22 Agosto 2024
Em um contexto econômico que parece remeter a Bolívia à crônica conjuntura dos anos de 1980, o governo de Luis Arce está promovendo diálogos pela economia e pela produção por todo o país, através de reuniões com empresários e movimentos sociais (afins ao governo).
A reportagem é de Edu Montesanti.
Após mais de um ano negando a crise que apenas se agrava dia a dia, o próprio presidente Arce dialoga com o setor privado, pessoalmente em La Paz. Embora positiva, a iniciativa é bastante tardia, quando a situação já atingiu nível grave, além de se poder prever que será ineficiente.
O governo sinaliza que cederá ao agronegócio, na reivindicação do uso da “biotecnologia”. Entre propostas, até agora, de medidas que não parecem vir a solucionar os problemas estruturais do país – se é que haverá consenso entre o governo e os segmentos participantes das mesas de diálogo, o que tampouco parece viável para, pelo menos, a maioria dos (poucos) temas em discussão.
O poder aquisitivo dos bolivianos diminui drasticamente com o passar do tempo, a atividade econômica encontra-se estagnada na Bolívia: a inflação dispara continuamente, há escassez de dólares desde fevereiro de 2023 e de óleo diesel já há quase um ano, e tem havido nas últimas semanas dificuldade até de se encontrar gasolina nos postos de gasolina de todo o país, gerando longas filas de automóveis.
Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), exatamente a Bolívia é o país com mais trabalho informal em todo o mundo. Na América Latina e no Caribe, 53,7% da força de trabalho está no setor informal de acordo com os dados mais recentes, de 2022.
O nível de trabalhadores informais segundo dados oficiais chega a 84,9 por cento, cuja maioria, muito provavelmente, seja de vendedores ambulantes. Trata-se de valor estimado pelo governo, que deve ser bem superior ao declarado oficialmente.
O número de trabalhadores informais na Bolívia esteve em cerca de 80% por longos anos até o início da pandemia do coronavírus em 2020, ainda longe de ter sido superada pela Bolívia como, recentemente, reconheceu o presidente Arce na tentativa de justificar a atual crise financeira.
É altamente provável que os trabalhadores informais bolivianos hoje ultrapassem 90%. Nas considerações do governo local, o desemprego esteve em torno de 4,1% em março deste ano, o que faria da Bolívia o país sul-americano com menor taxa de desemprego. A grande distorção de tal cifra reside no fato de que, neste cálculo, considera-se ocupado na Bolívia até mesmo os vendedores ambulantes individuais, a massa de 85% de trabalhadores informais que, em muitos casos, há anos não desenvolvem nenhuma atividade formal e nem buscam trabalho.
A miséria já se faz intensamente presente em todos os cantos do país andino, como em muitos anos não se via. Cenário de caos que, evidentemente, agrava os problemas sociais.
Entre janeiro e março deste 2024, foram registados 272 conflitos sociais em todo o país por parte de diferentes setores sociais através de bloqueios de estradas, marchas, greves, entre outras ações de protesto.
Em abril, Arce disse que o gás havia acabado, e que não havia de onde tirar dinheiro para solucionar o problema. Uma dos maiores riquezas da Bolívia, o gás natural foi, durante anos, a principal fonte de renda do Estado.
“O gás acabou. Estamos fazendo explorações novamente para ver se há mais gás. Não temos esses recursos e quando queremos emprestar, a direita e a ala evista nos negam a aprovação de créditos na Assembleia”, disse o presidente Arce então.
E acrescentou: “Quando há demanda por mais obras, portanto, não há de onde tirar dinheiro”, ao mesmo tempo que culpava Evo Morales pelo que qualifica de má gestão do gás boliviano – sendo este um dos pontos que motivam trocas de acusações entre Arce e Morales atualmente.
Em parte pela diminuição da importação de gás natural, Arce justificou a escassez de dólares no último dia 16, em meio a mais um dia de diálogo com o empresariado boliviano. O estrangulamento “que a economia nacional enfrenta hoje é a escassez de dólares americanos, em parte devido à diminuição das exportações de gás, mas também foi identificado que esse estrangulamento tem de ser corrigido com um trabalho conjunto entre o setor privado e o governo nacional”, afirmou o presidente boliviano.
