04 Setembro 2024
O físico e climatologista Christopher Rapley é, aos 77 anos, um daqueles cientistas que um dia decidiram dar um passo à frente e se mobilizar por causa das mudanças climáticas. Em 2021, renunciou ao cargo de assessor no Museu da Ciência de Londres porque havia patrocínios de empresas de combustíveis fósseis em suas exposições. Entre 2007 e 2010, tinha sido diretor desta mesma instituição, um dos muitos cargos que ocupou em seu país e, internacionalmente, relacionados à pesquisa. Cavaleiro da Ordem Britânica desde 2003, atualmente, está entre as ‘vozes’ mais autorizadas e críticas do sistema econômico na divulgação sobre a mudança global do clima, tema com o qual participou na última edição do festival Starmus Earth, na Eslováquia. Nós conversamos com ele.
A entrevista é de Rosa M. Tristán, publicada por El Asombrario-Público, 03-09-2024. A tradução é do Cepat.
Rapley, sempre com um sorriso no rosto e também contundente em suas declarações, iniciou sua carreira no mundo espacial, trabalhando por anos no desenho de instrumentos para missões espaciais da NASA. Ainda é um cientista visitante distinto no Jet Propulsion Laboratory. Professor de Ciências do Clima na University College London (UCL), por quase 10 anos (1998-2007) dirigiu o programa antártico de seu país, o British Antarctic Survey. Também foi diretor do programa Geosfera-Biosfera da Real Academia Sueca de Ciências, a mesma que concede os prêmios Nobel.
Convencido de que é necessário utilizar todos os caminhos para conscientizar sobre a urgência de deter as emissões, colaborou com Al Gore em sua campanha Live Earth e assessorou David Attenborough em sua série da BBC: Mudança Climática - Os Fatos. Inclusive, chegou a escrever e interpretar, com o dramaturgo Duncan Macmillan, a aclamada peça teatral 2071, estreada em 2014 no Royal Court Theatre de Londres e depois transformada em livro. Nela, retrata sua vida e carreira, ao mesmo tempo em que explica o que é o aquecimento global e seus impactos, bem como as controvérsias que o cercam.
O professor Rapley, que não perdeu nem sequer um concerto e conferência do Starmus Festival, em Bratislava, reconhece que a humanidade não está consciente de que enfrenta um fenômeno que nunca viveu e reivindica mais pressão sobre os políticos para que o levem a sério, porque “o que acontecer nos próximos 10 anos afetará por centenas ou milhares de anos”.
Você começou desenhando instrumentos para satélites para ver como era o Cosmos e agora está concentrado em nosso planeta porque, como destaca, deve ser a principal preocupação do momento. De fato, é?
Muitos de nós que fazemos ciência pensamos o mesmo: o planeta está nos enviando sinais muito fortes e a situação é preocupante sim, porque o clima está mudando muito rápido, algo que, na realidade, a comunidade científica já previu há 40 anos. Primeiro, preocupou-nos o que acontecia na atmosfera com os gases poluentes, mas agora vemos que a temperatura do oceano também aumenta e com ela há mais tormentas extremas, mais incêndios florestais e muitos outros impactos.
Sabemos há muito tempo o que precisa ser feito: reduzir rapidamente as emissões de gás, o petróleo e o carvão. Sabemos também que o conteúdo atmosférico de carbono e metano é mais alto do que nunca. No entanto, é verdade que, infelizmente, não vemos progressos e as temperaturas são cada vez mais quentes.
A ciência se surpreende com a velocidade da mudança climática nos últimos anos?
Não é uma surpresa. As leis da física, da biologia e da química são imutáveis. Não é possível negociar com elas. Sabemos há décadas que isto aconteceria, mas quando chega, parece que não se conhecia. É muito importante saber que no sistema Terra existem fronteiras, fenômenos que se chamam pontos de inflexão que fazem com que, de repente, esse sistema mude para um novo modo de operar. Já ultrapassamos alguns desses pontos e outros estamos a ponto de superar.
Por exemplo, no Starmus foi falado que uma parte da Antártida já pode ter ultrapassado um desses pontos fronteiriços, com um degelo tão significativo que pode aumentar o nível do oceano em termos globais. E embora possa parecer que a Antártida está muito longe de nós, de nossa vida cotidiana, no hemisfério norte, isto pode ter um impacto tremendo em todos. A quantidade de gelo é tal que pode alterar o nível do mar em nossos litorais, modificar as correntes oceânicas, inundar cidades. E depende de nosso comportamento como humanos para que isto aconteça.
Existe um setor convencido de que tecnologias como a inteligência artificial evitarão os piores danos, que nos salvarão, assim como outras que inventamos nos ajudaram no passado. Qual é a sua opinião?
Parece que sim, há pessoas que esperam que tecnologias como a inteligência artificial solucionem o problema. No Starmus, houve especialistas internacionais que nos mostraram como ela está se tornando poderosa. Ensinaram-nos como é irresistível, mas também como às vezes nos faz acreditar em alucinações que não existem e que tampouco nos mostra a informação mais justa para o mundo todo. E não se sabe quando a inteligência artificial é uma alucinação irresistível e quando é confiável.
Toda tecnologia pode ser usada para fazer o bem ou o mal, como aconteceu no passado. Seus efeitos dependem de duas questões: a qualidade da ferramenta e a qualidade da pessoa que a usa. Brian May, um dos organizadores do Starmus, é um guitarrista brilhante. Seu instrumento é bom, mas se me desse a sua guitarra, eu não conseguiria fazer o que ele faz.
