22 Novembro 2019
A antropóloga, intelectual e referência feminista Rita Segato, manifestou-se, na terça-feira, sobre os acontecimentos na Bolívia, ao mesmo tempo em que recomendou deixar de lado o que definiu como uma “visão binária dos fatos”. Durante uma entrevista, fez duras críticas a Evo Morales, atualmente exilado no México, após sua renúncia.
A reportagem é publicada por Infobae, 19-11-2019. A tradução é do Cepat.
“Em minha compreensão dos acontecimentos, Evo caiu por seu próprio peso”, explicou a intelectual de origem argentina, mas residente no Brasil. “Ele incorreu em ações ao longo do tempo que lhe causaram uma perda de credibilidade e, na sequência, uma perda de governabilidade. Para mim, não foi vítima de um golpe, mas vítima do descrédito geral no qual se deparou por causa de várias de suas ações”.
Entrevistada pela Rádio ‘Deseo’ da Bolívia, e cuidadosa por não estar naquele país, Segato explicou suas dificuldades na hora de debater a crise boliviana na Argentina: “A visão é totalmente binária. Que (Luis Fernando) Camacho seja uma figura inaceitável e malvada não significa que Evo (Morales) seja uma figura perfeita. Há um endeusamento de sua figura maior ainda do que era antes.
A especialista enumerou uma série de episódios que, segundo ela, minaram a legitimidade e a governabilidade de Evo Morales. Entre eles, menciona os incêndios florestais ocorridos entre os meses de julho e outubro deste ano na floresta de Chiquitano, frente aos quais se comportou “de maneira muito parecida” ao presidente do Brasil, Jair Bolsonaro. “Não declara emergência nacional e, portanto, não solicita o comparecimento das forças de auxílio que têm a obrigação de se apresentar e prestar serviços diante de uma catástrofe com essas características. Exatamente a mesma coisa que Bolsonaro fez no Brasil com o incêndio na Amazônia”.
Além disso, a intelectual menciona a controvérsia em torno da construção da estrada TIPNIS, que Morales insistiu em realizar, apesar do fato de que a mesma dividiria em duas uma floresta rica em biodiversidade que é, ao mesmo tempo, uma área indígena e uma reserva ecológica. “Deixou todos nós absolutamente perplexos com a recusa em negociar” com as comunidades indígenas, apesar das críticas e questionamentos de diferentes setores, explicou Segato.
Por fim, apontou os acontecimentos em torno do referendo constitucional convocado por Morales em 2016, sobre a possibilidade de ser reeleito para um novo mandato, e que o governante perdeu por 51% dos votos. “Fragilizou-se” e “perdeu credibilidade”, disse a especialista assuntos de gênero.
“As pessoas se perguntam: ‘É o momento de criticar Evo, quando as forças que estão surgindo e se apresentando, além da violência, nos obrigariam a esquecer as críticas contra ele para nos ocupar do mais urgentes?’”. Sou da opinião de que não se pode perder esta oportunidade para fazer as críticas. Sempre com um princípio que utilizamos muito em matéria de direitos humanos, mas que deveríamos começar a utilizar na política, que é o princípio da não repetição”, recomendou Segato.
A antropóloga recomendou, então, fazer as críticas ao “modo autocrático” de Morales fazer política, à “militarização do país” e, também, ao modo “machista” do líder do MAS. “Nisso emerge o fato de que Morales é um sindicalista, e não um aimará”, esclareceu. Além disso, recordou a recusa de Evo em apoiar a candidatura de David Choquehuanca como candidato à presidência e a insistência em sua reeleição.
“Tornou as coisas muito fáceis para as forças que sempre conspiram, que perseguem, que são muito bem orquestradas e que têm uma assessoria internacional (...)”, disse Segato, crítica, por sua vez, ao atual governo interino da Bolívia, liderado pela senadora Jeanine Áñez. “Um governante deve estar ciente disso, perceber os riscos que corre e a necessidade de não errarmos”, acrescentou.
Por último, Segato dedicou uma longa passagem de sua explanação ao machismo de Evo Morales. Segundo ela, na Argentina sua figura se encontra “praticamente canonizada”, por isso é muito difícil mencionar frases do mandatário, como quando falou sobre seu descanso, que seria: “Com meu charango, com minha coca e com minha garota”.
Nesse contexto, Segato estimulou as mulheres a trabalhar para que o machismo dos governantes não seja mais visto como um fato secundário ou menor. Segundo ela, frases como a de Evo “são relativizadas e perdoadas como parte de um costume que não faz mal a ninguém”.
“É um erro muito grande, porque aí se revela o autoritarismo de um governante. O autoritarismo e a pretensão de estar acima do bem e do mal. É uma questão central. A agressão verbal, física, psicológica e moral contra as mulheres é uma agressão política que revela a vontade de poder”, explicou.
No final da conversa com a emissora boliviana, a antropóloga esclareceu que, embora exista o que ela qualifica como golpe de Estado na Bolívia, a verdade é que o mesmo tem uma nova modalidade: “Ocorre após um vazio de poder, após uma falta de credibilidade e de governabilidade, baseada na perda de apoio de setores muito amplos da população à figura de Evo. E foi um golpe oportunista que ocorre a posteriori desse vazio de poder que é gerado pelos muitos erros e excessos do governante”.
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Bolívia. Abandonar a “visão binária dos fatos”, adverte Rita Segato - Instituto Humanitas Unisinos - IHU