26 Novembro 2024
O artigo é de Anselmo Borges, padre e professor de filosofia, publicado por Religión Digital, 24-11-2024.
Quando olhamos para os horrores do mundo hoje, concretamente para a Ucrânia e o Médio Oriente, é o horror pura e simplesmente, pensando concretamente nas vítimas inocentes. Mas não foi sempre assim? Vejamos Auschwitz. Vamos lá e ficamos estarrecidos. Bento XVI foi lá também e deixou estas palavras: Há “um silêncio que é um grito interior para Deus: Por que te calaste? Por que quiseste tolerar tudo isto? Onde estava Deus nesses dias? Por que se calou?”
Ele deixou uma encíclica sobre a esperança — Spe salvi — e nela debruça-se sobre uma pergunta decisiva, “a pergunta fundamental da filosofia” (Max Horkheimer): o que podem esperar as incontáveis vítimas inocentes da história? Quem lhes fará justiça? Elas clamam, um grito ensurdecedor percorre a história.
E ergue-se um ateísmo moral precisamente por causa das injustiças do mundo e da história. “Um mundo no qual há tanta injustiça, tanto sofrimento dos inocentes e tanto cinismo do poder, não pode ser obra de um Deus bom”. Quase se poderia dizer que se é ateu ad majorem Dei gloriam, para a maior glória de Deus, como se, perante o horror do mundo, a justificação de Deus fosse não existir. É-se ateu por causa de Deus.
Afastado Deus, deve ser o Homem a estabelecer a justiça no mundo. Mas não será esta uma pretensão arrogante e intrinsecamente falsa? Quem não ouve o eco das palavras de Sófocles: Na terra “há muita coisa terrível, mas nada existe mais terrível do que o homem”. Tem, pois, razão Bento XVI, ao acrescentar: “Um mundo que tem de criar a sua justiça por si mesmo é um mundo sem esperança. Ninguém nem nada responde pelo sofrimento dos séculos”.
Aqui, ele lembra a Escola de Frankfurt, a saber, Max Horkheimer e Theodor Adorno, que viveram filosoficamente a inconsolável “tristeza metafísica” da impossibilidade de fazer justiça às vítimas da história. De fato, mesmo supondo, no quadro do marxismo e da ideia do progresso moderno, que algum dia fosse possível erguer uma sociedade finalmente justa, transparente e reconciliada, ela não poderia ser feliz, já que ou essa sociedade se lembrava de todas as vítimas do passado, que não participam dela, e seria atravessada pela infelicidade, ou não se interessava por elas e então não era humana, porque pouco solidária.
Horkheimer e Adorno exprimiram uma filosofia em tenaz: por um lado, não podiam acreditar num Deus justo e bom; por outro, há uma verdade da religião, apesar de todas as suas traições no conluio com o poder e os vencedores: a religião “no bom sentido” é, segundo Horkheimer, “o anelo inesgotável, sustentado contra a realidade fática, de que esta mude, que acabe o desterro e chegue a justiça”. Não se trata de um desejo egoísta, mas da esperança contrafática de que a realidade dominante da injustiça não tenha a última palavra.
Daí, o “anelo do totalmente Outro”, o “anelo da justiça universal cumprida”, “a esperança de que a injustiça que atravessa a história não permaneça, não tenha a última palavra”. E Adorno também escreveu que, frente às aporias da razão, neste domínio, a única filosofia legítima seria “o intento de contemplar todas as coisas como aparecem à luz da redenção”. Embora se não possa afirmar nada para lá da imanência, a pergunta pela esperança truncada das vítimas, que acusam o mundo da história dos vencedores, obriga a pensar para lá dos limites da imanência, colocando a pergunta pelo Absoluto enquanto pergunta pela justiça universal.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O homem, questão para si mesmo: as vítimas inocentes. Artigo de Anselmo Borges - Instituto Humanitas Unisinos - IHU