Já vimos casos em que a inteligência artificial foi utilizada para manipular eleições. Além disso, está se desenvolvendo muito mais rápido do que as instituições conseguem intuir – sejam instituições jurídicas, políticas e mesmo econômicas – para manter um controle sobre ela. No momento, está à frente do que a sociedade sabe gerir. Outras tecnologias, sim, são realmente positivas, como vemos com as energias renováveis, que avançam.
As novas tecnologias demandam muitos minerais escassos. Ouvimos astronautas especialistas defenderem a mineração na Lua. A solução passa por essa mineração extraterrestre?
Sou bastante cético quanto à possibilidade de conseguirmos obter minerais fora da Terra com uma fórmula viável comercialmente, mas talvez eu esteja errado e isso aconteça, embora demorem anos. Sabemos também que existem muitos minerais valiosos no fundo do oceano profundo, mas é inegável que para obtê-los são necessárias ações de mineração que provocam grandes danos aos ecossistemas marinhos.
Como nos lembra a oceanógrafa Sylvia Earle, todos nós dependemos desses ecossistemas marinhos para ter o oxigênio que respiramos, inclusive, muito mais do que das florestas, e para equilibrar a temperatura do planeta, entre outras questões fundamentais. É preciso ter muito cuidado quando intervimos no sistema da Terra para evitar consequências perversas. Muitas vezes, acontecem e pagamos um preço alto para obter um benefício.
Há muitos anos, são realizadas cúpulas mundiais em busca de acordos para solucionar a mudança climática. Este ano acontecerá a de número 29, no Azerbaijão. A anterior foi em Dubai. Qual é a sua opinião a respeito destas reuniões de líderes?
Penso que todos os cientistas estão decepcionados e surpresos com o fato de que a mensagem que tentamos transmitir à sociedade não tenha alcançado uma reação contundente, nem do mundo político, nem dos negócios, nem das pessoas frente à mudança climática. Há muitas ações positivas, mas em nível e ritmo muito distantes do necessário. Poderia ser muito cínico sobre os debates em conferências que são realizadas em estados que se beneficiam enormemente com a venda de petróleo e gás. Muitas pessoas pensam que acolhem essas cúpulas para segurar os avanços. Não sei se é verdade, mas não me parece cair bem.
As mudanças climáticas não são um problema científico, mas social. Precisamos trabalhar com especialistas estudiosos que entendam como motivar a nós, humanos, para agir em temas que são bons para nós. Há muitas pessoas e instituições, incluindo governos, que afirmam querer fazer alguma coisa, mas ficam presas, seja por problemas psicológicos ou por barreiras institucionais que nos impedem de agir.
Sou responsável por uma equipe na UCL chamada Unidade de Ação em Mudança Climática. Lá buscamos uma compreensão profunda do comportamento humano para superar essas barreiras e criar uma agenda de ações, para fazer com que cada um descubra a sua capacidade de fazer algo útil. Verificamos que quando as pessoas contam uma boa história sobre como fizeram algo benéfico, outras fazem o mesmo e se tornam cada vez mais entusiasmadas, envolvem-se mais. Trata-se de construir o momento da ação e estamos contando com algum êxito. Não acredito que o planeta o tenha notado ainda e sabemos que há um longo caminho pela frente, mas é o nosso raio de esperança.
Muitas pessoas acreditam que não se trata de um desafio individual, mas, ao contrário, que a responsabilidade é das grandes empresas, da globalização...
Estamos aprendendo como ajudar a sociedade a lidar com esse problema. Muitas pessoas questionam por que têm essa responsabilidade, sendo que as grandes empresas agem contra. E o capitalismo está no centro do problema. Não se trata de uma externalidade, mas, sim, dos custos dos danos causados em operações corporativas cujo único fim é obter um benefício. Essas corporações se sentem livres; liberam dióxido de carbono e metano na atmosfera, mas não pagam pelos impactos. Se tivessem que pagar, seu comportamento mudaria.
Há quem sugira adaptar esse capitalismo para que se responsabilize pelos prejuízos às gerações presentes e futuras. Outras pessoas acreditam que o capitalismo é um sistema muito proativo na corrupção. É claro, se o lucro é o que move comportamentos nesse mundo econômico e financeiro, essa corrupção e o ódio sempre dominarão.
Precisamos de um sistema em que o papel da empresa não seja apenas obter lucros para os seus proprietários, mas favorecer toda a sociedade. Se isso fosse uma exigência legal, o mundo empresarial mudaria imediatamente. O mundo político deve compreender isto, e frequentemente está metido no saco do mundo dos negócios, porque os políticos precisam de seu dinheiro para ser eleitos e ao ser eleitos têm que pagar pelo que receberam, então, é muito difícil realizar uma mudança.
Pelo que aponta, temos um problema grave com os políticos eleitos democraticamente e a sua dependência de empresas. Não se vê solução para isto?
Fico preocupado com as tentativas existentes de desmantelar a democracia, de eliminar os direitos humanos que nos custou muito alcançar. Justamente quando queremos que a humanidade se recupere da violência passada e trabalhe junta pelo bem de todos, surgem forças poderosas buscando acabar com o mecanismo pelo qual podemos agir, que é através de acordos democráticos.
Todos nós que acreditamos na liberdade, na democracia e em um futuro melhor para os nossos filhos e para todos os outros seres vivos do planeta, temos que nos levantar e não deixar que um pequeno grupo de pessoas, mal direcionado, ganhe relevância. No final, estas pessoas também sofrerão como todos. É necessário mudar a maneira como a humanidade funciona.
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Mudança global do clima. “Sabemos há muito tempo o que precisa ser feito”. Entrevista com Chris Rapley - Instituto Humanitas Unisinos - IHU