17 Setembro 2024
"E qual seria a base dessa Santa Aliança? Seria esse o objetivo de Francisco, profeta da paz em um mundo distraído? Certamente vemos uma ideia simples se desenvolvendo: todas as religiões podem se unir para promover, por meio da cidadania plena, a possibilidade de viver juntos", escreve Riccardo Cristiano, jornalista italiano, em artigo publicado por Settimana News, 16-09-2024.
A viagem do Papa Francisco aos confins da terra recém acabou, mas uma de suas principais características não foi compreendida. Essa distração poderia nos custar caro, porque muita coisa nos diz que estamos chegando a uma encruzilhada e não é lógico fingir que nada esteja acontecendo: isso nos é indicado pelo fato de que se fala muito sobre a extensão do conflito no Oriente Médio, citando uma guerra no Líbano que envolveria o exército israelense e, portanto, a milícia khomeinista do Hezbollah.
Quais seriam as dimensões desse novo conflito, se houver? O que acarretaria em termos de destruição e vidas humanas? Nem mesmo isso pode ser imaginado, pois não temos ideia da forma e dos limites que a guerra assumiria. Mas não há dúvida de que seria grave. A ação dos guerrilheiros khomeinistas do Iêmen, os Houtis, que lançaram um míssil hipersônico contra Israel, parece alertar que não se limitaria ao Líbano.
Israel certamente responderia. Mas a questão não é a ação e a reação, mas o contexto: ao trilhar esse caminho iríamos rumo a uma Guerra Santa? Evitá-la daria fôlego à esperança de uma Santa Aliança, esse é o ponto removido. Para nos explicar, é preciso entender o que seria essa Santa Aliança, que pode ser percebida claramente na ação de uma década de Francisco.
Francisco tem atuado, com evidente coragem e visão, para empurrar o mundo em direção a uma alternativa à Guerra Santa, que aqui é chamada de Santa Aliança. Ele também o fez nestas horas em que vivemos em Jacarta, ou seja, no coração daquele que é o país muçulmano mais populoso do mundo, assinando um novo documento para a humanização e a defesa da criação com o imã da grande mesquita de Istiqlal. Não são esses os dois nós mortais que estão apertando o pescoço do mundo? Desumanizar o outro é uma condição indispensável para as Guerras Santas, cuja violência extrema contribui para colocar em crise a casa comum.
Com razão, do Bahrein, o Vigário Apostólico responsável por toda a Península Arábica definiu essa assinatura como um ato que se coloca nos passos da assinatura em Abu Dhabi do Documento sobre a Fraternidade Humana, subscrito por Francisco e pelo Grande Imã da Universidade Islâmica de al-Azhar. Portanto, está claro que Francisco trabalhou e tem trabalhado há anos para trazer o coração do mundo sunita para o caminho de uma Santa Aliança que propõe a convivência.
É uma operação que contribuiu para progressos importantes e pode-se ver isso no complexo processo político: o coração político sunita hoje está se movendo, embora em meio a mil dificuldades, contra a extrema violência da inspiração religiosa, preferindo a visão de uma Santa Aliança para a convivência, embora os eventos estejam levando muitos a pedir para seguir o outro caminho. Em favor da perspectiva dessa Santa Aliança, pode-se ver claramente a ação daquelas partes significativas de Israel que se manifestam por um cessar-fogo em Gaza.
Grandes atores no mundo, não apenas no Oriente Médio, estão pensando na Guerra Santa: vemos o Patriarcado de Moscou trabalhando em nome de uma suposta “santidade” da terra russa, indivisível, inclusive recorrendo à violência extrema. Depois, certos ambientes ucranianos, sempre ligados à violência extrema, depois aquela direita israelense que persegue com extrema violência o projeto de assumir o controle de toda a terra que reivindica, completamente, e finalmente, últimos, mas não menos importantes, os aiatolás de Teerã, que fazem da violência extrema a principal forma de reestruturar o império persa, com o qual conquistar para o seu Islã, aquele sob liderança teocrática, o espaço que já foi chamado de “crescente fértil”, que vai de Bagdá ao Mediterrâneo.
E qual seria a base dessa Santa Aliança? Seria esse o objetivo de Francisco, profeta da paz em um mundo distraído? Certamente vemos uma ideia simples se desenvolvendo: todas as religiões podem se unir para promover, por meio da cidadania plena, a possibilidade de viver juntos.
O caminho começou a se mostrar possível com a Paz de Vestefália, que encerrou a guerra religiosa europeia, a Guerra dos Trinta Anos. E o que fez de Vestefália um ponto de virada que marcou época? A cidadania. É claro que o deletério cuius regio eius religio (“que a religião seja a daquele a quem a região pertence”) foi confirmado, mas foi acompanhado pelo reconhecimento do direito de exílio para os dissidentes, cujos bens, no entanto, só poderiam ser confiscados após três anos. Além disso, os direitos civis de todas as confissões foram igualados. Assim, nascia uma nova perspectiva: a cidadania.
A cidadania igualitária é a ideia que Francisco vem propondo com sua obra nesses anos de pontificado, desde 2019, quando como coroação de um longo trabalho, assinou o Documento de Abu Dhabi com o Imã al Tayyeb, depois promulgou a encíclica Fratelli Tutti, em 2020, e agora o Documento de Jacarta, em 2024. Sobre cidadania, o documento de Abu Dhabi afirma:
“O conceito de cidadania baseia-se na igualdade dos direitos e dos deveres, sob cuja sombra todos gozam da justiça. Por isso, é necessário empenhar-se por estabelecer nas nossas sociedades o conceito de cidadania plena e renunciar ao uso discriminatório do termo minorias, que traz consigo as sementes de se sentir isolado e da inferioridade; isso prepara o terreno para as hostilidades e a discórdia e subtrai as conquistas e os direitos religiosos e civis de alguns cidadãos, discriminando-os”.
Em Jacarta, o discurso foi além: concordando sobre a cidadania, pode-se avançar no cuidado dos vínculos, sem precisar “buscar a todo custo pontos em comum entre as diferentes doutrinas e profissões religiosas”, mas sim criando uma conexão entre as diversidades. Não seria justamente a Santa Aliança para vivermos juntos?
A nova emergência bélica que em breve poderia envolver o Líbano assume, assim, um significado valioso. De fato, o Líbano, com todas as suas graves carências, é o único Estado complexo, não confessional por ser multiconfessional, que propõe um modelo: o Estado da convivência, ou seja, do viver juntos, ou seja, de cidadania. Afundar esse Líbano, com todas as evidentes graves carências, significaria afundar o único modelo para a construção de outro Oriente Médio.
Por isso, chama muito minha atenção que esses ventos de guerra de que tanto se fala surjam nas horas em que se relembra o aniversário do massacre de Sabra e Shatila, página de escuridão conhecida da guerra civil libanesa e da invasão israelense. Essa página merece ser lembrada aqui, na dor que ela traz à tona, por um aspecto raramente lembrado: a convergência. O massacre no campo de refugiados foi realizado, como se sabe, por milicianos cristãos.
Eles mataram os refugiados, com suas próprias mãos, com o consentimento tácito do exército israelense estacionado fora dos campos. Mas a cobertura política para os massacres foi dada pelo regime sírio, aliado do Irã; não foi implicado de forma alguma no massacre, mas quando a guerra terminou, o líder da milícia cristã que perpetrou o massacre, Elie Obeika, foi nomeado pelos vencedores, ou seja, pelos sírios, como ministro. Eles lhe confiaram o ministério que deveria cuidar dos deslocados.
Os extremismos opostos, aqui especialmente o islamofóbico cristão e o totalitário sírio, aliado dos teocratas de Teerã, podem se entender: os defensores da Santa Aliança devem aprender urgentemente a se reconhecer. Esse me parece ser o grande mérito do grande trabalho do Papa Francisco.
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Da guerra santa à santa aliança. Artigo de Riccardo Cristiano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU