Bach: uma cantata para o início do Advento

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03 Dezembro 2024

"A Sagrada Escritura está naturalmente muito presente nos textos das cantatas de Bach, tanto na forma de citações explícitas, como em paráfrases, e em elaborações poéticas livres, especialmente nas árias e duetos", explica Chiara Bertoglio musicista, musicóloga e teóloga na entrevista a seguir. 

"Pela beleza que encanta. Pela alegria que você sente. Pelo desejo de ser um com Cristo e em Cristo, um desejo que se realiza e se nutre na participação eucarística. Quanto mais somos um com Cristo e em Cristo – quanto mais vivemos a união mística com Ele – mais nos tornamos humanos, à maneira de Cristo", convida a pesquisadora ao sugerir ao leitores a música de Bach para este tempo do Advento. "Em Cristo estamos mais presentes e vivos, participando humanamente das coisas deste mundo", destaca.

A entrevista é de Giordano Cavallari, publicada por Settimana News, 01-12-2024.

Eis a entrevista.

Querida Chiara, por que, entre as cantatas de Bach que me propus apresentar, você escolheu a BWV 140 para o primeiro domingo do Advento?

Esta Cantata é-me particularmente querida não só pela sua beleza, mas também porque está ligada a diversas circunstâncias da minha história pessoal: estava no primeiro disco compacto com cantatas de Bach que me foi dado quando era jovem, e serviu como música de fundo no carro, às minhas longas viagens de inverno, de Turim à Suíça, durante meu treinamento de piano, acompanhado pelo meu pai. A gravação foi uma das “históricas”, com a voz do barítono Fischer-Dieskau: uma voz inesquecível.

BWV 140 é então associado às emoções do casamento do meu irmão Giovanni com Simona, tendo em vista o qual, juntamente com muitos amigos, instrumentistas e coristas, criamos uma gravação desta cantata, para que pudesse ser doada aos participantes da festa. Meu irmão era o solista de violino. Em seguida, construí meu trabalho de tese de mestrado em teologia em Nottingham, no BWV 140.

BWV 140 – cujo título é Up, Arise: Calling Us from Above – está agora e para sempre ligado à minha jornada espiritual e a um momento crucial da minha vida, em Jerusalém em 2023.

Já toquei várias vezes em meus concertos na transcrição para piano de Ferruccio Busoni (vídeo a seguir). Penso que estas notas pessoais são suficientes para compreender quantas e quais as razões espirituais que a tornam particularmente favorável à vida cristã e aos tempos do Advento em particular.

Você pode nos explicar o que é uma cantata e para que finalidade ela servia no ofício luterano na época de Bach?

O gênero “cantata” nasceu na Itália. Na verdade, até em alemão é chamada de “cantata”. São pequenas composições vocais que possuem características semelhantes às de óperas maiores. Não deve ser visto apenas como um gênero “sagrado”. O próprio Bach – que nunca escreveu "obras líricas" profanas ​– compôs muitas cantatas ditas "profanas", isto é, não para uso litúrgico, embora uma classificação tão clara não possa ser dada a algumas delas.

Na liturgia luterana da época, a cantata era o cenário do sermão: antes e depois dele. Estava, portanto, fortemente ligado à Palavra pronunciada no domingo ou festa especial do ano litúrgico. Tinha, portanto, a tarefa de gravar a Palavra de Deus – Epístola e Evangelho – na mente dos fiéis e amplificar o seu efeito nos seus corações.

Do ponto de vista musical, as cantatas de Bach caracterizam-se tipicamente por uma peça instrumental introdutória – denominada sinfonia – ou por uma peça com orquestra e coro, a ser executada com conjuntos importantes. A introdução é seguida por peças para vozes solo acompanhadas por conjuntos instrumentais reduzidos: árias e duetos, intercalados com recitativos.

Existem cantatas de Bach divididas em duas partes, destinadas a serem executadas antes e depois do sermão: neste caso cada uma das partes contém um “coral” que, como sabemos, é uma forma musical de origem estritamente litúrgica. Ou são construídos em um único “vão”: neste caso o coral é colocado no final.

A Sagrada Escritura está naturalmente muito presente nos textos das cantatas de Bach, tanto na forma de citações explícitas, como em paráfrases, e em elaborações poéticas livres, especialmente nas árias e duetos.

Bach compôs inúmeras cantatas a partir de corais litúrgicos pré-existentes, como uma reformulação e desenvolvimento dos mesmos, como é o caso da cantata BWV 140.

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Você pode dar outros exemplos de cantatas da época?

Antes de Bach lembro-me das cantatas de Dietrich Buxtehude: não conhecemos muitas, mas são muito bonitas. Lembro-me então das centenas de cantatas compostas por Georg Philipp Telemann, contemporâneo de JS Bach, luterano como ele. Depois vieram as cantatas “barrocas” de Christoph Graupner e Johann Friedrich Fasch.

