07 Novembro 2024
O Lula não pode ser o principal cabo eleitoral da esquerda. Ele pouco se envolveu nas eleições municipais, conferindo prioridade à garantia da governabilidade nacional e as relações internacionais em um mundo hoje muito conturbado.
O artigo é de Marilza de Melo Foucher, economista, jornalista, colaboradora e blogueira do Mediapart em Paris, publicada por Jornal GGN, 04-11-2024.
A tática da direita conservadora e da extrema direita era produzir impactos mediáticos, usando fake news que viraram normalidade.
As eleições municipais no Brasil ocorreram praticamente sem discussões sobre os programas municipais dos candidatos, sem discussões sobre balanços de ações dos prefeitos candidatos, tampouco foram debatidas temáticas desafiadoras como as questões ambientais face ao aquecimento global.
Exemplos de catástrofes ecológicas não faltaram nesses últimos anos! Tanto a imprensa comercial como alternativa caíram na armadilha da extrema direita, dando espaços para a reprodução de portagens, falas de candidatos que se projetaram pela vulgaridade política expostas em vídeos nas redes sociais, pelas fake news, além de candidatos pastores e militares que vendiam Deus, Jesus como uma mercadoria de baixo custo e uma noção de segurança pública de que “bandido bom é bandido morto”. A maioria dos candidatos desconhecia os problemas urbanos, socioambientais e econômicos que afetam as cidades e sua população. A tática da direita conservadora e da extrema direita era produzir impactos mediáticos, usando fake news que viraram normalidade, assim como as ameaças de mortes, as agressões físicas, difamações contra seus adversários. Tudo era válido para ocupar o espaço mediático. Como diz o roqueiro brasileiro Erasmo Carlos: Falem bem ou mal, mas falem de mim!
Ilustrando somente os exemplos de São Paulo e Fortaleza surgiram candidatos da extrema direita aprovados pelo TSE com perfis que, se fossem bem analisados, talvez não seriam aprovados por não disporem de condições éticas mínimas que lhes permitam exercer uma função pública (condenados na justiça, presos por roubos bancários, ficha limpa desrespeitada etc.). Esses candidatos criaram um clima completamente perverso para a democracia. Suas falas políticas não são mais regidas por proposições ou projetos em prol do povo, mas pela desqualificação de seus opositores que, no caso, se transformam em “seus inimigos”. O mais preocupante é que, ao quebrarem os padrões habituais da vida política brasileira, apresentam-se como “antissistema”, o “messias” cujo lema é “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Aliás, vale ressaltar que a plataforma ideológica da extrema direita sempre teve uma estrutura perversa, cujo poder de influência é extremamente eficaz, porque ao confundir os referenciais dos indivíduos que recruta, impede-os de pensar por si mesmos.
Assistimos no Brasil um imbróglio ideológico no campo da direita e extrema direita que não é apenas uma estratégia eficaz no contexto de um confronto ideológico. Ao contrário, na medida em que elimina os fatos que alicerçam os debates políticos, a simples “opinião” de seus mentores transforma “fakes” em verdades inabaláveis. Vimos como Bolsonaro se impôs no cenário político nacional com suas mentiras, vulgaridades, agressões verbais, racismo, gesticulações infundadas sobre o complô comunista no Brasil etc. Gerar confusão não é mais um “acidente de retórica” e sim o principal método de criar a desordem com a promessa de renovação da ordem. Nas eleições municipais esse “modo de agir” teve continuidade, o germe do bolsonarismo continua vivo mesmo que seu mentor esteja desgastado, a julgar pelas derrotas de seus candidatos.
