30 Outubro 2024
Desde Getúlio, a relação do Brasil com o Fundo alternou subordinação e conflito. Lula 1 alcançou certa independência. Agora, ministro mostra-se submisso diante das orientações da instituição que sempre levaram o Sul a privatizações e desmonte de direitos.
O artigo é de Paulo Kliass, doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal, publicado por Outras Palavras, 29-10-2024.
As relações econômicas e financeiras formais entre o Brasil e o Fundo Monetário Internacional (FMI) sempre foram marcadas por algum grau de conflito e tensão. Afinal, apesar da motivação das negociações ser o ingresso de recursos externos para auxiliar a situação do balanço de pagamentos de nosso país, em geral os governos apresentavam divergência com relação às condições impostas pelas diferentes equipes do Fundo.
A primeira operação ocorreu em 1954, com a assinatura de um empréstimo para o governo presidido por Getúlio Vargas. Tratava-se de um aval concedido pelo FMI a um empréstimo, no valor de US$ 300 milhões, oferecido pelo Eximbank dos Estados Unidos ao governo brasileiro. Porém, cinco anos depois, em 1959, Juscelino Kubitschek rompe o acordo com a instituição multilateral em função dos compromissos assumidos em seu Plano de Metas. Tendo em vista a necessidade de promover uma flexibilização no rigor fiscal imposto pelo FMI, o presidente decide sair da austeridade para conseguir espaço orçamentário para projetos como a construção da nova capital em Brasília e outras medidas envolvendo despesas públicas elevadas, além de investimento estatal direto.
A relação só voltaria a se normalizar após o golpe militar de 1964 e a consequente implementação de uma política econômica de natureza ortodoxa e conservadora. Entre 1965 e 1972 são assinados e renovados anualmente acordos classificados como “stand by”, cuja intenção era auxiliar em eventuais problemas de balanço de pagamentos. No entanto, como os governos da ditadura cívico-militar ofereciam benesses e atratividade ao capital internacional, tais acordos operavam mais como uma garantia de expectativas, uma vez que o fluxo de recursos externos não parava de crescer no período.
A situação muda de figura a partir do final da década de 1970 com a crise do petróleo na esfera internacional. Logo na sequência tem início uma fase de grandes dificuldades nas contas externas dos países do chamado Terceiro Mundo – a chamada crise da dívida. Em 1982, durante a gestão de Delfim Neto como o superministro da área econômica do último governo dos generais, o Brasil assina um acordo com o Fundo para assegurar o ingresso de recursos externos para cumprir as obrigações com os credores. Delfim teria assinado seis cartas de intenção com o organismo e nunca cumpriu com as cláusulas ali constantes. Foram diversos anos de dificuldades em honrar os compromissos constantes nas cláusulas dos títulos de endividamento. É desta época a frase que ficou famosa proferida pelo ministro, quando afirmou que “dívida pública não se paga, dívida se rola”.
Com o início da transição política para superar a fase ditatorial, o governo Sarney promove algumas medidas importantes na área econômica. Dentre elas estava a formalização da moratória da dívida externa em 1987. Na sequência, com a eleição de Collor de Mello para a Presidência da República, as sucessivas equipes de economia buscam um acordo com o FMI entre 1990 e 1992, mas não obtêm resultado. Com o fracasso de tais negociações, a situação só volta a se “normalizar” no final do primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso (FHC). O ministro da Fazenda Pedro Malan logra assinar um acordo com o Fundo em 1998, por meio do qual o Brasil recebe um total de US$ 41,5 bilhões.
O problema são as contrapartidas impostas pelo Fundo. Como sempre, trata-se da exigência de implementação das orientações previstas no Consenso de Washington, tais como a privatização de empresas estatais, a liberalização geral da economia e a imposição de regras rígidas de austeridade fiscal. Boa parte de tais iniciativas já estavam em curso desde a posse de Collor de Mello em 1990, mas FHC acelera em 1998 a venda do sistema público de telecomunicações e de energia elétrica. Além disso, o seu governo encaminha um projeto de lei ao Congresso Nacional que se converte na Lei de Responsabilidade Fiscal, a Lei Complementar nº 101 de 2000.
Com a posse de Lula em 2003, houve uma melhoria sensível nas contas externas brasileiras. Com isso, em 2005, o País quitou sua dívida junto ao Fundo e em 2009 avançou ainda mais, comprando U$10 bi em bônus da instituição e tornando-se, pela primeira vez na História, credor do FMI. Apesar da falta de exigência formal de uma política econômica seguindo as regras da ortodoxia conservadora, a duplinha Antonio Palocci no Ministério da Fazenda e Henrique Meirelles no Banco Central (BC) mantiveram a essência do austericídio, com rigor fiscal de índices de superávit primário até então inéditos e taxas de juros também rolando na estratosfera.
Durante os 14 anos em que o Partido dos Trabalhadores esteve no governo federal, a presença do FMI sempre passou ao largo do debate e da subserviência explícita ao organismo. A existência de um estoque significativo de reservas cambiais e a manutenção de uma recorrente folga na Balança Comercial deixaram para um segundo plano a necessidade de eventual ajuda para solucionar eventuais problemas nas contas externas. Em 2003, elas estavam em US$ 39 bi. Em 2007 superam a marca dos US$ 100 bi. Em 2008, atingem US$ 200 bi. Em 2011, as reservas atingem e superam os US$ 300 bi. Atualmente estão na faixa de US$ 370 bi.
Ocorre que o “golpeachment” praticado contra Dilma Rousseff e a posterior eleição de Bolsonaro em 2018 institucionalizaram o conservadorismo na política econômica de forma escancarada. Sem nenhuma pressão formal do FMI, os governos recuperaram a pauta da privatização das estatais, da redução do Estado à sua dimensão mínima e do aprofundamento da pauta da austeridade fiscal.
No entanto, as esperanças depositadas na eleição de Lula para um terceiro mandato em 2022 começaram a se verem frustradas com a indicação de Fernando Haddad para o Ministério da Fazenda. O que se assistiu desde então foi a retomada da agenda conservadora de austeridade, com a troca do Teto de Gastos de Temer pelo Novo Arcabouço Fiscal (NAF). Com isso, manteve-se a essência da estratégia de redução do peso do Estado na economia e a preparação para que parte dos serviços públicos, das políticas públicas e da infraestrutura sejam assumidos pelo capital privado.
Nesse contexto de aproximação com os interesses do financismo local e global, Fernando Haddad acaba por incorporar de forma plena a pauta do povo da finança. A manutenção da austeridade fiscal como ponto essencial da política econômica termina por comprometer toda a capacidade de recuperação do protagonismo do Estado. O ministro da Fazenda busca se apresentar como representante do bom mocismo junto aos representantes do financismo e se concentra em obter bons resultados fiscais. Isso se concretiza, por exemplo, na obsessão em zerar o déficit fiscal primário em 2024.
Mas o aspecto recente mais impressionante foi a aceitação e a concordância passiva de Haddad com as orientações do FMI. O Fundo apresentou um novo relatório a respeito da situação da economia brasileira e realizou algumas projeções para os próximos períodos. Como era de se esperar, as conclusões apontam para uma suposta “explosão” da dívida pública brasileira. Esse é um dos principais argumentos em favor de um endurecimento ainda maior no controle dos gastos governamentais.
O documento do FMI faz coro às manifestações dos escribas do sistema financeiro nos grandes meios de comunicação: o governo estaria sendo conivente com o retorno ao espírito da “gastança generalizada”, uma vez que ele não se compromete seriamente com o rigor necessário na condução da política fiscal. Haddad assume esse sentimento de culpa e declara:
(…) “Estamos agora tendo que repensar essa estratégia para fortalecer o arcabouço fiscal. Mas do ponto de vista fiscal, eu penso que o fortalecimento do arcabouço fiscal é o remédio mais adequado para o momento que estamos vivendo” (…)
Além disso, o ministro avança em suas afirmações, cedendo às pressões para aprofundar ainda mais o extremismo fiscal. Indagado a respeito da suposta incapacidade em atingir as metas este ano e nos próximos exercícios, ele deixa aberta possibilidade de um maior rigor nas regras previstas atualmente no NAF. O dispositivo que se converteu na Lei Complementar 200 estabelece a obrigatoriedade de que as despesas só possam crescer a 70% do ritmo de elevação das receitas. Como existem algumas garantias constitucionais para saúde e educação, além do compromisso de Lula com a valorização do salário mínimo acima da inflação, é possível que as metas austerizadas não sejam efetivamente cumpridas. Mas o ministro, ao invés de defender a maioria da sociedade brasileira contra os intentos do financismo, termina por concordar com o diagnóstico conservador e sugere um aprofundamento ainda mais severo dos mecanismos de contenção. Segundo ele, o diferencial entre despesas e receitas poderia ser ainda mais elevado. Uma loucura!
(…) “é necessário manter os gastos entre 50% e 70% da receita para retomar a uma posição de equilíbrio” (…)
Se Lula quiser cumprir efetivamente com suas promessas de campanha e com as exigências de um país que precisa romper o círculo vicioso da pobreza e da desigualdade, é fundamental sair da camisa de força imposta pela austeridade fiscal. Não faz sentido um governo presidido pelo Partido dos Trabalhadores somar esforços junto ao FMI para completar a imposição da pauta neoliberal em nossas terras.
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Haddad e o FMI. Artigo de Paulo Kliass - Instituto Humanitas Unisinos - IHU