Tirando as cantatas de Telemann – um autor ainda mais prolífico que Bach! – há muito pouco deste patrimônio musical que foi redescoberto, interpretado e reproduzido até hoje. Apesar da notoriedade alcançada por Bach, o mesmo se aplica, pelo menos um pouco, também às suas cantatas: afinal são poucas as gravações do repertório completo, porque é realmente muito exigente fazer tudo.

Para que circunstância litúrgica Bach compôs esta cantata?

Tanto no contexto luterano como no católico, ainda há continuidade temática entre o final do ano litúrgico e o início do novo com o primeiro domingo do Advento: os últimos domingos do ano são sempre caracterizados por leituras bíblicas escatológicas, preparatórias para o fim dos tempos e a vinda do Reino. O clima de espera recomeça e intensifica-se no Advento. O calendário litúrgico marca uma descontinuidade, mas em continuidade até a conclusão.

Aqui, embora a cantata BWV 140 tenha sido composta para o último domingo do ano litúrgico – um domingo que nem sempre esteve no calendário (o XXVII depois da Trindade no calendário litúrgico luterano) – os seus temas tornam-na perfeitamente compreensível no advento.

A rara circunstância litúrgica original explica o fato de esta cantata ter sido executada muito poucas vezes na igreja na época de Bach.

Qual é a origem do texto?

Tal como acontece com todos os textos sagrados de Bach, pode-se dizer que a origem é composta e incerta. Christian Friedrich Henrici, conhecido como Picander, o poeta e libretista favorito de Bach, que escreveu os textos das principais obras-primas sagradas, como a Paixão de Mateus, deve ter participado disso.

As referências bíblicas do texto são evidentes: além do evangelho de Mateus 25,1-13 da parábola das dez virgens que permeia toda a cantata, há múltiplas referências ao Cântico dos Cânticos e há evocações do livro do Apocalipse.

Como previsto, o BWV 140 é construído sobre um coral pré-existente, cujo autor é o pastor luterano Philipp Nicolai, poeta e compositor. Nicolai é o autor da melodia original e muito bonita, uma melodia que lembra o hino eucarístico latino adora te devote atribuído a São Tomás. Parece-me importante destacar esta ligação com respeito a tempos históricos em que ainda existiam intensas disputas sobre a Eucaristia entre luteranos e católicos. Isto, juntamente com muitos outros elementos, dá-nos a oportunidade de compreender a cantata também num sentido marcadamente eucarístico.

O outro aspecto – claramente evidente no texto – é o diálogo entre Ele e Ela , onde Ele é, sem dúvida, Jesus, o Cristo, claramente identificado pela voz do baixo, enquanto o texto e a voz mantêm uma ambiguidade deliberada em relação à Sua identidade, para que Ela possa ser a alma dos fiéis, a Igreja, a Jerusalém celestial que há de vir.

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Na parábola de Mateus também há virgens “insensatas”: por que não aparecem na cantata?

É verdade, mas também é verdade que em outras cantatas de Bach – e nos textos luteranos da época – não faltam textos que destacam a culpa individual. Não creio que a sensibilidade da época, a este respeito, entre católicos e luteranos, fosse muito diferente, ainda que, certamente, Lutero tivesse deplorado a ênfase “católica” de natureza judicial.

Além disso, não há dúvida de que o coral de Nicolai, tal como a cantata de Bach, pretendia exaltar apenas a dimensão positiva, luminosa e festiva do encontro místico entre Ele e Ela , sem sombras.

Será então a unio mystica a graça da qual participa esta cantata?

A união mística está no cerne da cantata BWV 140: encoraja-a, apoia-a, precipitando um conjunto de motivos teológicos – evocados pelo texto e pela música – que se misturam continuamente: do motivo escatológico ao esponsal, do expectativa à realização, do desejo à verdadeira participação no banquete celestial já no banquete eucarístico.

No dueto do terceiro movimento, a noiva pede ao noivo que abra o salão, ao que o noivo responde “Vou abrir o salão para você”. Já no quarto movimento, o tenor – que é a voz do evangelista – canta: “Todos te seguimos para partilhar o jantar”. Aqui está apenas um exemplo de como os motivos evocados são condensados ​​em palavras e música.

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Você pode analisar brevemente cada movimento da cantata?

A abertura instrumental do primeiro movimento (aqui) é construída num ritmo pontilhado, o ritmo da solenidade, da realeza, da celebração. As sopranos logo nos apresentam o texto e a melodia do coral composto por Philipp Nicolai, enquanto as outras três vozes do grande coro atuam como contraponto livre, segundo a maestria composicional de Bach.

O contexto orquestral traz uma marca trinitária: Trinitário é a tonalidade Mi bemol maior (porque possui três bemóis na tonalidade), ternário é a escansão do tempo de dança e há três blocos sonoros de cordas, sopros e coro. O número de repetições é doze, para evocar a meia-noite da parábola das virgens como ponto de fundo da noite a partir da qual começa o amanhecer. Gostaria de salientar – como em outros movimentos – a presença de invocações litúrgicas: neste caso o Aleluia; um aleluia em dó menor, em si uma tonalidade que tem um efeito de tristeza, mas que aqui é levada pelo movimento da alegria.

O segundo movimento (aqui) é o recitativo confiado à voz do tenor que canta a Palavra de Deus: aqui o texto é fortemente penetrado pela poesia do Cântico dos Cânticos. A voz dirige-se às “filhas de Sião” descrevendo o noivo que “vem” “como um corço ou um jovem cervo”, que “saltando as colinas” “traz o banquete de casamento”. Os motivos escatológicos e eucarísticos – o já e o ainda não – estão intimamente interligados. Neste recitativo, Bach utiliza a voz do tenor de forma a reforçar o tom exortativo do evangelista: o efeito do envolvimento no ouvinte é profundo.

No terceiro movimento (aqui) descobrimos o primeiro dos duetos entre Lui e Lei. Como mencionado, quando encontramos um dueto entre um baixo e uma soprano em Bach, quase sempre entramos num diálogo íntimo entre Jesus e a alma dos fiéis, ou entre Cristo e a Igreja. A peculiaridade musical desse dueto é que ele é acompanhado pelo "pequeno" violino, instrumento de época que possui som um pouco mais agudo que o violino comum.

A tarefa atribuída por Bach é significar a queima do óleo nas lamparinas das meninas que aguardam o Noivo: música que evoca o sentimento de uma expectativa saudosa. O motivo inicial deste movimento – como no inesquecível “Erbarme dich”, as lágrimas de Pedro, na Paixão de Mateus – é um motivo que caracteriza o desejo em Bach: também o encontramos, por exemplo, em Ich habe genug, uma cantata sobre o desejo de “ver” que o velho Simeão expressa ao abraçar o Menino Jesus.

Aqui, na BWV 140, Ele e Ela vivenciam a mesma expectativa, mas ainda não é o momento da união para eles: “Vem, ó Jesus!” “Eu venho, ó alma que eu amo.” Ouso dizer que as notas do violino já preenchem, de alguma forma, a distância entre Ele e Ela , enquanto a chama das lâmpadas arde de amor. A virgem vigia – e a sua lâmpada é continuamente alimentada pelo ardor – e tem a certeza de que o seu marido está prestes a chegar.

O quarto movimento (aqui) é um maravilhoso coral entoado pelo tenor (ou vários tenores em uma só voz) cantando o texto na melodia de Nicolai com contraponto de cordas “claras” em uníssono. Destaco como as cordas retomam o motivo do violino do andamento anterior, para perpetuar aquela mesma sensação de expectativa desejante, típica do enamoramento.

O recitativo do quinto movimento (aqui) é confiado à voz baixo, vox Christi como na Paixão de Mateus. A voz do Noivo – rodeada de música como uma auréola celeste –dirige-se à Noiva a partir de expressões de amor tão fortes no Cântico dos Cânticos : "Eu te colocarei como um selo no meu coração, no meu braço". A promessa é muito doce e certa: “Enxugarei as lágrimas dos teus olhos”.

No sexto movimento (aqui) ocorre o encontro: a união mística se completa. Ouvimos o segundo dueto entre baixo e soprano , acompanhado apenas pelo oboé: os dois finalmente cantam juntos, com emoção, ternura mútua, alegria. Estão unidos e por isso a expressão musical é concordante e harmoniosa.

O sétimo movimento (aqui) é o coral final em que a melodia do Pastor Nicolai retorna numa harmonização a quatro vozes acompanhada por toda a orquestra, com a evidência do pequeno violino que "se destaca" com uma oitava mais alta que os demais instrumentos, que dá a este final uma luz particular que, na minha opinião, distingue a cantata.

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Por que aconselhar os leitores a ouvirem a cantata BWV 140 neste tempo e neste advento?

Pela beleza que encanta. Pela alegria que você sente. Pelo desejo de ser um com Cristo e em Cristo, um desejo que se realiza e se nutre na participação eucarística. Quanto mais somos um com Cristo e em Cristo – quanto mais vivemos a união mística com Ele – mais nos tornamos humanos, à maneira de Cristo. Em Cristo estamos mais presentes e vivos, participando humanamente das coisas deste mundo.

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