30 Novembro 2024
“Quando a luta pelo poder é colocada no centro, todo o resto fica em segundo plano, incluindo em lugar de destaque a ética e os valores”, escreve Raúl Zibechi, jornalista e analista político uruguaio, em artigo publicado por La Jornada, 29-11-2024. A tradução é do Cepat.
Se houvesse algum interesse na esquerda em refletir a fundo para superar o estado atual das coisas, ou seja, o capitalismo, a Bolívia deveria estar no foco das atenções. No entanto, a realidade diz que, exceto algumas feministas como María Galindo, a imensa maioria dos intelectuais latino-americanos prefere evitar a tremenda disputa entre Evo Morales e o atual presidente Luis Arce que está destruindo o país, o Movimento ao Socialismo (MAS) e desmoralizando movimentos sociais outrora fortes.
A disputa não se dá entre propostas políticas divergentes, já que ambos os setores se referenciam no próprio MAS, mas, sim, nas ambições de poder e na disputa pelo controle do aparelho estatal.
Morales iniciou a luta após aceitar com relutância a candidatura de Arce e David Choquehuanca, ex-ministros da Economia e das Relações Exteriores nos governos do MAS. Esta candidatura foi literalmente imposta pelas bases, oito dos nove departamentos votaram nas primárias do MAS em Choquehuanca para candidato presidencial, mas Evo impôs que fosse o vice, pois mantém uma rejeição radical ao seu ex-ministro, que se tornou muito popular no altiplano aimara.
O governo Arce, por sua vez, ventila e amplifica os estupros de mulheres cometidos por Morales, que teve um filho com uma menina de 15 anos e se sabe que teve alguns casos de relações sexuais com menores quando era presidente. “Evo Morales cometeu 'estupro' contínuo ao longo de todos os seus governos”, sentenciou Galindo na Rádio Deseo.
Galindo detalha o ambiente: “Não é que as ministras por serem mulheres não soubessem de nada, não é que os intelectuais, como García Linera, estivem por fora, muito pelo contrário. Especialmente os intelectuais das classes médias urbanas justificaram Evo Morales, diversas vezes, com todos os tipos de argumentos para protegê-lo e servir como coro de legitimação conceitual dos contínuos estupros que cometia”.
Acrescenta que as violências sexuais de Evo não foram escondidas pelo seu perpetrador, eram ventiladas publicamente com “regozijo”. Conclui com uma frase lapidar: “Governar, para Evo Morales, era, entre outras coisas, fazer uso sexual das jovens provenientes do movimento camponês indígena”.
Também é triste que o governo Arce esteja utilizando esta situação em benefício próprio e não para que a justiça seja feita. A deriva do MAS começou muito antes e envolve todo o partido, incluindo aqueles que integram os dois lados opostos. No domingo, 21 de fevereiro de 2016, foi realizado o referendo a pedido do próprio governo Morales para reformar a Constituição e permitir a reeleição. O resultado foi apertado: 51,3% votaram não e 48,7% votaram sim.
Apesar deste resultado, Morales seguiu empenhado na reeleição, chegando às eleições de 2019 em uma situação complexa, já que boa parte dos movimentos que o apoiaram tinham lhe dado as costas e a maioria da população seguia rejeitando a sua candidatura. Anos atrás, havia dado “golpes de Estado” contra duas das mais importantes organizações sociais: Conamaq e Cidob. No primeiro caso, enviou a polícia para retirar os líderes eleitos pelas bases, colocando em seu lugar partidários de seu governo.
São alguns exemplos que ajudam a explicar o atuam momento dos dois setores que se enfrentam no MAS. De algum modo, seguem atrás do lema leninista de que “exceto o poder, tudo é ilusão”.
Não podemos, contudo, ficar conformados com a descrição de alguns fatos. Como estou convencido de que podemos aprender com o passado, trata-se de nos perguntar as razões de semelhante deriva que combina autoritarismo com corrupção, violência sexual e apego ao poder.
A primeira questão é que quando a luta pelo poder é colocada no centro, todo o resto fica em segundo plano, incluindo em lugar de destaque a ética e os valores. No entanto, aqueles que se empenham em mudar o mundo se inspiram, justamente, em uma ética e em valores que colocam o coletivo à frente do individual: servir em vez de se servir dos cargos e obedecer em vez de mandar são alguns princípios que aprendemos até aqui.
A segunda questão é que a história nos ensina que a tomada do Estado “acaba pervertendo o revolucionário mais fiel”, como escreveu o líder curdo Abdullah Öcalan. A experiência nos diz, mais de uma vez, que pelo Estado não é possível transformar o mundo e que é o caminho mais seguro para reproduzir o capitalismo e a ordem global, como nos ensinou Immanuel Wallerstein.
O EZLN deu uma guinada muito profunda na teoria e na luta para mudar o mundo ao rejeitar a conquista do poder estatal. Independentemente da opinião de cada um sobre o EZLN, não acreditam que existe um abismo ético entre a comandância zapatista e dirigentes como Morales?
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Bolívia, ou as misérias do poder. Artigo de Raúl Zibechi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU