26 Outubro 2024
"Agora que todas as Igrejas históricas estão passando por uma profunda crise, como é inevitável na tumultuada agitação da nossa época, é ainda maior a tristeza, e também a consternação, pela partida de uma das grandes testemunhas. Por isso, acredito que é importante reelaborar a sua memória e valorizar a sua presença", escreve Gabriella Caramore, autora e estudiosa (La parola di Dio [A palavra Deus], seu último ensaio publicado pela Einaudi em 2019), em artigo publicado por Il RegnoAttualità, 15-10-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Em uma conversa radiofônica de 2016 (Uomini e profeti, Radio3) Paolo Ricca, pastor e teólogo da Igreja valdense, que faleceu em Roma na noite entre 13 e 14 de agosto de 2024, abordava a obscuridade de qualquer discurso sobre a morte, recorrendo sim às Escrituras e às aquisições da ciência contemporânea mas gradualmente diluindo toda certeza, reconhecendo que toda cultura elaborou “visões fantásticas” em torno da morte, sem, no entanto, se contentar com o que uma cientista conhecida dizia, segundo a qual cada um de nós será reduzido a uma “molécula” errante no universo.
Claro, o corpo se vai. Mas não acredito, dizia, que a “pessoa” possa se reduzir a uma molécula. É verdade que a morte apaga a vida, mas ela não dissolve a “pessoa”.
Algo permanece. Não apenas na memória dos vivos, mas no que ele chamava de “memória de Deus”, e que nós poderíamos chamar de uma grandeza que nos transcende, um “além” no qual as categorias “terrenas” de espaço e tempo não valem mais, mas que ainda assim existe, mesmo que para nós permaneça invisível e incognoscível.
Poderia ser! Talvez seja assim que se consiga suportar o desaparecimento de nosso horizonte de pessoas que nos foram queridas. E que dedicaram ao máximo cada momento de suas vidas para responder àqueles que pediam algo, qualquer coisa. Mantendo-as próximos na memória. Mas também as colocando em um lugar de ausência, no qual alguma forma impalpável de presença é guardada.
De qualquer forma, hoje que a morte de Paolo Ricca recém aconteceu, e por isso nos parece tão irreal, quase impensável para aqueles que o conheceram, seu perfil está mais vivo do que nunca. O que mais impressionava, imediatamente, qualquer pessoa que o conhecesse e tivesse a possibilidade de ouvi-lo era sua linguagem. Em suas homilias, palestras, debates públicos e diálogos radiofônicos, era sobretudo a impostação de sua voz que se impunha: robusta e sussurrada, impulsionada como por um movimento em onda e quebrada por uma pausa, uma ênfase, uma dúvida em forma de silêncio.
Mas, subjacente à estrutura da oratória - inconfundível - havia uma estrutura geométrica do pensamento, baseada em sólidos fundamentos: uma paixão incansável pela Palavra bíblica; uma fidelidade não passiva, mas continuamente questionadora, à tradição do Protestantismo e da Reforma, em particular ao pensamento de Lutero (cujas Obras Selecionadas ele editou e em parte traduziu para a editora Claudiana, de Turim); um apego afetivo, mas também convicto, à comunidade valdense de onde vinha (ele nasceu, filho de pastor, em Torre Pellice, em 19 de janeiro de 1936); uma fé inabalável, mas não dogmática, no Deus das Escrituras; e uma fé igualmente forte e inabalável na relação e no diálogo com pessoas de outras crenças e convicções.
Tive muitas oportunidades de vivenciar o que era para ele o diálogo. Especialmente no decorrer da longa série de transmissões de Uomini e Profeti, onde ele foi um convidado fiel e muito popular durante quase todo o tempo em que editei e apresentei o programa (...). Todas as vezes, ao longo dos 45 minutos de cada episódio e de cada ciclo de episódios, chamava a atenção sua acríbia exegética, mas também a reconstrução minuciosa do contexto histórico e a comparação com as interpretações das diferentes confissões e tradições, para depois chegar - quase deixando aflorar pensamentos subterrâneos que o haviam guiado durante toda a construção de sua exposição – a deixar claro, “com temor e tremor”, poder-se-ia dizer, o que de mais pessoal resultava naquelas meditações e, ao mesmo tempo, as respostas que, em sua opinião, as Escrituras podiam oferecer às questões contemporâneas. Mas sem forçar demais, sabendo, e ele repetia isso com frequência, que nem todas as palavras da Bíblia têm o mesmo valor, que na vida - também e ainda mais na vida religiosa - fica uma porção de “enigma” que não se consegue entender, sabendo que “Deus não é uma evidência”, pode ser apenas um traço de luz que, para alguns, ilumina o caminho. E que outros, talvez, podem encontrar em outras fontes os mesmos lampejos de luz.
É por isso que, embora fosse bastante firme em suas convicções básicas, adorava enfrentar os desafios do mundo contemporâneo. Talvez tenha sido justamente a dificuldade da tarefa que o instigava, que estimulava o seu pensamento a se tornar aberto, ousado. E, às vezes, se retratando.
