01 Outubro 2024
"Recalcati quer mostrar que o desejo é o centro do ensinamento espiritual e ético de Jesus: O desejo, de fato, “se configura como a forma mais radical do dever e, por isso, a Lei só pode, por sua vez, se afirmar como Lei do desejo, da qual Jesus se faz testemunha, e não mais como Lei contra o desejo", escreve Luigino Bruni, professor titular de Economia Política na Lumsa, de Roma, e diretor científico da Economia de Francisco, publicado por Avvenire, 26-09-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Partindo das páginas dos Evangelhos e de São Paulo, o autor trata de temas como sacrifício, ressurreição (por meio da categoria bíblica do resto), responsabilidade subjetiva.
Quem conhece, ama e frequenta as comunidades espirituais e religiosas, sabe ou sente que na base da vasta e profunda crise que as atravessa há uma crise de desejo. Uma falta de desejo e de coisas a desejar, que se encontra sobretudo nas pessoas mais generosas e com vocações autênticas.
Todos nós estamos à espeita da ressurreição dos desejos.
Nessa espera, é muito útil a leitura de La legge del desiderio: radici bibliche della psicoanalisi ('A lei do desejo: raízes bíblicas da psicanálise', em tradução livre; Einaudi, p. 482), de Massimo Recalcati. O desejo, pilar da psicanálise, é também o centro da reflexão pessoal de Recalcati, construída em torno de uma intuição, cuja origem se encontra em Lacan, que a nota típica do desejo é desejar alguém que, por sua vez, nos deseja, porque a essência e a vocação do nosso desejo é ser desejados por outro desejo. Compreende-se, então, por que o fundamento bíblico é particularmente atraente para Recalcati, porque a fé cristã é um encontro gratuito de desejos, nossos e de Deus.
O fundamento bíblico da psicanálise de Massimo Recalcati está entre as operações intelectuais mais interessantes de atualização da herança bíblica na modernidade; e embora Recalcati se coloque explicitamente na linha de Lacan (e de Freud), sua contribuição é muito mais do que um simples desenvolvimento de teses anteriores. Em 2022, ele havia publicado La Legge della parola (A Lei da palavra), sobre o Antigo Testamento, e agora, com este segundo volume, seu trabalho se conclui, ou deveria se concluir, segundo o próprio autor. Em vez disso, acredito e espero que continue, porque os nós não resolvidos e as potencialidades ainda são muitos, e entre eles está o nexo entre graça, ética do desejo e ética da responsabilidade, presente, mas pouco desenvolvido no livro: “O dom da graça não isenta de modo algum da responsabilidade subjetiva, mas, ao contrário, a acentua”.
Foto: Divulgação/Editora Einaudi
A ideia do livro está bem expressa no primeiro capítulo, que é também uma síntese, tão eficaz que inevitavelmente gera muitas repetições, talvez demasiadas, ao longo do livro. De fato, a tese já a encontramos na breve introdução: “Os homens religiosos não sabem o que significa passar a vida inteira no amor, não sabem o que significa desejar e amar a vida. Seu ressentimento os envenena, sua impotência os intoxica, sua tristeza os resseca”. E assim, “a Lei não pode se limitar a interditar o desejo, porque a verdadeira face da Lei coincide precisamente com a do desejo..., porque a Lei é, na realidade, o nome mais próprio do desejo”.
A tensão, ou melhor, a alternativa entre Lei e desejo, é o centro teórico do livro, que em sua última parte passa de dual a ternário com a inserção da dimensão (paulina) da graça que faz com que a Lei, longe de se opor ao desejo, se torne sua possibilidade concreta e boa. O bom desejo é aquele que, à luz do mito de Adão e Eva no Gênesis, deseja o “gozo ‘de tudo’ com a condição, porém, de que seja excluída a possibilidade de gozar do ‘todo’”. Pois, embora a condição humana possa e deva desejar “tudo” (“tudo é seu”), não pode desejar “o todo” (“e vocês são de Deus”) - Elohim excluiu uma única árvore do jardim. O sentido com o qual Recalcati fala de Lei é, de fato, o da carta de Paulo aos Romanos - que, não por acaso, talvez seja o texto mais citado no volume, e ao qual é dedicado o excelente último capítulo.
E num duplo sentido: como Lei inimiga e assassina do desejo e do espírito, ou seja, como “maldição da Lei” (Gl 3,13), e como a Lei nova trazida por Jesus, aquela Lei do ágape que é a fomentadora do desejo: “Enquanto o homem permanecer dentro da perversa dialética entre Lei e desejo, não há salvação. O círculo é vicioso: a existência da Lei provoca o pecado que infringe compulsivamente a Lei”. Recalcati quer mostrar que o desejo é o centro do ensinamento espiritual e ético de Jesus: O desejo, de fato, “se configura como a forma mais radical do dever e, por isso, a Lei só pode, por sua vez, se afirmar como Lei do desejo, da qual Jesus se faz testemunha, e não mais como Lei contra o desejo... Consequentemente, a vida que se perde, a vida desgarrada, a vida marginalizada, a vida que foge da vida, não é mais a vida que não obedece à Lei, mas aquela que, tendo medo da vida, vive não tanto sem Lei, mas sem desejo”.
O livro também retorna ao grande tema do Sacrifício, que é outro pilar do edifício de Recalcati, porque sacrifício, Lei e desejo são aspectos profundamente entrelaçados: “A Lei é, antes de tudo, emancipada do culto do sacrifício. Isso também é recorrente na pregação de Jesus: não é a vida que deve se submeter sacrificialmente ao poder da Lei, mas é o poder da Lei que deve servir à vida”. De fato, não é difícil identificar em Jesus, na esteira dos profetas (Isaías, Oséias), uma posição clara contra a lógica do sacrifício em nome do ágape e da misericórdia.
E ao investigar o tríptico Lei-Sacrifício-Desejo, Recalcati entra em práxis e tradições muito importantes na vida cristã, questionando (delicada, mas eficazmente) seu sentido primeiro: “Virgindade, interdição e repressão da sexualidade, práticas ascéticas, jejum, celibato, não são preceitos que ele se preocupa em impor àqueles que o seguem. O caminho do autossacrifício como percurso de santificação não encontra aval em sua pregação.... Ele quer libertar o homem de uma ideia de Pai como aquele a quem o filho deve temer porque seu desígnio repressivamente normativo é impedir sua liberdade”. E assim pode afirmar que “o salvo é sempre aquele que não cedeu diante da Lei de seu desejo, que foi capaz de se manter conforme essa Lei”. Porque “a Lei que abate a vida sancionando implacavelmente a ofensa, o crime, o pecado, aniquila o desejo, interpretando-o apenas como uma ameaça à própria Lei”.
Em seguida, enuncia as duas doenças do desejo quando se confunde a relação com a Lei (e com a graça), a impotência e a utopia: “A impotência é o índice de uma vida contraída que renuncia à vida porque se sente esmagada pelo medo da vida. Os Evangelhos estão cheios de referências a essa doença, que também envolve, entre outros, os próprios discípulos de Jesus... Defender a própria existência da vida interpretada como uma ameaça significa não apreender o dom da criação”.
A patologia da utopia é, em vez disso, aquela que “na pregação de Jesus assume a forma essencial da fé no reino como algo que deveria compensar a vida por suas misérias e dores em um tempo sempre vindouro, em um mundo transcendente situado além deste mundo... A crítica à doença da utopia é claramente expressa na ira com que Jesus seca a figueira estéril em Mateus 21,18-22”.
Uma pedra de tropeço natural para uma leitura do evangelho como a Lei do Desejo poderia ser a cruz, a paixão e a morte de Jesus, que Recalcati assim contorna “A condição da cruz não coincide com a renúncia ao próprio desejo, mas aos prestígios do próprio Eu, à sua imagem narcisista. A renúncia à qual Jesus convida não diz respeito ao desejo, mas ao Eu como obstáculo ao desejo”. De fato, “Jesus crucificado não é, em absoluto, o símbolo do caráter necessário e masoquista do sacrifício, mas o de seu definitivo abandono”. E a cruz “não é o símbolo do sacrifício, mas o que faz morrer o sacrifício, é o que torna o sacrifício para sempre vão”. Porque “em sua paixão não há nenhum vestígio de uma imolação sacrificial”.
Muito bonita, talvez a parte mais convincente de um livro já muito convincente, é a leitura da ressurreição, que do capítulo 9 termina com o capítulo 10 sobre São Paulo. Lida pela perspectiva da Lei do Desejo, a ressurreição também tem um grande significado antropológico, ou seja, contém uma mensagem de salvação universal, e é uma mensagem realmente bonita. Recalcati a analisa a partir da maravilhosa categoria bíblica do “resto”: o primeiro resto indestrutível que retornará do exílio é aquele que continua a viver após a morte, graças a uma ressurreição: “O vazio do sepulcro nos obriga a procurar Jesus entre os vivos e não entre os mortos. Essa é outra lição fundamental da Páscoa cristã: existe sempre um resto indestrutível e eternamente vivo em toda morte. Sempre algo de quem que não está mais conosco resta conosco”.
Uma lição fundamental que se completa em “outra igualmente decisiva: como se pode permanecer fiéis ao evento que mudou as nossas vidas? Como não o deixar morrer? (...) Isso acontece com cada um de nós: fui fiel ao encontro que mudou minha vida? O encontro com um amor, com um mestre, com um ideal, com uma vocação? Vivi esse encontro de forma coerente, assumindo plenamente o risco? Ou o traí, dei-lhe as costas e o repudiei?”. Algumas ressalvas sobre (poucos) aspectos mais problemáticos, que escrevo num espírito positivo em relação a um projeto que acompanho com interesse e admiração.
O capítulo dedicado a Maria não é o mais bem-sucedido, em parte porque há uma leitura dos dois primeiros capítulos de Lucas que não é suficientemente teológica e metafórica, o que o leva a escrever que Maria “sabia muito bem que sendo Jesus filho de Deus...”. Maria não sabia “muito bem” o que fosse aquele seu filho, e provavelmente não o sabia de forma alguma; caso contrário, fica difícil explicar a fonte evangélica mais antiga sobre Maria, quando, com seus irmãos, vai até Jesus para levá-lo para casa porque achava que estava “fora de si” (Mc 3).
Outro uso impróprio do evangelho o encontramos quando afirma que a mulher que derrama o óleo perfumado sobre a cabeça de Jesus era “Madalena”, que não tem base nos evangelhos (na verdade, sabemos pelos evangelhos que não era Madalena). Também a leitura da traição de Judas, interessante e sugestiva por si só (Judas trai porque, por sua vez, é traído por Jesus), baseia-se em uma hipótese - que Judas acreditasse em um messianismo político - que não encontra fundamento nos evangelhos. Seu sério fundamento bíblico da psicanálise não precisa dessas afirmações, que a exegese já superou há tempo. Por fim, por um lado, Recalcati critica muito (e nós gostamos) a metáfora econômico-financeira aplicada ao cristianismo, mas, por outro, frequentemente usa, na esteira de seus mestres, palavras como “dívida simbólica” para com o pai e assim por diante, que não ajudam a escapar realmente daquele perigoso registro retributivo.
Concluo com as palavras, delicadas e comoventes, que encontramos na abertura do livro, nos agradecimentos: “Agradeço, finalmente, à mão de Jesus que eu sentia sobre minha cabeça quando criança”.
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O Jesus de Recalcati entre a Lei e o desejo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU