Último coral de Bach. “Diante do teu trono eu me apresento”, um hino à misericórdia de Deus

Bach em retrato de Elias Gottlob Haussmann | Wikimedia Commons

Mais Lidos

  • "A ideologia da vergonha e o clero do Brasil": uma conversa com William Castilho Pereira

    LER MAIS
  • O “non expedit” de Francisco: a prisão do “mito” e a vingança da história. Artigo de Thiago Gama

    LER MAIS
  • A luta por território, principal bandeira dos povos indígenas na COP30, é a estratégia mais eficaz para a mitigação da crise ambiental, afirma o entrevistado

    COP30. Dois projetos em disputa: o da floresta que sustenta ou do capital que devora. Entrevista especial com Milton Felipe Pinheiro

    LER MAIS

Revista ihu on-line

O veneno automático e infinito do ódio e suas atualizações no século XXI

Edição: 557

Leia mais

Um caleidoscópio chamado Rio Grande do Sul

Edição: 556

Leia mais

Entre códigos e consciência: desafios da IA

Edição: 555

Leia mais

02 Abril 2021

 

Johann Sebastian Bach morreu aos 65 anos na noite de 28 de julho de 1750. Pela manhã, de sua cama, ele ditou para seu genro e aluno Johann Christoph Altnickol (1720-1759), também organista e compositor, a harmonização de um coral, cujo texto havia sido escrito por Paul Eber (1511-1569) por volta de 1560. Na versão original era e ainda é um canto destinado à liturgia protestante da Quaresma. À beira da morte, Bach, profundamente religioso, adaptou o título de outro coro, Diante de seu trono me apresento - Vor deinen Thron tret ich hiermit, BWV 668, fazendo dele seu testamento espiritual.

A reportagem é de Benno Scharf, publicada por L'Osservatore Romano, 17-02-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.

A poesia de Eber, por sua vez, é baseada em um texto latino, composto em 1546 pelo humanista Joachim Camerarius (1500-1574) e, posteriormente musicado pelo compositor francês Guillaume Franc (1505-1570), por sua vez coautor das melodias do Saltério de Genevan (alguns delas já entraram no uso comum italiano, como Nós cantaremos glória ti e Terra prometida).

O canto, porém, é um hino à confiança em Deus; só é feito um aceno à penitência. Nas sete estrofes rimadas que o compõem, delineia-se a situação do ser humano, que no maior sofrimento já não sabe onde "procurar ajuda e conselho". Então, um único caminho descortina-se diante dele: "Pedir a Deus a salvação de todo medo e sofrimento". Aqui se insere o tema penitencial porque devemos "elevar os olhos e o coração a ele com verdadeiro arrependimento e dor, pedindo perdão pelos nossos pecados". A misericórdia de Deus é certa: se nós, abandonados por todos, nos voltarmos para ele, ele não olhará para os nossos pecados, mas "pela sua graça estará ao nosso lado em cada momento de miséria e nos livrará do mal". A certeza da proximidade divina com o homem será então um elemento básico no pensamento de muitos teólogos protestantes.

A melodia original, composta por Johann Baptista Serranus (1540-1600) em Sol maior, é simples e cativante. O polifonista Michael Praetorius (1571-1621) a elaborou para coro de 3 vozes enquanto Bach fez uma versão para órgão e coral. Mais tarde, também Johannes Brahms (1835-1897) retomou-o na forma de um moteto para 3 vozes. Na Itália, é conhecido na adaptação Raccoglici Signore in unità.

A peça na versão original logo entrou para o uso católico e hoje encontra um lugar merecido no repertório oficial de Gotteslob.

"Oh homem, chore seu grande pecado" é o início do coral que conclui a primeira parte da Paixão de Bach segundo São Mateus. Composto por Sebald Heyden (1499-1561) por volta de 1530, e musicado por Matthias Greitter (1495-1550), essa canção em sua forma simples há tempo encontrou um lugar na liturgia quaresmal, tanto protestante quanto católica. O texto consiste em 23 estrofes, cada uma com 12 versos rimados. À exortação inicial segue-se a afirmação de base: “Pelo qual Cristo abandonou o colo de seu Pai e veio para a terra, de uma virgem pura e doce”. Nas estrofes seguintes, a Paixão de Cristo é narrada em detalhes, desde a Última Ceia até a Ressurreição. No final da longa história, o homem é exortado a afastar-se do pecado, mostrando "amor a todos, seguindo o exemplo que Cristo nos deu com sua paixão e morte".

A melodia original em dó maior é enfática; o início do sétimo e oitavo versos em dó sustenido confere-lhe uma certa grandiosidade. Na prática litúrgica, normalmente são executadas a primeira e a última estrofe do longo texto; na obra-prima de Bach, apenas a primeira aparece.

Os dois textos do século XVI associam o tema quaresmal à confiança na presença de Deus ao lado do homem, mesmo nos momentos mais sombrios da vida, e à exortação ao exercício da caridade fraterna a exemplo de Cristo. É um espírito muito diferente daquele que apenas dois séculos antes animava os flagelantes alemães, que cantavam "Oh nós, pobres pecadores: as nossas iniquidades nos sujeitaram à morte eterna". O mundo era então visto como submerso pelo mal, Lúcifer era o autor e o cristão só poderia evitar ser contagiado por ele se refugiando na penitência e mortificando duramente seus próprios sentidos.

Um desdobramento do espírito renascentista também havia chegado à Alemanha e, sob sua influência, a fé e a caridade se sobrepuseram à dura contrição, muito fechada em si mesma e pouco aberta à esperança.

Leia mais