No entanto, Arce havia afirmado no dia 7 de junho, no fórum de São Petersburgo na Rússia, que há estabilidade econômica na Bolívia e que o modelo económico atual “demonstrou a capacidade de reduzir níveis de pobreza” no pais sul-americano.
Poucos dias mais tarde, no dia 13 de junho, em encontro com o presidente paraguaio Santiago Peña, em Assunção, Arce exaltou a economia da Bolívia: “As duas economias mais dinâmicas [boliviana e paraguaia], e as que mais crescem no a região”.
Segundo o site econômico Datamacro, os habitantes da Bolívia têm um padrão de vida muito baixo em relação aos 196 países do ranking do Produto Interno Bruto (PIB) per capita. Em relação ao Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), os bolivianos apresentam baixa qualidade de vida.
“A Bolívia ocupa o 150º lugar entre 196 que compõem o ranking Doing Business, que classifica os países de acordo com a facilidade que oferecem para fazer negócios”, relata o Datamacro.
Em novembro de 2022, o Banco Mundial observou que a pobreza na Bolívia tinha crescido 8% entre 2011 e aquele mesmo ano. Meses antes, em maio um estudo realizado pelo Centro Boliviano de Estudos para o Trabalho e o Desenvolvimento Agrário (Cedla) constatou que, em média, sete em cada dez domicílios na Bolívia são multidimensionalmente pobres.
A pobreza multidimensional não se refere apenas à pobreza monetária relacionada a rendimentos insuficientes, mas também leva em conta o “acesso desigual aos recursos, monetários ou não, a serviços, proteção social, o acesso ao poder, e a voz ou segurança humana, entre outros aspectos”, segundo o Cedla.
No dia 16 deste mês, sindicalistas, aposentados, profissionais de saúde e microempresários saíram às ruas de La Paz para um “panelaço”, como medida de pressão junto ao governo nacional pela alta seguida dos preços dos alimentos da cesta básica. E pelo que consideram as causas disto, segundo os manifestantes fazendo com que já não haja recursos sequer para comprar comida, denunciando que “há fome entre o povo”: escassez de dólares e de combustíveis.
Diante deste cenário, as mesas de diálogo promovidas pelo governo omitem diversos fatores-chave. Não abordam nenhum problema prático enfrentado pela sociedade boliviana como a trágica situação do sistema público de saúde, segurança, educação e seguridade social como um todo.
Além de excluir temas urgentes como saneamento básico, moradia e o altamente problemático transporte público, o qual também tem motivado protestos nestes dias envolvendo, inclusive, forte controvérsia na hipotética subida dos preços da passagem que estrangulariam ainda mais a sociedade diante de péssimo serviço através de veículos obsoletos em vias públicas desastrosas, que dia a dia produzem acidentes graves por todo o país.
No caso da habitação existe alarmante déficit de, ao menos, um milhão e meio de moradias segundo dados mais recentes, enquanto há um total de 12,2 milhões de habitantes na Bolívia.
Uma proposta bastante interessante do governo tem sido o fortalecimento da industrialização com substituição de importações, permitindo que o empresariado identifique setores produtivos potenciais a ser explorados. O que se pode esperar deste projeto é, contudo, algo no mínimo bastante duvidoso considerando a realidade política e social da Bolívia.
Em 6 de agosto, na tentativa de dar resposta à crise econômica, Arce propôs realizar referendo em dezembro deste ano para três temas específicos: continuação ou não do subsídio à importação de combustíveis, sobre a distribuição pelos nove departamentos (regiões) dos 130 deputados da Assembleia Legislativa, e sobre a limitação ou não da reeleição presidencial de forma continua ou descontinua.
Ao mesmo tempo, alertou que o seu governo introduzir no mercado novas gasolinas não subsidiadas, além das que já existem e têm preços equivalentes à metade dos valores médios da América do Sul. Desta forma, espera reduzir o contrabando de combustíveis baratos aos países vizinhos, o que aumentou drasticamente a necessidade do país de importar produtos petrolíferos.
Eliminar os subsídios à importação de gasolina e diesel existentes desde 2004 na Bolívia, o que de mais prático a consulta popular apresenta a fim de tentar sanar a crise, seria um suicídio econômico pois permite o fornecimento de gasolina e óleo diesel ao mercado interno a preços inferiores ao seu custo real, favorecendo também a segurança alimentar da sociedade boliviana, já em sério risco.
