"Paolo era pioneiro do ecumenismo em igrejas que tinham (e, em parte ainda têm) uma certa desconfiança e medo pelo diálogo com o mundo católico. Ele fez isso sem rupturas, sem forçar (ao contrário de outros antes e depois dele), mas sempre na escuta respeitosa da irmã ou do irmão mais identitários", escreve, Peter Ciaccio, pastor na Igreja Valdense de Palermo, em artigo publicado em seu Facebook, e reproduzido Andrea Grillo, 14-08-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
Para nos educarmos à humildade em uma época de narcisismo e para fazer com que nossas estruturas e organizações funcionem da melhor forma possível, dizemos a nós mesmos que nenhum e nenhuma de nós são insubstituíveis, mas a verdade é que cada um de nós não é substituível, porque somos únicos. A vida é um milagre: não é a fé que diz isso, mas a ciência, ou seja, a possibilidade de vida é altamente improvável. O mesmo se aplica às nossas singularidades: qual é a probabilidade de encontrar aquela pessoa específica em seu caminho de vida que tenha um papel significativo?
A foto foi tirada enquanto estava pregando para no dos 500 anos da Reforma, na Igreja Valdense em Palermo, em 31-10-2017.
Não é que Paolo Ricca fosse mais único do que outros, mas seus dons eram certamente extraordinários. Quero tentar enumerar alguns deles, inspirado pelo canto espiritual que diz “Count Your Blessings, name them one by one”, que podemos traduzir aproximadamente como “Conte suas bênçãos, nomeie uma a uma”. Dez palavras, como as amadas Dez Palavras do Êxodo, que dedico à esposa Stella e aos filhos Laura e Alberto.
- Os dons não bastam: é preciso cultivá-los. Muitas vezes encontramos pessoas talentosas, mais talentosas do que outras em determinados campos. Paolo certamente era, mas ele também teve a humildade de cultivar seus talentos. E, a cada uma colheita, como no ciclo das estações, é preciso voltar a cultivá-los.
- Sempre respeitar o interlocutor. Em uma época em que são exaltados o sarcasmo, o politicamente incorreto e o “patrolamento”, gosto de lembrar que nunca vi Paolo Ricca zombar do interlocutor. Durante suas muitas palestras, frequentemente lhe faziam perguntas absurdas e fora de lugar da plateia, mas nunca respondia com uma piadinha que diminuísse o interlocutor. Não só: todos são dignos de resposta. E se você não entendeu a pergunta, responda honestamente: “Talvez eu não tenha entendido a pergunta”.
- Envolver o auditório. Ouvi Paolo falar aos mais diversos ouvintes: a igreja rural e a igreja burguesa, a delegação das igrejas estrangeiras em visita à Itália, o Sínodo Valdense e Metodista e o grupo de católicos. Paolo os “seduzia”, ou seja, mantinha o público preso ao seu discurso. Comparando, certa vez vi Eric Clapton em um show: ele não estava nem aí para o público. Pois bem, sendo a seu modo também um virtuoso, Paolo Ricca era exatamente o oposto: eu existo como pregador ou palestrante porque existem vocês que me ouvem.
- Nunca baixar o nível. Parte do respeito de Paolo por seu público era não despejar citações em latim ou alemão, quando necessário. Normalmente, aqueles o citam o fazem para valorizar seu discurso, para ficar acima do auditório. Não, Paolo Ricca mantinha um alto nível, nunca fazendo com que o público se sentisse inferior. Se ele estava em uma posição superior (e ele estava, considerando o seu conhecimento), sua tarefa era elevar o auditório, como um pastor que eleva os participantes no culto. E eu me lembro de uma de suas exortações: Nossas pregações são sempre tão pobres de cultura: não está certo”.
- O desempenho faz parte do discurso. Poderíamos dizer que a forma é substância? Qualquer pessoa que o tenha visto e ouvido se lembrará não apenas do que ele disse, mas também de como ele disse, das caras e expressões, das pausas e das ênfases, a maneira como ele olhava. Uma vez me perguntaram o que eu achava de sua colaboração com Roberto Benigni para o programa da RAI “Os Dez Mandamentos” e eu respondi: “Bem, Paolo é o nosso Benigni, Paolo é o nosso vencedor do Oscar”.
- Sempre há uma nova maneira de dizer uma palavra antiga. O protestantismo é filho do humanismo e está profundamente ligado ao renascimento da filologia. Paulo tinha condições de proferir um sermão sobre uma palavra que você já tinha ouvido mil vezes, mas nunca da maneira como ele a apresentava. E se ele ouvisse um de seus sermões e visse que você tinha apresentado o mesmo, ele vinha lhe falar. Isso era importante para ele. Cada palavra é uma mina inesgotável: imaginem o que se pode extrair da Palavra de Deus!
- Não estar apegado ao que você disse antes. Já ouvi Paulo dizer uma coisa e cinco anos depois dizer exatamente o contrário. Normalmente, quando se fala isso, se começa a pensar em pouca profundidade e em inconsistência. No entanto, esse não era o caso de Paolo. A palavra que eu falo agora é para o hic et nunc, é para o aqui e agora. A palavra que eu falo agora e aqui não precisa necessariamente ser coerente com a palavra que eu disse anteriormente, mas com a Palavra original. Em última análise, minha fidelidade não é a mim, mas a Deus.
- Abrir-se para o outro não significa renunciar a si mesmo. Paolo era pioneiro do ecumenismo em igrejas que tinham (e, em parte ainda têm) uma certa desconfiança e medo pelo diálogo com o mundo católico. Ele fez isso sem rupturas, sem forçar (ao contrário de outros antes e depois dele), mas sempre na escuta respeitosa da irmã ou do irmão mais identitários. Sua existência foi a prova de que não apenas a abertura para o outro é necessária, mas também que é a maneira mais construtiva de fortalecer a própria identidade. Quem mais ecumênico do que Paolo Ricca? Quem mais “valdense” do que Paolo Ricca?
- Não se poupe... com prudência. Ele estava em toda parte. Deixou-nos inúmeros escritos, livros, discursos, entrevistas. Até cerca de dez anos atrás, não se podia convidá-lo para pregar, deixando que ele fizesse apenas o sermão: se eu for, vou fazer tudo... ou melhor, vou me doar todo. Ultimamente, porém, tinha aprendido a se limitar, seguindo o precioso conselho de irmão médico Marco (que o precedeu recentemente na casa do Pai), porque provavelmente tinha percebido que a corrida do cristão (I Coríntios 9) não é quem chega primeiro, mas, se possível, prolongar a corrida o máximo possível, porque o Senhor e a igreja precisam de corrida de cada um.
- A graça é o motor da vida cristã. Contam-se histórias, que viraram lenda, sobre o exame final de doutorado de Paolo Ricca com o grande Karl Barth. Digo lenda, porque sempre surgem mais detalhes, e há até uma “versão Bauhaus” que relata um exame de pouquíssimas palavras, à insígnia de “menos é mais”. Cada versão, porém, tem duas palavras recorrentes: Reforma e graça. Apesar dos altíssimos méritos de Paolo, como ele me disse uma vez, “Mas que méritos?”: foi um dom da graça o fato de ele ter sido o que foi, de o termos conhecido, de ter sido um irmão de fé, de ter sido um dos pensadores cristãos italianos mais importantes do pós-guerra em diante. Ao olharmos para Paolo Ricca, nos lembramos do infinito amor de Deus por nós.
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Dez palavras em memória de Paolo Ricca, 1936-2024. Artigo de Peter Ciaccio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU