07 Setembro 2024
O referendo frustrado que o presidente Luis Arce quis organizar e a crise económica marcam a situação boliviana, sob a ameaça de protesto social. Com as eleições de 2025 no horizonte, as lutas internas agravam-se no Movimento ao Socialismo, sem que a oposição apresente, para já, quaisquer pré-candidaturas significativas.
O artigo é de José Luis Exeni Rodríguez, publicado por Nueva Sociedad, 06-09-2024.
Em sua mensagem de 6 de agosto para o Dia Nacional, o presidente Luis Arce agitou o campo político e mudou a agenda do debate na Bolívia ao anunciar que levaria três questões polêmicas à consulta cidadã: o subsídio aos hidrocarbonetos, o número de assentos parlamentares e o possibilidade de reeleição (contínua ou descontínua) do binômio presidencial. A votação seria realizada no dia 1º de dezembro, junto com as já convocadas eleições judiciais, e o mero anúncio gerou suspeitas e questionamentos.
“Tempos difíceis exigem decisões firmes”, disse Arce para justificar o seu anúncio. É verdade que a Bolívia enfrenta tempos difíceis. A crise político-institucional, extremamente contaminada pela guerra interna no Movimento ao Socialismo-Instrumento Político pela Soberania do Povo (MAS-IPSP), levou a um cenário de bloqueio institucional e paralisia administrativa que afeta cada vez mais a gestão de um governo questionado.
Os números vermelhos e a escassez de divisas demonstram, ao mesmo tempo, a situação económica complexa e incerta. E os tempos difíceis de um governo fraco podem levar a decisões erráticas. De nenhuma outra forma se pretende convocar um referendo para que os cidadãos decidam sobre uma competência exclusiva do Estado central. Faz sentido perguntar às pessoas se um subsídio atualmente insustentável à gasolina e ao gasóleo, que exige cerca de 3 mil milhões de dólares por ano, deve ser mantido? O défice orçamental causado durante anos por este subsídio – que o próprio Evo Morales tentou reduzir sem sucesso no final de 2010 – exige políticas públicas urgentes e não uma consulta dilatória.
Os outros dois temas propostos envolvem a reforma parcial da Constituição de 2009. A Câmara dos Deputados boliviana tem 130 membros. É um número fixo, estabelecido pela Constituição. Após cada censo populacional, eles são distribuídos pelos nove departamentos do país de acordo com dados populacionais e um fator de compensação pelo menor número de habitantes e menor desenvolvimento econômico. É uma tarefa técnica, executada pelo órgão eleitoral, que costuma gerar tensões com os departamentos que perdem parlamentares. Arce queria abrir aquela fechadura menos de um mês depois de serem conhecidos os dados do censo realizado em março deste ano.
Em relação à reeleição, a proposta de referendo visava diretamente bloquear a candidatura do ex-presidente Evo Morales em 2025. A Constituição estabelece o limite para a reeleição contínua, mas não proíbe a reeleição descontínua. Por isso o governo propôs fechar essa possibilidade.
Mas o triplo referendo caiu em apenas 24 dias. Primeiro, porque a sua convocação por decreto, como pretendia o governo, é inconstitucional, além de inviável. Qualquer reforma parcial da Constituição só pode ser ativada por iniciativa popular, com a assinatura de 20% dos cadernos eleitorais, ou por iniciativa legislativa, com lei aprovada por dois terços dos deputados. Mas o governo não teve tempo nem maioria qualificada.
A razão fundamental para o fracasso da consulta foram, em todo o caso, as questões. A legislação estabelece que, como requisito prévio à convocação, as questões deverão passar por uma verificação técnica e depois por um controle de constitucionalidade. Duas semanas após seu anúncio, Arce enviou quatro perguntas ao Tribunal Superior Eleitoral. Nenhum cumpriu os critérios de clareza, precisão e imparcialidade. Três foram devolvidas com observações e uma, a das cadeiras, por constituir uma reforma constitucional, não pôde ser incluída na iniciativa.
O governo teve que reformular as questões e enviá-las novamente ao órgão eleitoral para verificação técnica. Por algum cálculo ou erro, enviou-os diretamente ao Tribunal Constitucional para controlo de constitucionalidade, pior formulados e até com erros absurdos (por exemplo, dizia “forma” onde deveria ter dito “reforma”). Os magistrados, apesar da aliança com o governo, declararam o pedido “inadmissível”.
É isso, pelo menos por enquanto, com a aventura plebiscitária do Presidente Arce. A intenção de realizar o referendo em 1º de dezembro, juntamente com as eleições judiciais, estava ultrapassada. O governo demorou mais de 72 horas para reconhecer que não haverá consulta este ano, mas deixou aberta a possibilidade de que ela pudesse ser convocada “dentro do prazo permitido por lei”. Na melhor das hipóteses, poderia ser convocada após as eleições judiciais e realizada em março de 2025, apenas um mês antes das eleições gerais marcadas para agosto. Um absurdo.
Como mecanismo de democracia direta, o referendo expressa o direito do cidadão de decidir. O problema surge quando é arruinado pela lógica plebiscitária ou, como neste caso, é instrumentalizado com base em interesses políticos faccionais. Ou pior, quando a sua natureza vinculativa é ridicularizada, como fez o ex-presidente Morales ao ignorar o resultado da consulta de 2016 sobre a reeleição. O referendo é demasiado importante para ser deixado às razões de presidentes fortes ou de governos fracos.
O que vem a seguir? A consulta interrompida deixou intactos os três temas que Arce pretendia levar ao voto popular. No dia seguinte, o governo, sem poder para decidir nada de substantivo sobre o subsídio aos hidrocarbonetos, deve gerir a cada vez mais insustentável “bicicleta” para obter divisas que garantam, pelo menos temporariamente, o fornecimento de gasolina e gasóleo. Hoje em dia há escassez parcial, longas filas e protestos dos transportadores. O setor produtivo, centrado no agronegócio da região de Santa Cruz, antecipa complicações para a sua atividade num dos centros económicos do país.
A restrição dos hidrocarbonetos anda de mãos dadas com a falta de dólares. A taxa de câmbio oficial inalterada de 6,96 bolivianos por dólar (com poucas variações nas últimas duas décadas) duplicou no mercado paralelo, desencadeada pela dificuldade de acesso a dólares no sistema financeiro e pela subsequente especulação. Isto resulta em aumento de preços, especialmente para produtos importados. A tríade combustível, dólares e inflação agita a bandeira de protesto de diferentes setores sociais, com elevado potencial de conflito no curto prazo. O governo reuniu-se com empresários privados e acordou uma agenda para enfrentar a tempestade, mas as ameaças de conflito social permanecem.
Quanto à distribuição de cadeiras na Câmara dos Deputados, a discussão ficou subordinada à renovada disputa e desconfiança em torno do Censo Demográfico Nacional, cujos resultados preliminares foram divulgados em 29 de agosto. “Somos 11.312.620 bolivianos e Santa Cruz é o departamento que mais cresceu e mais populoso”, titula o site do Instituto Nacional de Estatística (INE). Os dados geraram surpresa e rejeição por se distanciarem das estimativas populacionais do próprio INE.
Para além da importância dos dados atualizados sobre população e habitação para efeitos de planeamento e adoção de políticas públicas, as expectativas sobre os resultados do censo estão ligadas aos seus efeitos distributivos, recursos económicos e assentos. Pela primeira vez, Santa Cruz superou La Paz e é o departamento mais populoso da Bolívia. Contudo, não soma os 4.000.000 de habitantes que alguns esperavam, mas sim pouco mais de 3.100.000. “Roubaram-nos um milhão”, denunciou a liderança cívica de Santa Cruz, articulada no Comité Pró Santa Cruz, e antecipou mobilizações contra a “fraude censitária ”.
Com os dados populacionais por departamento, o quadro de assentos se movimentará muito pouco. Santa Cruz ganha apenas um deputado (aspirava a pelo menos três) e soma 29 cadeiras de 130, o mesmo número de deputados de La Paz. A vaga conquistada pelo Santa Cruz possivelmente será perdida pelo departamento de Chuquisaca. Os dados já foram enviados formalmente pelo INE ao órgão eleitoral para que nas próximas semanas possa realizar a distribuição dos assentos que irão reger as eleições de 2025.
E o que acontece com a reeleição da dupla presidencial? Esta questão, que polarizou os cidadãos no referendo de 2016 e, especialmente, nas fracassadas eleições de 2019 relativas à reeleição de Evo Morales, continua na agenda. Mas à disputa persistente entre masistas e antimasistas que hoje dividiu a sociedade boliviana se soma a disputa opaca entre evistas e arcistas, que divide o próprio partido no poder (o MAS e as organizações sociais que o compõem). O governo aposta no veto da candidatura de Morales, enquanto ele alerta para uma convulsão social em defesa do seu “direito humano” de concorrer “por bem ou por mal”.
A disputa pela candidatura presidencial ameaça explodir o próprio instrumento político que governa a Bolívia desde 2006, com três vitórias consecutivas de Evo com maioria absoluta de votos. Sem um acordo entre o partido, controlado por Morales, e as organizações sociais de origem, cooptadas por Arce, o MAS-IPSP não consegue convocar um congresso ordinário para renovar a sua liderança de acordo com o estatuto orgânico. Este bloqueio por si só poderia levar a uma segunda repreensão por parte da autoridade eleitoral: o partido estaria a apenas mais uma sanção de perder o seu estatuto jurídico e, portanto, ficar de fora das eleições. Seria implausível que o maior partido político da história democrática da Bolívia fosse marginalizado pela luta interna das suas facções.
Quem deveria decidir sobre a possível reeleição de Morales? Em princípio, não será mais definido em referendo. Nem uma estranha menção à inconstitucionalidade da reeleição, mesmo não consecutiva, do Tribunal Constitucional, no âmbito de uma decisão sobre outra questão, parece suficiente para bloquear o caminho do ex-presidente. É provável que os novos magistrados eleitos em dezembro se pronunciem. Enquanto isso, a determinação poderá caber ao Tribunal Superior Eleitoral, quando deverá verificar o cumprimento das exigências dos presidenciáveis. Mas estamos longe desse momento.
O óbvio, face ao novo ciclo eleitoral, é que não haverá eleições primárias para os binómios presidenciais, que no dia 1 de dezembro será realizada uma votação na Bolívia numa eleição questionada de altas autoridades judiciais, e que há certezas sobre a data das eleições gerais: 17 de agosto de 2025. Mas não se sabe como decorrerão estas eleições no meio da polarização, da implosão massista e da fragmentação da oposição (até à data há 16 pré-candidatos à Presidência, o maioria mais próxima da rede social X do que na rua).
Três palavras definem bem o contexto atual na Bolívia: crise, polarização e incerteza. Nada de novo no panorama regional. Uma crise sobrecarregada que combina bloqueio político, governo dividido, degradação das instituições, instabilidade econômica e ventos de conflito social; um cenário distante da estabilidade política e do crescimento económico do período 2006-2019. A polarização persistente, que veio para ficar, é herdeira de tensões não resolvidas de uma longa história, alimentadas pela fratura da crise de 2019. E um sentimento de elevada incerteza e pessimismo sobre o futuro se espalhou na sociedade boliviana. As percepções são importantes. E os discursos também.
Até há algum tempo, a oposição denunciava que o Presidente Arce, apoiado pelos magistrados do Tribunal Constitucional e por uma crise provocada no órgão eleitoral, procuraria prolongar o seu mandato, além de abrir caminho para um novo mandato. Hoje o governo denuncia que a oposição de direita e o evismo, que impedem a aprovação de créditos no Parlamento, estão a criar uma convulsão para forçar a demissão do presidente e a convocação antecipada de eleições. Evistas e arcistas acusam-se mutuamente de “concordarem com a direita”.
Entre esses extremos, a questão prospectiva é em que condições o país chegará às eleições de 2025. Nas ruas, a questão é mais simples: chegará?
A Bolívia está perto de uma crise de governação? Caminhará para uma crise de representação política como a que vários dos seus vizinhos já atravessam? Ou está no limiar de uma crise estatal? Devemos caracterizar a crise. Na análise dos cenários de curto prazo não parece haver luz: o melhor parece ser que tudo continue igual, que a situação não piore.
Entre os ingênuos do “apesar de tudo, vamos avançar” e os profetas entusiasmados do colapso, abundam as misérias e as minúcias da política política. É o novo “tempo das pequenas coisas”, que lamentou o político e intelectual Sergio Almaraz no final da Revolução Nacional de 1952. A menos de um ano do Bicentenário, que será comemorado em 6 de agosto de 2025, nenhum ator relevante não está pensando no longo prazo nem traçando visões para o país. No debate político e na conversa pública, vão-se apagando os vestígios do processo pós-constituinte e dos seus horizontes de refundação. A transição e o ajustamento – e as pequenas lutas políticas – permanecem.
Assim, o desafio após o frustrado referendo de Arce continua a ser ganhar tempo sem naufragar. Pelo menos até a renovação do Poder Executivo, uma nova correlação no Poder Legislativo e a recomposição do campo político (afastando-se do MAS-IPSP como partido dominante). É uma espécie de contagem decrescente com cenários de curtíssimo prazo em que ninguém sabe qual será a natureza da transição nem quem serão os seus protagonistas.
Se no MAS a luta é entre Evo Morales e Luis Arce, na oposição não surgem neste momento novas figuras. Com tristeza para alguns, euforia para outros, percebe-se um desvio incerto do projeto popular plurinacional que vem da histórica Marcha indígena pelo Território e Dignidade de 1990 e foi consagrada com a vitória de Morales no final de 2005.
E o ajuste? É claro que Arce, sem força decisiva, não adotará medidas drásticas para enfrentar a crise. Mas a “inevitabilidade” do ajustamento já circula no senso comum. Embora sem muita ideia sobre seu alcance e natureza, possivelmente será tarefa do próximo governo. Envolverá recorrer ao Fundo Monetário Internacional? Incluirá privatizações e ajustamentos tradicionais? Algum outro esquema de financiamento é viável? Será com uma política de choque ou com uma aterragem suave? Quem pagará a conta? Estas são questões que não serão incluídas em nenhum referendo.
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A crise boliviana e o tempo das pequenas coisas. Artigo de José Luis Exeni Rodríguez - Instituto Humanitas Unisinos - IHU