Em um dos últimos encontros públicos em que o vi se animar, em março deste ano, poucos meses antes de ter de sofrer os últimos golpes em seu corpo, foi no Teatro Municipal de Corato (...). Lá ele proferiu um discurso apaixonado e veemente sobre o estado atual da Europa, sublinhando de forma dramática o que significa para a contemporaneidade a perda de três dimensões do tempo: a do além, significando com essa expressão uma ulterioridade que transborda do contingente; a de uma Europa e de um Ocidente como pátria do que até agora consideramos democracia; o fim do tempo em que nosso planeta parecia como um lugar seguro. A essas derivas do tempo histórico, ele contrapunha uma dimensão do tempo na perspectiva cristã como um novo começo, um chamado para permanecer vigilantes e ter a coragem de fazer escolhas. Constatando, mesmo assim, como o próprio cristianismo não é mais capaz de “ler os sinais dos tempos”. Mas isso, para Paolo Ricca, não significava uma “rendição”, mas sim a necessidade de abrir uma nova temporada de “resistência” (...) E, no entanto, Paolo Ricca sempre esteve convencido de que o discurso sobre Deus não está encerrado.
Pelo menos, ainda não é hora de trancá-lo em vitrines de museus, mas ainda é possível colher aquela “água viva” que saciou a sede e alimentou tantas infelicidades e tantas alegrias na história. Daí a pressa dos últimos anos para reunir muitos de seus pensamentos sobre o que o mantinha vivo, em um exercício de gratidão ao Deus em quem acreditava e a todas as criaturas, pois havia aprendido algo com todas elas. Lembro-me apenas de seus dois últimos livros, publicados em uma famosa série pela editora protestante Claudiana Dio. Uma Apologia, e Secondo Marco. Mas acredito que suas palavras também permanecerão vivas exatamente porque ele sabia como proferi-las sempre com profunda convicção. Todo interlocutor, mesmo o menor e, às vezes, o mais improvável, merecia a mesma consideração e empenho que os maiores e mais respeitados. Nas dedicatórias que fazia de seus livros, o nome do destinatário era sempre escrito em vermelho, quase como se quisesse enfatizar uma linha do coração que deve unir cada ser vivo a outro. Para cada diálogo, palestra ou transmissão, ele se preparava com cuidado e empenho, como se de cada ocasião, mesmo a mais fugaz, dependesse o destino de Deus nesta terra.
Suas folhinhas de anotações tornaram-se lendárias, ordenadas e cheias, como se deixar um espaço em branco fosse um insulto ao precioso tempo que nos é dado.
Em ocasiões de convívio, e eram muitas, sempre generosas, alegres e sempre apoiadas por sua família, a leitura e o comentário, cuidadosamente preparado, de um versículo bíblico que as precedia eram sempre o início de horas alegres, divertidas e afetuosas. Nunca estar com ele se tornava motivo de reclamação, má vontade ou perda de tom.
Sua gratidão - por Deus, pela vida, pelas pessoas que encontrava - sempre excedia em lealdade e devoção aquela que os outros, de qualquer forma, sentiam por ele.
Permita-me uma última lembrança pessoal. Quando, cerca de um ano depois de nosso primeiro encontro e trabalho juntos (estávamos em meados da década de 1990), ele me convidou para ir a Torre Pellice, para participar dos trabalhos do Sínodo da Igreja Valdense, realizado todos os anos no final de agosto, hospedando-me na casa de sua família, com irmãs, irmãos, filhos, tias idosas, amigos e amigas, para mim foi uma imersão total em outro mundo, comparado à dimensão da Igreja que eu conhecia até então. Respirava-se uma vitalidade, uma liberdade, que me deixaram muito surpresa, na mistura de pastores e pastoras com crianças, jovens, idosos, com homens e mulheres vindos de outros mundos, em uma animada atmosfera de diferentes idiomas, costumes, mentalidades.
O dinamismo do debate durante os trabalhos, às vezes realmente acalorado sem cair na grosseria, a força das orações e dos cânticos, a participação de todos era algo que eu, ingenuamente, não esperava. Logo ficou claro para mim que esse era o resultado, por um lado, da origem libertária e pauperista do pequeno povo valdense, vindo do sudeste da França na Idade Média, e que se estabeleceu, em parte, nos vales do Piemonte oriental e ali permaneceu fechado em um gueto natural até as cartas de autorização de Carlo Alberto em 1848; por outro lado, de sua adesão à Reforma calvinista, que o tinha aberto para o mundo internacional por meio de contatos com a Suíça.
O próprio Paolo Ricca, depois de ter estudado na Faculdade Valdense de Teologia de Roma (onde depois seria professor por muitos anos), completou seus estudos na Basiléia, com Oscar Cullmann e Karl Barth, antes de outras estadias na Alemanha e nos Estados Unidos. É claro que cada um proporcionou sua própria contribuição pessoal. Mas Paolo Ricca tinha um modo tão especial de ser pastor e teólogo ao mesmo tempo, devotado aos seus afetos e, ao mesmo tempo, à comunidade dos seres vivos, à sua Igreja e às Ecclesiae do mundo inteiro, à tradição e às provocações da contemporaneidade, que realmente deixa - uso a palavra mais banal do mundo, mas também a única verdadeira - um imenso vazio naqueles que o conheceram, mas também na história do nosso país. Agora que todas as Igrejas históricas estão passando por uma profunda crise, como é inevitável na tumultuada agitação da nossa época, é ainda maior a tristeza, e também a consternação, pela partida de uma das grandes testemunhas. Por isso, acredito que é importante reelaborar a sua memória e valorizar a sua presença.
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Paolo Ricca. Fé inabalável, mas não dogmática. Artigo de Gabriella Caramore - Instituto Humanitas Unisinos - IHU