26 Junho 2024
"Onde a palavra se torna mais rara, a música irrompe: e é sobre a Matthäus-Passion de Bach que se encerra esse extraordinário capítulo dedicado a “A morte de Deus". Bach, ele próprio inefável entre os músicos, enfrenta o mistério com a plenitude de uma 'forma' que no fim permite vislumbrar a luz daquela transcendência que substitui o 'evento' insolúvel da vida humana", escreve Maria Grazia Ciani, em artigo publicado o caderno Alias Domenica, do jornal Il Manifesto, 23-06-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
O enorme desafio indicado pelo título corresponde a um ensaio de cerca de 150 páginas, em formato reduzido: Parlare con Dio (Conversar com Deus, em tradução livre) de Umberto Curi, professor emérito de História da Filosofia da Universidade de Pádua (Bollati Boringhieri “Temi”, € 15,00).
O livro está dividido em oito pequenos capítulos, de “As dez palavras" (uma reflexão sobre o relato do encontro entre o Senhor e Moisés) até "As bem-aventuranças" (evangelhos de Mateus e Lucas); de “Luz que ilumina as pessoas” (sobre a noção de tempo no Apocalipse de João) até “A morte de Deus” e “Falar de Deus”. Na conclusão há um “Epílogo” sobre o silêncio, que, tanto na poesia como na música, assume um significado fundamental, quase sempre esquecido ou mal compreendido, permitindo vislumbrar, por um instante, o abismo que engole certas situações e certas expressões que, com o tempo, se tornaram lugares-comuns.
Parlare con Dio de Umberto Curi (Foto: Wikimedia Commons)
O subtítulo fala de uma investigação entre filosofia e teologia. Mas a definição é, de certa forma, restritiva, no sentido de que o significado metafísico se dissolve numa análise de dados concretos, de frases imortais revisitadas do zero e reconduzidas ao nível de lúcida racionalidade. Nada de novo e ainda assim tudo parece novo graças à relevância que a mais antiga das histórias assume quando vista de uma perspectiva diferente, o que confere à "letra" das palavras um significado realista e profundamente ético.
Histórias muito antigas e conhecidas, eu dizia, mas cristalizadas ao longo dos séculos numa visão única e muitas vezes restritiva.
Jó, por exemplo. “Dilacerado pelo sofrimento” durante sete dias e sete noites, ele é geralmente classificado como vítima de um sofrimento além de todos os limites, um símbolo da paciência e da aceitação, um herói da fé. Mas o silêncio que comumente caracteriza a aceitação é quebrado pelo grito final de Jó: não uma acusação, não uma rebelião, mas o pedido de um confronto direto com Deus. Deus "chamado em causa", Deus "convocado a juízo", e uma conclusão que os antigos gregos elevam a sentença obrigatória: a impossibilidade de conhecer o incognoscível. Não mais palavras, um grito – que prenuncia aquele “cheio de palavras” que é o grito de Cristo na cruz.
Ao grito de Jó corresponde o silêncio de Abraão, ele sim um verdadeiro “herói da fé”, Abraão que não tenta compreender, mas “acredita pelo absurdo”: e é aqui que “começa a fé, onde termina a razão". O autor reitera, portanto, a interpretação de Kierkegaard que passa de Jó para Abraão o título de “herói da fé”. A lacuna que se cria entre as duas figuras persiste ainda hoje num contraste insolúvel. A questão se torna mais complexa quando os sentimentos são chamados em causa. Antes de enfrentar o assunto, sinto-me obrigado a confessar que filosofia e teologia não são minha área, portanto, a minha interpretação será necessariamente limitada, se não até incorreta.
O capítulo sobre a “Misericórdia” compara o éleos grego e o cristão, colocando no centro a parábola do Bom Samaritano. A análise de Curi, neste caso, vai ao cerne dos termos usados para narrar a parábola e os articula no seu sentido último, sublinhando o seu valor implícito e as diferenças substanciais. Misericórdia como identificação com o outro, misericórdia como abnegação em favor do outro: misericórdia que, Simone Weil é citada aqui, “preenche o abismo que a criação estabeleceu entre Deus e a criatura”.
Do tema da misericórdia surgem os confrontos entre misericórdia e lei, juízo e condenação, culpa e punição – para chegar finalmente ao difícil conceito do perdão. Aqui o problema torna-se mais complicado, pena e culpa podem ser discutidas e levar a soluções aceitáveis, mas quando o perdão entra em conflito com o imperdoável – neste caso o genocídio – o contraste entre os estudiosos (por exemplo, Hannah Arendt, Jürgen Habermas etc.) torna-se uma disputa, causa debates acalorados, diante dos quais Jacques Derrida se apresenta como aquele que mais se aproxima do que Cristo quis demonstrar: que o imperdoável pode ser perdoado com a superabundância da misericórdia.
O imperdoável pode, portanto, ser perdoado, mas o inefável? A subida ao Gólgota, o desapego gradual de tudo o que foi a experiência entre os homens, o antes e o depois, a jornada da Paixão, a morte. Com rara sugestão o autor acompanha os sofrimentos físicos e espirituais do filho de Deus: o suplício físico, o sofrimento da carne; mas também o medo, a angústia do abandono, a solidão; o perílypos que envolve Cristo (termo muito mais expressivo que o latim tristis). A dor: não aquela que produz conhecimento, como queriam os gregos, mas aquela que une em si “o abismo do sofrimento” e “a luz da redenção”. A Cruz é o símbolo ineliminável de tudo isso.
E não há logos que possa restituir o poder desse Todeskampf, a luta suprema contra morte – o enigma (porque tal permanece) da Cruz.
Onde o logos falha, entram em cena as artes: artes figurativas, cinema, música. É sobre a música que eu gostaria de me debruçar, porque é minha convicção pessoal que a música, em si inefável e absoluta, é a forma mais poderosa de “falar” da Paixão. Onde a palavra se torna mais rara, a música irrompe: e é sobre a Matthäus-Passion de Bach que se encerra esse extraordinário capítulo dedicado a “A morte de Deus". Bach, ele próprio inefável entre os músicos, enfrenta o mistério com a plenitude de uma “forma” que no final permite vislumbrar a luz daquela transcendência que substitui o “evento” insolúvel da vida humana.
Com o coro final da Paixão encerro estas poucas observações que não transmitem a ideia de ensaio de Umberto Curi, compacto e controlado, mas repleto de observações originais e esclarecimentos necessários para uma abordagem serena e severa de Deus “O resto é silêncio”, poder-se-ia dizer com Shakespeare. E é precisamente isso, o silêncio em que insiste Santo Agostinho, o “evento” que contém em si a plenitude da experiência mística: ouvir o reflexo que a música introduziu na alma, voltar a si mesmos para captar, mesmo por um instante, a luz da verdade.
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Confrontar-se com Deus de Jó a Bach. Artigo de Maria Grazia Ciani - Instituto Humanitas Unisinos - IHU