Agora vamos tentar relembrar como surge o chamado Centrão, esse aglomerado de partidos que saíram vencedores nessas eleições municipais. O Centrão surge na Assembleia Constituinte de 1987 onde algumas tendências disputavam contra a ala progressista mais à esquerda, liderada por Ulisses Magalhães do velho MDB. Ali existia uma distinção entre os que apoiaram a ditadura (membros do partido da Arena) e aqueles que passaram a lutar contra a ditadura e a volta do estado de direito, liderados pelo Movimento Democrático Brasileiro. Todavia, o próprio MDB já tinha em suas fileiras pessoas oriundas da Arena que fizeram oposição ao MDB de Ulisses Guimarães e que se situavam um pouco mais à esquerda durante a Constituinte de 1988. O chamado Centrão de hoje vai ressurgir em 2014, agregando insatisfeitos com a distribuição de verbas parlamentares e cargos de destaque durante o governo Dilma. Nesse contexto, o MDB, juntamente com as demais forças conservadoras, se aglutinam em torno de Eduardo Cunha (MDB-RJ), que em nada pode ser comparado a Ulisses Guimarães, o grande defensor da Constituição Cidadã de 1988. Eduardo Cunha será o principal mentor do golpe parlamentar contra a primeira mulher Presidente do Brasil.
Esses partidos políticos sem definição filosófica e ideológica buscam sempre uma aproximação com o poder executivo para obter ganhos políticos, sejam ministérios, secretarias, instituições dotadas de bom orçamento. Estão sempre negociando em troca de favores, mantendo a tradição secular do clientelismo político no Brasil, são adeptos fisiológicos do “É dando que se recebe”. Atualmente no Brasil, o Centrão representa os interesses da direita, sendo o PSDB o único que se situava no Centro da Direita brasileira. Mesmo assim, meses depois, suja sua memória ao apoiar o golpe contra a Presidenta Dilma Rousseff. O Centrão abriga, assim, muitos oportunistas e negociadores de emendas parlamentares, constituindo um importante fundo de reserva eleitoreira usado para alimentar prefeitos e governadores da base aliada, objetivando angariar recursos para as eleições futuras. Durante o governo de Bolsonaro, foi criado o que se denominou de “orçamento secreto”, carro-chefe da reeleição do então presidente Jair Bolsonaro. Esse processo foi capitaneado pelo atual presidente da Câmara, Deputado Arthur Lira, que passa a deter um enorme poder político de barganha. Com o governo Lula, Lira vai criar o parlamento da “negociata”, enfraquecendo, assim, o presidencialismo plebiscitado pelo povo brasileiro, que se definia como um sistema de governo adotado em nações republicanas e caracterizado pelos maiores poderes atribuídos à figura do presidente. Nessa condição, o presidente acumula as posições de chefe de governo, chefe de Estado e chefe do Executivo.
O presidente da Câmara se apoderou tanto no governo de Bolsonaro que decide proceder de maneira chantagista com o governo Lula, levando em conta que o governo é minoritário no Congresso. A pressão ocorre ao ponto de querer definir o próprio orçamento governamental! As chantagens do presidente da Câmara levam o Presidente Lula a aumentar sua coligação com o Centrão a fim de garantir a mínima governabilidade para aplicar o programa de governo.
A maioria de deputados do Centrão integra a direita conservadora e muitos se aliaram ao bolsonarismo, da extrema direita e fundamentalistas religiosos evangélicos. Alguns não gostam de ser etiquetados como aliados do campo fascista. E isto se percebeu durante a campanha eleitoral municipal. Logicamente, a neutralidade política surge como oportunismo desde o momento que Bolsonaro passa a ser inelegível.
Nestas eleições, o Centrão e seus aliados da direita conservadora e extrema direita dispuseram de um enorme capital financeiro político, e por falta de estratégia de comunicação política da esquerda no governo, as obras financiadas pelo governo Lula nos estados e municípios não tiveram visibilidade pública e foram utilizadas em proveito do próprio Centrão que outorgava a autoria dos projetos implementados. As emendas parlamentares, sem nenhum controle, não só eram destinadas aos estados de origem dos deputados. ELES iam lá onde a direita e extrema direita necessitavam fortalecer suas bases eleitorais. As emendas foram verdadeiros cabos eleitorais. Poderiam ser até enquadradas como compra de votos, porém, os que açambarcaram o dinheiro público sabiam que não havia amparo legal para acusação e o sistema bancário Pix circulava em todo o território nacional! Os abusos foram tão evidentes que o ministro do Supremo Tribunal, Flávio Dino, recomendou que os recursos das emendas de bancada fossem liberados apenas para os estados que elas representam e que os recursos não fossem repassados de maneira fragmentada, para dar prioridade aos chamados projetos estruturantes, como grandes obras. O ministro também defendeu que o Tribunal de Contas da União (TCU) fiscalizasse a execução das emendas e que uma plataforma única reunisse as informações relacionadas a essas transferências. Ao destacar as propostas, Ângelo Coronel, relator do Orçamento para 2025, explicou que elas poderiam ser incorporadas ao projeto pelo relator, que ainda será designado.
Os partidos da direita, assim como os da extrema direita, se apropriaram das redes sociais fazendo uso dos algoritmos e a mídia social de esquerda não teve estratégia de comunicação eficaz para o contra-ataque. Sabe-se que primeiro, o algoritmo avalia a probabilidade de você compartilhar, comentar ou reagir a uma postagem. Ele pode medir essa probabilidade com base no conteúdo que você gostou e compartilhou no passado, bem como nas pessoas com quem você interage com mais frequência. Não precisamos relatar como os filhos de Bolsonaro colocaram em prática o “gabinete do ódio”, nem tão pouco como surgiram os chamados influenciadores de direita, os pastores(as) militantes de extrema direita que criaram seus próprios canais, além da presença de grupos em todas as plataformas digitais. Os dirigentes e militantes da extrema direita entenderam perfeitamente a importância dos algoritmos na era da internet. Existem algoritmos sociais para canalizar certos tipos de conteúdo para públicos específicos, incentivando assim as pessoas a passarem mais tempo nas plataformas. Eles ditam os tipos de conteúdo que um usuário pode “descobrir” fora de sua própria comunidade. Para mais informações consultem o Google!
Essa longa contextualização é para que o público das mídias alternativas entenda como caímos na arapuca dos algoritmos contendo fake news, narrativas aberrantes que canalizaram os debates sobre candidatos que já tinham sob o seu controle as redes sociais. Exemplos de São Paulo, Fortaleza e outras cidades brasileiras. Assim, a intelectualidade de esquerda hoje presente em canais de TV alternativas e plataformas deixou de enfocar temáticas importantes que poderiam contribuir para um melhor debate político, por exemplo o resgate da memória da democracia participativa prevista na constituição brasileira, temática emblemática na conquista do poder Local pela esquerda, assim se conquistou as cidades mais conservadoras do Brasil, São Paulo, Porto Alegre, Fortaleza, Belém além de cidades simbólicas de lutas pela democracia como o ABCD paulista, dentre outras. O aumento de analfabetos políticos no Brasil poderia diminuir com educação política. Nós jornalistas devemos no contexto atual político que a extrema direita ocupa as esquinas do Brasil agir como guardiões da democracia e a memória da história social política do Brasil é fundamental.
A direita e extrema direita conseguiram apagar essas histórias de conquistas democráticas. A maioria hoje dos brasileiros(as) desconhece a importância do poder local para o exercício ativo da cidadania. Desconhece que é no município que poderemos resgatar paradigma no arcabouço jurídico e democrático brasileiro que foi estabelecido pela Constituição de 88 ‘todo poder emana do povo’ que o exerce por meio de representantes eleitos, ou diretamente nas formas previstas nessa Constituição. O Artigo 5º da Constituição Federal de 1988 precisava ser relembrado, ele determina com bastante claridade o exercício dos direitos sociais e individuais, assim como a liberdade dos indivíduos, a segurança e o bem-estar, além do direito de se desenvolver com igualdade e justiça. Estou batendo nesta tecla há muitas décadas por ser uma apaixonada da democracia participativa, nesse sentido, escrevi vários artigos que podem ser consultados no Google, hoje uma grande biblioteca virtual! Todavia, mesmo vivendo há muitas décadas fora do Brasil, levando em conta meu trabalho na área da cooperação internacional voltado para a América do Sul, principalmente o Brasil fiquei acompanhando de perto em minhas inúmeras viagens todo o processo de redemocratização do Brasil e a renascença da cidadania política. Havia uma nova militância que emergia no Brasil agindo localmente em muitas associações e movimentos sociais com temáticas que estimulavam a democracia participativa no desenvolvimento local. O Partido dos Trabalhadores percebeu a importância de conquistar o poder local e muitas municipalidades lhe serviram de experiência para ganhar notoriedade nacional, incentivava o nascimento dos conselhos municipais onde os representantes da sociedade civil municipal poderiam discutir sobre o destino do desenvolvimento municipal. Com a conquista da Presidência em 3 mandatos, os militantes do PT deixaram de investir no Poder Local e em suas bases abandonando bandeiras emblemáticas da participação popular, como o orçamento participativo, os conselhos municipais que discutiam políticas setoriais para o município.
Somente poucas cidades tiveram um despertar de uma militância aguerrida que apesar das difamações, ameaças de morte, ataques de danos morais como foi no caso de Boulos e Natália Bonavides fizeram uma bela campanha, porém, não foi possível virar o resultado. Em Recife, o jovem herdeiro dos Arraes Joao Campos consolida sua liderança no PSB. E em Fortaleza o PT apesar das divisões internas consegue eleger o candidato a prefeito face ao vulgar candidato de extrema direita. Mesmo assim, muitos jovens foram eleitos a vereadores e vereadoras. Houve um aumento de vereadores negros, de mulheres LGBTQIA+ e demais grupos de esquerda. Tudo isto deixa no ar um vento de esperança na renovação de quadros políticos de esquerda. Mais do que nunca chegou a hora de consolidar o casamento entre o uso de redes sociais e a prática da militância política no cotidiano. São duas formas de participação política que a esquerda deve implementar como novo modo de fazer política diante do avanço da apropriação das redes sociais pela extrema direita e direita conservadora.
A esquerda governista ficou acuada nas eleições municipais apostando em algumas frentes partidárias que podem garantir um capital político para Lula. Atenção, o Lula não é eterno, daí a importância da educação política para as novas lideranças locais que emergiram nesta campanha. O PT deve se preocupar com transmissão desta memória. A esquerda deve renovar sem perder a dimensão do sonho de um mundo melhor. Ela deve se ocupar do cotidiano da política. O cotidiano político está associado à realidade vivida por milhões de brasileiros que reclamam da carestia da vida, principalmente dos produtos alimentares, da qualidade dos alimentos, da degradação dos serviços públicos e do meio ambiente, da segurança pública. Os partidos de esquerda e centro-esquerda que formaram a frente que elegeu o Lula devem servir de alerta permanente para que o governo não esqueça seus compromissos. Deve preservar a crítica construtiva quando o governo falha! Todavia, não esquecer que o Lula governa no fio da navalha, o Centrão pode lhe dar um empurrão a qualquer hora! Por isso a mobilização social por melhorias de condições de vida deve ser permanente!!! Reconquistar o terreno para a ação militante junto aos vereadores e participar dos conselhos municipais também é importante. Tanto faz se o prefeito é aliado ou não. A participação popular para construir um novo mundo faz parte da DNA da esquerda. Não deixem a extrema direita e a direita conservadora prosperar onde a esquerda falhou. Os sonhos não estão à venda já que alguns votos viraram mercadorias para a extrema direita e direita! Reconquistar o exercício da cidadania política é fundamental!
O Lula não pode ser o principal cabo eleitoral da esquerda. Ele pouco se envolveu nas eleições municipais, conferindo prioridade à garantia da governabilidade nacional e as relações internacionais em um mundo hoje muito conturbado. Penso que diante de um parlamento com maioria conservadora, fundamentalista e de extrema direita o Lula teve razão de guardar o leme do comando do navio que navega em mares e rios agitados. A falha maior tem sido a pouca visibilidade às ações e projetos desenvolvidos pelo governo Lula nas municipalidades e governos estaduais, deixando para a coligação e o Centrão reivindicar em proveito eleitoral os benefícios da ajuda governamental. Falta uma boa estratégia de comunicação e maior articulação com os militantes nos estados e municípios, sobretudo com os jovens que detêm experiência com as redes sociais para fazer face aos meios de comunicações como Globo e CNN e os jornalões Folha de São Paulo e Estadão que exploram o dia inteiro os limites do governo Lula. Enquanto os sucessos são pouco divulgados.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
As piores eleições municipais do Brasil. Artigo de Marilza de Melo Foucher - Instituto Humanitas Unisinos - IHU