Contudo, tal eliminação é antiga demanda das classes dominantes bolivianas sob alegação de que causa déficit fiscal ao país. O governo havia afirmado, em janeiro deste ano, que não retiraria os subsídios aos combustíveis.
Neste ano, o próprio Cedla informou, na publicação Economia do tráfico de drogas: desinstitucionalização e políticas na Bolívia, que a produção de cocaína injeta anualmente mais de 800 milhões de dólares na economia boliviana, cujo PIB em 2023 foi de 45.464 milhões de dólares.
As receitas das exportações de cocaína podem ser comparadas com até 41% (2,88 mil milhões de dólares) das exportações legais registadas em 2020 (6,974 mil milhões de dólares).
“O tráfico de drogas, junto com outras atividades ilícitas como o contrabando e a mineração ilegal, são o que mantém a economia boliviana com certa estabilidade”, segundo Carlos Arze Vargas, pesquisador do Cedla.
Em outubro de 2021, o jornal brasileiro O Estado de S. Paulo publicou ampla reportagem intitulada Bolívia vira santuário do Narcosul, o cartel da droga do PCC, que falava do crescimento do PCC [Primeiro Comando da Capital, organização criminosa de São Paulo] na Bolívia. Investigadores da Polícia Federal brasileira qualificaram a Bolívia de “santuário do tráfico de cocaína”.
Naquela época, o governo boliviano afirmou que iria processar o jornal paulista por calúnia. O governo boliviano nunca processou o jornal brasileiro, e o tempo apenas mostrou que o meio de comunica do país vizinho estava certo – o que não surpreende na Bolívia, a ninguém.
A presença de muitos membros do PCC, principalmente em Santa Cruz de la Sierra (cidade mais rica da Bolívia), tornou-se desde então pública no país andino, confirmando a reportagem de O Estado. E a produção de folhas de coca – principalmente em Chapare, de onde mais sai a droga – só cresceu na Bolívia, o que é reconhecido ano após ano pela ONU.
Enquanto o contrabando é outro grave problema da economia boliviana, recente estudo divulgou que 48% dos cidadãos na Bolívia acreditam que esta atividade ilícita é necessária, pois segundo eles contribui para a riqueza do país.
Os dois aspectos acima abordados não poderiam ser problemas bolivianos historicamente endêmicos, se não tivessem como fundo a corrupção que permeia todos os segmentos – começando pelo sistema de justiça -, e longe de ser minimamente tocada.
Nas atuais mesas de diálogo nacional, ao mesmo tempo que Arce não fez nenhuma menção a produção e ao tráfico de cocaína, comprometeu-se a “continuar e fortalecer” o que ele denomina “luta” de seu governo “contra o contrabando e a corrupção” – sem especificar como fará isso, nem apresentar resultados que confirmem a alegada eficácia desta “luta”. Previsivelmente, ninguém nas mesas de diálogo, na imprensa nacional, na oposição política e nem entre os movimentos sociais, cobram-no por esta omissão.
Carlos Gustavo Machicado, graduado em Economia pela Universidade Católica da Bolívia, prevê que “uma crise na balança de pagamentos se aproxima, como em 1982”. Naquela época, a Bolívia entrou em um longo ciclo de hiperinflação, e profunda miséria.
No dia 11 de junho deste ano, o Banco Mundial publicou relatório sobre Perspectivas Econômicas Mundiais correspondente a junho de 2024, no qual a previsão para a Bolívia estima crescimento do PIB em 1,4% para este ano. Trata-se de cifra 0,1% inferior ao estimado em janeiro, mas igual ao estimado em abril. Para o ano de 2025 e 2026, estima-se que o país cresça 1,5%.
O que leva a considerar que dará em nada o atual e tardio diálogo promovido pelo governo em favor da economia boliviana, e diversos analistas bolivianos estão colocando esta possibilidade, é o fato de que este governo segue sem rumo: simplesmente não há modelo econômico no país andino.
Há, sim, projeto político de manutenção do poder e dos próprios problemas estruturais do país, precisamente os sustentáculos do poder e dos privilégios que ele oferece.
“Agenda” histórica que não se limita a este governo nem a seu partido político, mas nem por isso se torna menos deplorável e sendo, exatamente isto, o que trouxe a Bolívia, novamente, a esta situação desoladora.
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Bolívia: diálogo pela economia e produção - Instituto Humanitas Unisinos - IHU