16 Novembro 2024
Talvez um mundo sem prisões ainda esteja distante, mesmo que teimosamente queremos caminhar nesta direção. Mas prisões sem tortura são uma obrigação, um dever absoluto e urgente que o Estado deve cumprir, considerando o paradoxo de que, enquanto tudo isso continuar, o poder público também precisa ser visto como um agente criminoso a ser corrigido.
O artigo é de Pe. Dário Bossi, MCCJ, assessor da Comissão para a Ação Sociotransformadora da CNBB.
José, Daniel, Jeremias, Paulo, João, Pedro... O Relatório de tortura nas prisões do Brasil, que está em suas mãos, traz a história dessas e de muitas outras pessoas que, por diversos motivos, acabaram atrás das grades e, sem justificativa nenhuma, sofreram violações e abusos, muito além da privação da liberdade.
Provavelmente, a maior parte das pessoas não conhece esses nomes e suas histórias. Acontece, porém, que esses nomes são também de personagens bíblicas que foram aprisionadas e -como nos casos de João Batista, do profeta Daniel ou do apóstolo Paulo - torturadas e espancadas. Ao lado deles, está Jesus de Nazaré, preso, torturado e injustamente condenado à morte.
O Evangelho de Mateus afirma que “o que fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes” (Mt 25,40). Nossa sociedade continua replicando, há centenas de anos, um modelo de repressão do crime que fomenta o ódio, amplifica a desigualdade e semeia violência. A superlotação das cadeias brasileiras, o distanciamento das pessoas aprisionadas de seus familiares e da comunidade, a carência de programas de recuperação, estudo, trabalho e promoção da pessoa desumanizam os detentos e as detentas, e podem alimentar no coração dessas pessoas, em lugar de percursos de reconciliação, o medo, a raiva e a vingança. Chega-se ao limite do Estado favorecer a estruturação do crime organizado, alimentando com financiamentos públicos um sistema prisional que se tornou um incubador das facções.
A Pastoral Carcerária há cinquenta anos busca abrir brechas de humanidade e clamar por justiça e direitos, neste condenável sistema penal. Inspirada na Doutrina Social da Igreja, que ensina que a caridade tem uma dimensão assistencial, outra promocional e ainda outra transformadora, a Pastoral Carcerária atua em nestes três níveis: visita constantemente as prisões, levando esperança, escutando e acompanhando a vida dos encarcerados; defende a dignidade humana de todas as pessoas, denunciando a tortura e todo tipo de violação e reivindicando o respeito a seus direitos e oportunidades de recuperação efetiva; sonha com uma transformação radical da sociedade e com a utopia de um mundo sem cárceres.
É a loucura evangélica e a visão profética de um mundo sem prisões, em que a justiça seja restaurativa e não punitiva. A Pastoral sonha com uma sociedade onde os conflitos sejam resolvidos de maneira compassiva, sem o recurso à violência e ao encarceramento, investindo em círculos de paz e percursos de verdade e reconciliação. Pode parecer algo totalmente distante e inalcançável, mas, como todas as utopias, esse sonho aponta para passos urgentes e concretos, como investimentos consistentes na prevenção do crime, na educação e na inclusão, e também escolhas corajosas de descriminalização das práticas que estão encarcerando uma maioria jovem, preta e periférica. Descriminalizar não significa absolver ou legitimar determinada conduta, mas sim buscar penas alternativas ao encarceramento, promovendo formas de justiça que não dependam da privação de liberdade.
Talvez um mundo sem prisões ainda esteja distante, mesmo que teimosamente queremos caminhar nesta direção. Mas prisões sem tortura são uma obrigação, um dever absoluto e urgente que o Estado deve cumprir, considerando o paradoxo de que, enquanto tudo isso continuar, o poder público também precisa ser visto como um agente criminoso a ser corrigido.
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José, Daniel, Jeremias, Paulo, João, Pedro... O Relatório de tortura nas prisões do Brasil. Prefácio de Dário Bossi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU