26 Outubro 2024
O escândalo da clordecona nas Antilhas revela a nossa forma colonial de ainda habitar a Terra, explica o pesquisador Malcom Ferdinand. Um “habitar colonial” que deve impulsionar a esquerda para uma “exigência” antirracista.
A entrevista é de Hervé Kempf, publicada por Reporterre, 25-10-2024. A tradução é do Cepat.
Pesquisador na área da ciência política, Malcom Ferdinand explora as conexões entre as questões políticas, da história colonial e os desafios da preservação ecológica do mundo. Acaba de publicar S’aimer la Terre: défaire l’habiter colonial (ed. Seuil), sobre a poluição por clordecona da Martinica e de Guadalupe e as formas coloniais de habitar a Terra.
Ferdinand é autor também do livro Uma ecologia decolonial: pensar a partir do mundo caribenho (São Paulo: Ubu Editora, 2022).
Você está publicando um livro sobre a poluição por clordecona na Martinica e em Guadalupe. Como a história deste inseticida impactou a vida dos povos da Martinica e de Guadalupe?
Este inseticida, fabricado nos Estados Unidos na década de 1950, foi utilizado principalmente nas Antilhas nas décadas de 1970-1990: oficialmente para combater o gorgulho da bananeira [uma das principais pragas das bananeiras]; na verdade, para fortalecer o capitalismo bananeiro. Isto provocou uma contaminação com três características principais: é duradoura, com uma persistência que varia de várias décadas a vários séculos; é generalizada, porque a clordecona é encontrada em todos os ecossistemas e, a fortiori, nos corpos dos habitantes das Antilhas.
Finalmente, e esta é a razão pela qual esta molécula ainda hoje representa um problema, apesar da sua proibição [em 1993 na França]: a exposição crônica a este pesticida causa problemas de saúde. Estes vão desde o retardamento no desenvolvimento das crianças à redução dos períodos de gravidez, passando pelo aumento dos riscos de desenvolver um câncer da próstata.
Você diz que o gorgulho, esse inseto devastador, tem o direito de viver. Por quê?
O gorgulho é o grande esquecido desta história. Nós desenvolvemos uma relação violenta com ele: decidimos que, para fazer essas plantações dar frutos, teríamos que matar esse bicho. Não sabemos nada sobre ele, exceto, como é dito nos discursos oficiais, que deve ser morto. Este se torna um argumento muito útil para a ordem estabelecida a favor do uso da clordecona. Porém, nós compartilhamos com ele essa condição de ter sido contaminado pela clordecona. Ao me concentrar no gorgulho, convido a repensar a nossa relação com todo o tecido vivo, a reinventar formas mais suaves, justas e dignas de compor em conjunto.
Por trás dessa questão está a invisibilidade dos corpos das populações expostas à clordecona. Por que você fala de “corpos” em vez de “humanos”?
Os danos ligados à clordecona encontram-se literalmente na carne, com o desenvolvimento de patologias. Insisto nesta dimensão corporal, quase carnal, de maneira a situar os nossos corpos neste tecido vivo.
A partir do início da década de 1970, a nocividade da clordecona já estava reconhecida, e sua fabricação foi proibida em 1975 nos Estados Unidos. Os produtores de banana sabiam disso e, no entanto, continuaram a utilizá-la nas Antilhas...
A contaminação é o resultado de um conjunto de relações – políticas, jurídicas, científicas – que respondem ao que chamo de “habitar colonial”. Isso faz parte do modo de habitar a Terra criado na época da colonização. A clordecona não inventa essa diferença de tratamento entre os seres humanos, ela a revela.
Por exemplo, em 1974, houve uma das maiores greves agrícolas liderada por trabalhadores negros da Martinica. A principal demanda que eles faziam era não usar mais clordecona. Os grevistas foram duramente reprimidos, com vários feridos e dois mortos, mortos pelas forças policiais predominantemente brancas. Isto ilustra o poder destrutivo de um Estado a serviço dos proprietários de bananas que pertencem predominantemente a um grupo sociorracial, os békés, que se unem através da solidariedade racial branca.
Hoje, a França recusa-se a enfrentar a questão da contaminação pela clordecona [os tribunais rejeitaram o caso da clordecona nas Antilhas em janeiro de 2023]. Esta forma colonial de tratar as Antilhas, portanto, tanto os seus habitantes como a terra, prolonga a desumanização, o sentimento de desprezo subjacente a quase todas as reivindicações sociais nestes territórios. Voltamos a ver isso em outubro passado, com as manifestações contra o elevado custo de vida na Martinica: a resposta do Estado foi a repressão.
Nos anos que se seguiram, outros trabalhadores foram mortos pela polícia durante as greves.
O século XX foi marcado por greves agrícolas que foram sistematicamente reprimidas e seus autores ficaram impunes. Assim que nos mobilizamos, o Estado francês nos diz: “Podemos matar vocês”.
As Antilhas, a Martinica, Guadalupe, Ilha da Reunião, Nova Caledônia e a Guiana ainda são colônias?
Em termos estatutários, a Martinica e Guadalupe não são mais colônias. Por outro lado, o sistema colonial ainda está vigente. Nesse sentido, poderíamos dizer que são colônias. Existe um termo importante: o de “colonialidade”.
O colonialismo pode ser descrito como um processo histórico com começo e fim. A colonialidade refere-se a este sistema colonial, a esta forma de habitar a terra e de conceber estas relações coloniais, violentas, patriarcais, que destroem os ecossistemas. Elas não vão parar magicamente porque assinamos um decreto de independência. Não, elas estão persistindo.
Isto é extremamente problemático, porque a contaminação não é apenas o resultado desta forma de fazer as coisas, mas a forma de gerir esta contaminação reproduz estas formas de desumanização. Vemos isso, por exemplo, na ausência de democracia ambiental. O caso da clordecona é de uma negação democrática. Cinco ou dez pessoas no máximo decidiram contaminar a terra e, hoje, mais de 90% dos habitantes das Antilhas têm clordecona no seu organismo.
Será isto comparável ao escândalo do amianto na França?
O que acontece nas superfícies das Antilhas acontece em inúmeras superfícies da Terra. Mas a forma como esta contaminação é implementada nas Antilhas prolonga estas divisões coloniais e raciais. Os produtores, os prefeitos, os presidentes, etc., eram todos brancos. Os trabalhadores agrícolas, as pessoas que morreram, que manuseavam a clordecona, eram todos negros. Não podemos, portanto, usar o argumento da universalidade da poluição.
Não estamos hoje testemunhando a continuação do capitalismo colonial em escala planetária?
Através do exemplo da clordecona, quis mostrar que existem lógicas coloniais dentro do próprio capitalismo. Este é um fenômeno que os círculos de esquerda na França têm dificuldade em abordar, particularmente a relação entre classe, raça e colonialidade. Nesse sentido, a clordecona é um exemplo do habitar colonial que não se restringe ao que acontece na Martinica ou em Guadalupe.
Na minha opinião, nomear as coisas é uma forma de lutar melhor. Não podemos permanecer numa compreensão universalista do capitalismo inventando um sujeito proletário que seria universal. Se uso a expressão “capitalismo colonial”, é porque a recusa histórica da França em se envolver verdadeiramente numa perspectiva decolonial é um obstáculo à luta anticapitalista.
A pretensão universalista, que podemos detectar na França, tende a padronizar? Se sim, isso é uma forma de racismo?
Não vou tão longe a ponto de falar de racismo. Mas a recusa em reconhecer a questão colonial como não sendo algo do passado, mas que age e estrutura, inclusive a sociedade francesa, é um obstáculo ao pensamento e à ação. Isto reproduz formas de discriminação e desumanização.
Como o movimento ambientalista e de emancipação pode reformular a sua análise e ação para integrar este conceito de capitalismo colonial e racial?
A ausência de reflexão sobre o capitalismo racial e colonial na esquerda francesa é um reflexo da recusa de todo o país em confrontar a sua história colonial escravagista. No que diz respeito à esquerda e à esquerda anticapitalista, seria ingênuo dizer que a única ação a ser adotada seria autodenominar-se antirracista.
Há uma longa história, com um conjunto de obras – de Aimé Césaire, Cedric James Robinson ou Frantz Fanon –, que ampliou a questão do marxismo para incluir as especificidades da história colonial. Não podemos mais afirmar que somos de esquerda e, ao mesmo tempo, criticar as pessoas chamadas decoloniais, não reconhecer a violência policial e não integrar plenamente as questões sociais, raciais e decoloniais nas nossas ferramentas de pensamento. Caso contrário, temos uma esquerda que usa a mesma gramática da extrema-direita.
O que deveria ser feito?
Refundar a esquerda com uma exigência decolonial e antirracista que seja estruturante. Historicamente, o movimento ecológico político francês nunca levou em consideração a existência dos territórios ultramarinos como locais a partir dos quais é possível pensar a questão ecológica. A França não está sozinha neste caso: outros países tiveram de pensar em como criar um mundo depois da colonização e da escravidão. A questão deve ser colocada de forma concreta para estabelecer políticas explicitamente antirracistas.
Ao mesmo tempo, estamos num contexto de ascensão da extrema-direita, e até mesmo de fascistização, em todo o mundo. Não há um paradoxo em sua perspectiva?
Não. Não é porque a extrema-direita está em ascensão que devemos silenciar certas reivindicações. Pelo contrário, devemos questionar as razões do seu avanço. Talvez as ferramentas de pensamento e de ação da esquerda não tenham sido eficazes; talvez as pessoas em forma de procrastinação estejam se equivocando. Devemos ser capazes de propor um outro projeto social. Uma sociedade onde sejam respeitados certos direitos fundamentais, como o direito ao acesso à água, o direito à dignidade, o direito a não ser tratado de forma racista pelas forças militares. São proposições onde afirmamos um certo número de valores que não são… [interrompe sua fala]
Estas propostas não são aceitas pela esquerda e pelo movimento ambientalista?
Quando tivermos uma esquerda que faça circular o nome de Bernard Cazeneuve como potencial primeiro-ministro… [interrompe novamente]
Em julho passado, durante o encontro “A ecologia contra a extrema-direita”, organizado por Reporterre, você nos desafiou perguntando: “quem aqui é racializado?”. Éramos 98% brancos. O que fazemos com isso?
O meu desafio consistiu em dizer que aquilo por que lutamos deve ser à imagem da luta. Penso neste verso do poema Diário de um retorno ao país natal de Aimé Césaire: “Aqueles sem os quais a Terra não seria a Terra”. Se aqueles que compõem a Terra estão ausentes das salas, dos partidos, do governo, da mídia ambientalista, dos movimentos ambientalistas, qual pode ser o mundo imaginado? Bom, na maioria das vezes produzimos políticas, teorias, ações que reproduzem uma forma de exclusão. Precisamos fazer melhor, e incluo-me nesta constatação.
Devemos estabelecer relações dignas, especificamente com aquelas e aqueles que foram prejudicados pela colonização e pela escravidão. A pergunta deve ser feita para que aprendamos a nos encontrar. Isto só poderá produzir ações que serão muito mais fortes e duradouras. Especialmente porque não foi em 2024 que aprendemos que o movimento ambientalista não era muito diversificado: sabemos disso desde a década de 1960. A minha pergunta vem, portanto, também do meu desejo de mudar as coisas. O mundo a ser construído está em nossas mãos.
Durante cerca de dez anos houve uma renovação do movimento feminista que foi impulsionado, entre outras coisas, pela ecologia, com o ecofeminismo. Não há o mesmo caminho a seguir para o movimento de descolonização das mentes?
Com certeza. E a renovação realizada por estes movimentos feministas, afrofeministas e ecofeministas deve integrar também a questão colonial. Isto acontece através de outras narrativas, através do reconhecimento de certas coisas, através de ações de reparação. No seu sentido filosófico, a ideia de reparação não é obrigar alguém ao arrependimento, mas tornar possível um outro mundo. Seja na questão ecológica, econômica ou política, podemos fazer melhor.
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“O mundo a ser construído está em nossas mãos”. Entrevista com Malcom Ferdinand - Instituto Humanitas Unisinos - IHU