Cirne-Lima propôs um projeto filosófico capaz de reconstruir criticamente a herança neoplatônica e dialogar com a ciência contemporânea, considera Eduardo Luft
Discípulo de Cirne-Lima, Eduardo Luft, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, afirma que o pensamento do mestre “gira em torno de uma grande intuição: a ideia de que o sistema hegeliano, em vários aspectos profundamente dialético, contém algumas características dificilmente conciliáveis com exigências fundamentais da própria dialética”. Para o pesquisador, as pesquisas de Cirne-Lima tentam superar os déficits do hegelianismo. Mas faz uma ressalva: “Creio que ainda permanece presa demais ao modelo de filosofia sistemática desenvolvido por Hegel”. Considerando os ensinamentos aprendidos, Luft propõe mudanças mais profundas, elaborando um novo sistema de filosofia. “Suponho, por exemplo, inevitável superar o próprio idealismo objetivo, ou seja, a contraposição entre a esfera ideal e o mundo real, entre Lógica e Filosofia do Real ainda presente em Hegel, e legada ao projeto de sistema cirne-limiano”.
Eduardo Luft (Foto: PUCRS)
Eduardo Luft é graduado em Jornalismo, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), onde cursou mestrado e doutorado em Filosofia. Sua dissertação Para uma crítica interna ao sistema de Hegel, e sua tese Método e sistema: investigação crítica dos fundamentos da filosofia hegeliana, foram orientadas pelo Prof. Dr. Carlos Roberto Velho Cirne-Lima. De sua produção intelectual, destacamos os livros Para uma crítica interna ao sistema de Hegel (Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995), As sementes da dúvida: investigação crítica dos fundamentos da filosofia hegeliana (São Paulo: Mandarim, 2001) e Sobre a coerência do mundo (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005).
A entrevista foi publicada originalmente na revista IHU On-Line, no. 261, 09-06-2008
IHU On-Line – Como é a pessoa Cirne-Lima?
Eduardo Luft – Um amigo, um companheiro, aberto ao diálogo e receptivo a “provocações” intelectuais, mas também consciente da necessidade de direcionar o pensamento jovem, quando este tende a se perder nos meandros intrincados da especulação e, por outro lado, ciente da necessidade de liberar a especulação quando entravada pelos entulhos da academia. Enfim, um mestre no sentido estrito do termo.
IHU On-Line – Quais são os aspectos que destacaria no pensamento de Cirne-Lima? Em que reside sua originalidade e ousadia?
Eduardo Luft – Gostaria de destacar a clareza do pensamento e a força especulativa ao propor um novo projeto de sistema de filosofia, capaz, ao mesmo tempo, de reconstruir criticamente a herança neoplatônica e dialogar com a ciência contemporânea. O projeto de Cirne-Lima vai na direção de uma deflação da ontologia já presente na biologia contemporânea (Dawkins, Kauffman), e recentemente aplicada com igual sucesso à cosmologia (Lee Smolin). Ele também busca explicitar os traços em comum – o holismo, a ontologia relacional e processual – que unem a dialética e a teoria dos sistemas adaptativos complexos. Propõe a correção do projeto de sistema hegeliano no sentido de abandonar a tendência ao necessitarismo, dando espaço a uma teoria da liberdade em ética e política; o corajoso abandono das pretensões de fundamentação última do conhecimento; e a ênfase em um diálogo profícuo com as diversas tradições filosóficas. Todos estes tópicos merecem destaque em sua obra.
IHU On-Line – Em entrevista à IHU On-Line (número 217, 30-04-07), você afirma ser muito importante a correção que Cirne-Lima faz ao sistema hegeliano. Tomando em consideração sua obra As sementes da dúvida, em que aspectos você concorda com essa correção, e em que pontos você proporia ajustes ou mudanças?
As sementes da dúvida:
investigação crítica dos fundamentos da filosofia hegeliana
por Eduardo Luft
(São Paulo: Mandarim, 2001)
Eduardo Luft – Acredito que o pensamento de Cirne-Lima gira em torno de uma grande intuição: a ideia de que o sistema hegeliano, em vários aspectos profundamente dialético, contém algumas características dificilmente conciliáveis com exigências fundamentais da própria dialética.
Por exemplo: a ênfase dialética no caráter correlativo e simétrico das categorias contrapostas que fundam o sistema de Filosofia convive mal com a assimetria entre necessidade e contingência presente na teoria modal hegeliana, assim como o dinamismo infinito característico da dialética é dificilmente compatível com a tese hegeliana de um acabamento ou de uma completude do saber, bem como de uma plenificação do processo civilizacional em certo momento da história das culturas.
Cirne-Lima percebeu estes problemas e a urgência de sua superação. Sua proposta vai realmente na direção de uma superação daqueles déficits do hegelianismo, mas creio que ainda permanece presa demais ao modelo de Filosofia sistemática desenvolvido por Hegel. Acredito que as mudanças devam ser mais profundas, terminando na necessária elaboração de um novo sistema de Filosofia, com outra configuração. Suponho, por exemplo, inevitável superar o próprio idealismo objetivo, ou seja, a contraposição entre a esfera ideal e o mundo real, entre Lógica e Filosofia do Real ainda presente em Hegel, e legada ao projeto de sistema cirne-limiano.
IHU On-Line – Como os estudiosos de Hegel percebem essa empreitada de Cirne-Lima? E como foi recebida, em específico, a correção de que quando fala em contradição, Hegel quer dizer contrariedade? Qual é a relevância desse aspecto na correta interpretação do que Hegel quis dizer?
Eduardo Luft – É preciso dar tempo para o amadurecimento da recepção da proposta de Cirne-Lima, e o Colóquio Depois de Hegel, iniciativa de Adriano Naves de Brito, contribuiu imensamente neste sentido. Quanto à proposta de Cirne-Lima de utilizar o termo “contrariedade” em lugar de “contradição”, trata-se de uma tentativa de responder a conhecidas objeções por parte de pensadores analíticos de uma suposta inconsistência do pensamento dialético. Hegel e os dialéticos estariam louvando as contradições e ferindo intencionalmente leis lógicas como o princípio de não-contradição. Há três tipos predominantes de resposta a esta indagação: enquanto alguns defendem que Hegel estaria de fato e intencionalmente recusando leis lógicas, outros acreditam que a dialética fomenta e exige uma nova lógica; por fim, há aqueles que julgam necessário enfatizar a compatibilidade entre lógica e dialética. Cirne-Lima prefere o terceiro tipo de resposta, e eu o sigo neste ponto, mas não creio que seja preciso substituir contradição por contrariedade. Procurei demonstrar, em As sementes da dúvida, que a dimensão negativo-racional do lógico, assim como concebida por Hegel, pode ser considerada como um tipo de refutação por reductio ad absurdum de certo modo de tratamento das relações categoriais. A contradição é, assim, a marca de um impasse do pensamento ao tratar categorias correlativas como se pudessem subsistir isoladas umas das outras. Mas é certo que Hegel dizia mais do que isto: a emergência de contradições era, para ele, um momento inevitável do percurso dialético, e, de certo modo, a razão do movimento categorial-ideal (em um primeiro momento) e real (em um segundo momento). Aqui, reside a dimensão ousada do pensamento hegeliano que filosóficos analíticos têm dificuldade de aceitar. Mas contradições são fatos do pensamento e da realidade, mesmo que fatos a serem superados. Isso Cirne-Lima mostrou muito bem.
IHU On-Line – Qual é a importância da formalização da Ciência da Lógica, realizada por Cirne-Lima e Carlos Soares? E por que esse trabalho não teve a devida recepção no meio acadêmico?
Eduardo Luft – Creio que a mensagem original era um convite ao diálogo entre estas duas tradições antagônicas do pensamento ocidental, analítica e dialética. A formalização também vinha a suprir a busca de clareza, traço característico do pensamento de Cirne-Lima. Mas a formalização tem seu preço. No colóquio, os diversos colegas analíticos deixaram claro que a tradução da dialética em linguagem formal termina em um inevitável empobrecimento. É claro que seria melhor propor uma lógica própria suscetível de uma formalização menos empobrecedora (os colegas Olavo Filho e Julio Cabrera seguem por este caminho, com resultados muito interessantes). Mas creio que o objetivo maior de Cirne-Lima tenha sido a clarificação de seu pensamento para si mesmo, e conseqüentemente para seu público. Acho que isso é meritório. Eu mesmo busquei uma proposta de formalização em As sementes da dúvida, e sei o quanto o esforço da formalização contribui para o processo de clarificação do pensamento. Um exemplo: a formalização exige clareza acerca da pergunta pelo sujeito lógico da predicação dialética, se explicitamos a estrutura conceitual e não proposicional típica do pensamento hegeliano na estrutura de sujeito e predicado (ou argumento e função). Qual o sujeito da Ciência da Lógica, qual o seu tema, de que ela está falando? Hegel convida a traduzirmos o anacoluto “ser” por “O absoluto é ser”. Mas o que vem a ser o “absoluto”? Com a formalização, somos forçados a responder a esta pergunta. Cirne-Lima diz: “O absoluto são todas as coisas”. Assim poderíamos traduzir “O absoluto é ser” por “todas as coisas são ser”. Creio residir aqui uma falácia, pois a Lógica de Hegel não fala de “todas as coisas”, e sim da urdidura lógica, ou lógico-categorial que estrutura todas as coisas, ela fala da essência do mundo, por assim dizer. A Lógica é, portanto, uma teoria das categorias objetivas, e o sujeito lógico da predicação dialética é sempre aquela categoria universalíssima que estrutura e funda todo o vasto sistema categorial, a ser explicitada no transcurso de constituição deste próprio sistema. Deveríamos traduzir, portanto, “o absoluto é ser” por “a ideia é ser”. A Lógica fala só de categorias e, ao final, da categoria de todas as categorias, a ideia. Esta formalização foi proposta por mim, como disse, em As sementes da dúvida, e segue, portanto, um caminho diferente de Cirne-Lima. Mas, em ambos os casos, o esforço de clarificação é bem-vindo.
IHU On-Line – Como aluno e orientando de Cirne-Lima, quais são os ensinamentos que com ele aprendeu? Que episódios marcantes você destacaria desse convívio acadêmico?
Eduardo Luft – Conheci Cirne-Lima no Instituto Goethe quando, ao participar de uma palestra, fiquei impactado por uma pergunta por ele lançada ao palestrante. Eu mal havia começado meus primeiros passos na arena filosófica, e percebi intuitivamente uma certa comunhão de interesses e perspectivas entre o seu modo de pensar e o meu. Pedi sugestão de leitura, e trocamos algumas palavras. Por feliz coincidência, quando iniciei meus estudos no PPG de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Cirne-Lima estava começando na nova casa, depois de se aposentar na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Desde o primeiro momento, percebi que navegávamos na mesma direção, embora só com o passar do tempo aquelas águas, ondulações, o mapa e a ilha almejada pelo trabalho do pensamento foram ficando claras para mim. Não houve outro filósofo que tenha me influenciado tanto, intelectual e existencialmente, e só posso ser grato por esta trajetória. Espero que possa, de minha parte, continuar navegando, e transferindo para as próximas gerações o mapa que recebi de suas mãos e que, com mudanças aqui e ali, enfatiza a mesma direção que temos seguido desde o início – Cirne-Lima, eu, e de certo modo todos nós.
IHU On-Line – Cirne-Lima é famoso entre os estudantes por esmiuçar em termos simples temas complexos da filosofia de Hegel. Podemos dizer que filosofar depois de suas aulas ficou mais acessível?
Eduardo Luft – Como aluno, lembro da paixão de Cirne-Lima pela Filosofia, sua abertura constante ao diálogo e às críticas, sua ênfase no rigor e sua busca por respostas aos problemas centrais da Filosofia. Lembro da ousadia e do ouvido sempre aberto a sugestões, indagações, novas reflexões. Quando eu supunha ter compreendido boa parte de suas ideias, surgiam novas perguntas, novas propostas de solução, novos caminhos. As aulas eram sempre, portanto, novas aulas, e assim a caminhada prosseguia e prossegue. Enfim, uma caminhada plena de sentido.