02 Outubro 2024
Em maio, o renomado especialista em segurança e desenvolvimento, Robert Muggah, foi convidado pelo secretário-geral das Nações Unidas para falar sobre geopolítica e crime organizado aos diretores das agências da ONU em Santiago. Para o especialista canadense radicado no Rio de Janeiro, o convite foi um sinal de que o aumento abrupto da violência em países como Equador, Chile, Brasil, México e o Caribe está enviando uma mensagem clara à comunidade internacional: não é mais possível ignorar o problema da segurança pública.
Há décadas, a América Latina e o Caribe lidam com grupos criminosos, mas a situação se degradou. Nos últimos 10 anos, a hiperglobalização, a transformação digital e a volatilidade atual da geopolítica provocaram uma mudança nos padrões e a taxa regional de homicídios aumentou, em média, 3,7% ao ano. Em 2023, 30 das 50 cidades com o maior número de homicídios do mundo estavam na região, e a insegurança domina a agenda de um número crescente de países.
Pelo Instituto Igarapé, um think tank no Rio de Janeiro, do qual é cofundador e diretor de inovação, o Dr. Muggah e seus colegas coletam informações por meio de plataformas de monitoramento, fomentam a colaboração e propõem soluções para esse desafio global.
A entrevista é de Daniela Mohor W., publicada por Revista Santiago, 25-09-2024. A tradução é do Cepat.
Qual é a sua opinião sobre a evolução do crime organizado na América Latina nos últimos anos?
A América Latina e o Caribe são, em muitos aspectos, o marco zero para o crime organizado. Isto se expressa de modo mais simples nas altas taxas de homicídios, de violência criminal e de tráfico de drogas, mas, na realidade, é muito mais profundo. É uma espécie de ecossistema que abrange atividades que vão das drogas e o tráfico de armas e de pessoas à extorsão, passando por produtos falsificados e o tráfico ilegal de minerais e vida silvestre. Além disso, agora, o cibercrime é massivo. Existe crime organizado em todo o mundo, mas parece estar concentrado em nosso continente.
A que isso se deve?
Isso se deve, em certa medida, ao fato de que em nossa região estão os três principais países produtores de cocaína (Colômbia, Peru e Bolívia), cuja produção atingiu um recorde nos últimos anos. Além disso, existem fatores estruturais que permitem que o crime organizado prospere, como a desigualdade: o nosso índice de Gini é um dos mais altos do mundo, apesar de ser heterogêneo. As taxas de desemprego juvenil são sustentadas e os níveis de educação baixos.
Por outro lado, tivemos uma urbanização desregulamentada muito rápida. E é necessário acrescentar o grande número de pessoas que trabalham no setor informal, as altas taxas de impunidade e a presença de sistemas muito dinâmicos de economias clandestinas, lavagem de dinheiro e corrupção. O problema é que o crime organizado evolui rapidamente, mas respondemos de forma muito lenta.
O tema da segurança é marcado por diferentes posições políticas. Isto dificulta a busca por soluções?
É um assunto tabu em muitos círculos. Não só porque foi ideologizado, mas porque o crime organizado também envolve atores políticos e econômicos “legítimos”. A ironia é que quanto mais você entende como ele funciona, mais arriscado se torna fazer algo a respeito. E, claro, foi politizado.
A esquerda tende a oferecer abordagens de prevenção, focadas no bem-estar social e que se concentram nas causas estruturais, mas não consegue estabelecer uma narrativa bem-sucedida sobre como enfrentar o crime. A direita, por outro lado, de alguma forma capturou a agenda e costuma oferecer soluções simples, como aumentar as punições, reduzir a maioridade penal e incorporar mais crimes na categoria de crime organizado, indo ao extremo das políticas de mão dura.
Embora o presidente de El Salvador, Nayib Bukele, seja agora o político mais popular na região, não sabemos quais serão os efeitos de suas políticas e também não é possível mensurar a presença do crime organizado apenas com base nos homicídios. Estes são frequentemente o resultado do uso instrumental da violência, mas também ocorrem quando há um desequilíbrio no mercado.
A violência que se nota no norte do Chile e no Equador, que antes existia na América Central e que agora se dá no Caribe, deve-se a disputas entre grupos pelo controle do mercado e do território. Só haverá uma redução da violência quando um grupo dominante emergir e se alcançar um novo equilíbrio.
Considera que esses níveis de violência estão colocando as democracias em perigo?
Os grupos criminosos estão saindo das sombras, colocando sua gente como candidatos e não só se infiltrando no sistema de justiça criminal e na polícia, mas também no setor financeiro, nas agências de contratação etc. Isto impede a investigação, aumenta a impunidade e gera uma deterioração impressionante da democracia e sua percepção pública. As pessoas param de votar e surgem grupos parapoliciais, porque dizem: “O que mais posso fazer, se não há qualquer autoridade democrática cuidando do meu bairro?” Ou se juntam aos bandos.
Tudo isso afeta a existência da democracia porque, na melhor das hipóteses, gera apatia e, na pior, rejeição. Alimenta um espírito antidemocrático. E se você é um cidadão de classe média que paga impostos, você sai porque não quer morar em um lugar onde bandidos manipulam o governo. E, claro, quem sofre são os pobres que não podem sair e são diariamente extorquidos.
No Chile, em geral, sentimos que as nossas instituições funcionam. Qual é a sua avaliação?
Penso que o Chile pode se orgulhar da sua transformação e transição democráticas, mas está confiante demais na integridade e na capacidade de algumas das suas instituições, sejam elas a polícia e o controle de fronteiras, o sistema judiciário e as entidades penitenciárias. O país se tornou um dos destinos preferidos para a circulação de drogas e, como nada atrai mais do que o dinheiro, é provável que vejamos uma presença maior do crime organizado nas instituições mais frágeis, como as alfândegas, as autoridades portuárias, aquelas que são responsáveis pela movimentação de cargas.
Foi o que aconteceu no Equador, Suriname, Guiana, Trindade e Tobago, Jamaica e Haiti, mas também na Alemanha e na Holanda. Se os grupos criminosos conseguem agir em Rotterdam e Hamburgo, só resta imaginar tudo o que podem conseguir em portos que não possuem o nível de recursos financeiros, tecnologia e apoio regional desses países.
Além dos homicídios, quais são os principais efeitos do aumento do crime organizado?
A maior parte do crime organizado não envolve violência letal. Vê-se muita intimidação, assédio, pessoas despejadas que têm suas terras, propriedades e negócios tirados. Tudo isto gera níveis altos de estresse e trauma psicológico, que são transmitidos de modo intergeracional.
A exposição a níveis altos de crime organizado pode levar a um menor controle dos impulsos e ao aumento da agressividade. Temos muita violência entre os jovens, violência escolar, feminicídios. Expressa-se de múltiplas formas. Consequentemente, os deslocados aumentam. Mas, além disso, há um êxodo na América Latina de migrantes que saem de seu país porque têm medo.
E parece se expandir em territórios abandonados pelo Estado.
Sim, seria um grande erro ver o crime organizado apenas como uma espécie de aberração social. Existem comunidades nas quais, na ausência de um Estado qualificado em termos de oferta de serviços, de governança transparente e responsável, o crime organizado entrega serviços de modo notável.
Depois dos desastres naturais, por exemplo, no México e no Brasil, vimos o Cartel de Sinaloa, o Comando Vermelho (CV) e o Primeiro Comando da Capital (PCC) entregarem ajuda com produtos que carregam suas marcas, como se dissessem: “Isto vem de nós”. Então, seus líderes são vistos como heróis e celebrados em canções como os narcocorridos e o funk que se ouve no Brasil. No Caribe, as gangues menores têm bandas e fazem turnês para aliciar jovens.
Como isto afeta o modo de enfrentar o problema?
Se vermos o crime organizado estritamente como uma ameaça, como uma força que sempre busca se aproveitar da população; se não entendermos a natureza do contrato social e as formas como os habitantes locais interagem com esses grupos, voluntariamente ou contra a sua vontade, corremos o risco de propor políticas totalmente erradas.
De acordo com as suas pesquisas, que respostas funcionam para enfrentar o crime organizado?
Muitas vezes, as políticas de mão dura permitem obter resultados impressionantes a curto prazo. Contudo, não sabemos se funcionam a médio e longo prazo, pois não há trabalhos empíricos a esse respeito. Estas políticas afetam os nossos direitos civis, prejudicam os governos e a própria democracia. Isto sem falar no encarceramento em massa, no excesso de força policial e todos os outros atributos dessas políticas.
No nível transnacional, existem estratégias que podem ajudar, como o bom andamento nas investigações, uma cadeia de custódia adequada das provas, uma melhor cooperação internacional e operações policiais conjuntas, idealmente apoiadas por tratados de extradição e mudanças na legislação que facilitem a troca de evidências e a harmonização das respostas.
No nível doméstico, o uso da inteligência funciona para colocar as forças policiais nos focos da criminalidade, em vez de fazê-las circular por vários locais; a focused deterrence (dissuasão focada), ou seja, estratégias que consistem na comunicação clara da polícia sobre o que acontecerá se a lei não for respeitada e aplicá-la com firmeza, mas em combinação com programas de intervenção social.
Existem formas de intervir que estejam mais focadas no trabalho com a comunidade?
No caso das gangues e do crime organizado de menor nível, existem os violence interrupters (interruptores de violência). Trabalha-se com membros da comunidade que têm vínculos com um bando para que atuem como mediadores entre os grupos e reduzam o efeito de contágio da violência. Sabemos que isso funciona.
Também ajuda trabalhar com os jovens que buscam se unir a uma gangue, reforçando sua autoestima e incentivando-os a ampliar seus horizontes; realizar intervenções para oferecer educação e reduzir a desigualdade em certos setores, bem como desenvolver programas especificamente dirigidos às mulheres, em particular os de transferências de dinheiro condicionadas. Quando elas administram as finanças, costumam manter os seus filhos no colégio, e isso está correlacionado com uma redução dos homicídios.
Tudo isto exige um maior compromisso dos líderes, e por mais tempo, e é difícil de se alcançar quando se troca de governo a cada quatro anos. Falta paciência. O crime organizado é um problema sistêmico que requer soluções sistêmicas, mas não conseguimos estabelecer uma cooperação global, e a falta de confiança, da destinação de recursos, bem como a crescente polarização impedem o alcance de respostas complexas e sofisticadas. O crime organizado está causando metástases e a América Latina está pagando o preço.
Embora muitos migrem por medo, na região há um aumento da xenofobia e os migrantes são associados ao crime. Como você explica isto?
Há uma tendência crescente para os extremos na política e em nosso debate sobre a segurança, e o migrante representa o bode expiatório mais à mão. Contudo, as estatísticas mostram que a proporção de migrantes envolvidos no crime organizado é inferior à média dos cidadãos. Por quê? Porque são os que menos querem se expor ao risco de ser excluídos (do país onde estão).
No entanto, a percepção de muitas pessoas é oposta e a criminalidade é atribuída em excesso a eles. É o que vemos no Chile, onde grandes setores da população atribuem o aumento da criminalidade à organização Trem de Aragua e a bandos venezuelanos. Não estou dizendo que não existem migrantes envolvidos na criminalidade, mas a atribuição excessiva tem sido inteligentemente explorada por um pequeno grupo de políticos que a veem como uma clara vantagem em suas campanhas e em sua busca de popularidade.
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“O crime organizado está causando metástases e a América Latina está pagando o preço”. Entrevista com Robert Muggah - Instituto Humanitas Unisinos - IHU