinheiro emprestado de credores nacionais e internacionais e, agora, precisam honrar suas dívidas. Ainda que isso signifique aumento da mortalidade infantil e do desemprego.
Eis a lógica do poder, que nem sempre leva em conta os direitos dos subalternos. Isso vale para os casos de feminicídio, nos quais o homem agride a mulher; dos neonazistas que odeiam negros e homossexuais; dos internautas que vociferaram porque a Justiça permitiu que Lula, prisioneiro, comparecesse ao sepultamento do neto.
Agora as bolhas nas redes digitais funcionam como aldeias virtuais nas quais o usuário se abriga e se identifica com o líder. Ao abdicar de pensar, adquire uma identificação epistêmica que lhe imprime segurança emocional, como a criança de mãos dadas com o pai ao atravessar a rua.
Passar da consciência ingênua à consciência crítica, como assinala Paulo Freire, é um desafio pedagógico de todos nós que ainda nos pautamos por utopias libertárias.