28 Agosto 2024
É chamado de “cardeal poeta” porque escreve versos e tem uma prolífica obra poética, literária e teológica. Está ligado ao mundo intelectual e alguns o consideram “papável”.
De fato, o cardeal português José Tolentino de Mendonça destaca-se como prefeito do Dicastério para a Cultura e a Educação, que dirige há quase dois anos. Seu último sucesso foi o pavilhão da Santa Sé na Bienal de Veneza, que decidiu montar em um lugar inesperado: uma prisão feminina, que transformou em uma experiência imersiva singular, fundindo a arte com o mundo carcerário, uma dura realidade, difícil, que poucos querem ver, que se tornou uma das grandes metas deste evento.
Especialista na relação entre literatura e teologia e sempre ativo no mundo da cultura e da universidade, em 2014, representou Portugal no Dia Mundial da Poesia e, há anos, escreve uma coluna semanal no jornal Expresso, intitulada “Que coisa são as nuvens”.
Em fevereiro de 2018, como consultor do Pontifício Conselho para a Cultura, o Papa Francisco o chamou a Roma para pregar os exercícios espirituais para a Cúria Romana. Isto representou um trampolim para o Vaticano. Em junho do mesmo ano, foi nomeado arquivista e bibliotecário da Santa Igreja Romana, no ano seguinte, cardeal, e em setembro de 2022, prefeito do Dicastério para a Cultura e a Educação.
Em uma entrevista ao La Nación, em uma sala com uma vista espetacular da Praça de São Pedro, este teólogo e biblista nascido há 58 anos, na ilha da Madeira, falou sobre a sua vida. Disse que quando criança viveu com a família em Angola, experiência que o marcou a fogo pelos “espaços sem limites” da África, um continente que o cativou e com o qual, hoje, trabalha assiduamente. Começou a ser um leitor “onívoro” aos 11 anos, quando entrou no seminário menor de Funchal, que tinha “duas bibliotecas enormes”, e a escrever poesia, durante a adolescência. Trata-se de uma paixão que segue cultivando e que é a razão de ter sido apelidado “cardeal poeta”.
A entrevista é de Elisabetta Piqué, publicada por La Nación, 10-08-2024. A tradução é do Cepat.
O senhor está no Vaticano há seis anos. É compatível ser escritor, poeta, intelectual e, ao mesmo tempo, cardeal da cúria? Não sente um contraste?
Não, aprecio muito a minha liberdade interior. E mais, sinto o dever de continuar escrevendo, pensando e ter uma presença na cultura também como criador e seguir o meu caminho. O fato de ser cardeal não é um motivo para obstaculizar, mas, ao contrário, um motivo a mais para seguir nisto, que é também uma vocação.
Não sente, então, que cortaram as suas asas...
Não, absolutamente não. O Papa Francisco me ajudou muito nisto, sempre me deu toda a liberdade neste aspecto. Depois de me nomear cardeal, o que foi uma surpresa, quando nos reunimos e eu lhe disse: “Santo Padre, o que o senhor fez?” (risos), ele me respondeu: “porque você é a poesia” …
Não é que eu seja a poesia, mas em sua mente represento aquela cota de poesia que a vida deve ter, como São Francisco, que dizia a seus frades que deveriam ter uma horta para a subsistência da comunidade, mas que tinham que deixar uma pequena parte para plantar flores. Então, o útil e o inútil... e a poesia é o inútil que perfuma a vida.
Como é possível conjugar esta poesia com um Vaticano com muitos conflitos internos, intrigas e tensões entre aqueles que seguem o Papa Francisco e aqueles que resistem?
Todos padecemos os sofrimentos, os questionamentos, os dramas. Ninguém pode se sentir indiferente e me sinto parte deste tempo da Igreja, como servidor da visão do Papa Francisco. Estamos falando de poesia porque faz parte da minha biografia, mas a Igreja tem todos os recursos espirituais para viver este tempo. Um tempo que eu não vejo de modo pessimista, mas com esperança, porque vejo muitos homens e mulheres disponíveis a dar uma segunda oportunidade à Igreja.
Para o senhor, qual é o desafio mais importante da Igreja hoje?
Para mim, o desafio mais importante é a tradução da experiência cristã para a linguagem de nosso tempo. A experiência cristã não pode ficar ancorada em um tipo de linguagem herdada do passado, mas o desafio missionário sobre o qual o Papa Francisco fala é o sonho missionário de chegar a todos. Este é o grande desafio.
O que o senhor pensa da decisão do Dicastério para a Doutrina da Fé de excomungar dom Carlo María Viganò?
Uma decisão desta natureza é sempre um drama, não é um gesto que se possa fazer sem dor, sem um discernimento sério. Por outro lado, é preciso dizer que dom Viganò, que certamente fez muito bem em sua vida, em suas últimas posições, ele próprio se declarou fora da Igreja. Então, é uma decisão que foi consequência de suas posições sobre o papel do Santo Padre, sobre o Concílio Vaticano II e sobre a Igreja contemporânea.
O que significa para você o sínodo sobre a sinodalidade que, em outubro, terá a sua segunda sessão?
É um sínodo muito importante e penso que a questão da sinodalidade marcará a Igreja do futuro. O Papa Francisco teve uma grande visão ao promover este sínodo, porque a Igreja deve crescer. Contudo, para crescer deve agir através do diálogo consigo mesma, ativando todas as mediações e a participação dos batizados.
É desta participação que nascerão muitas outras coisas, mas devemos fazer do estar juntos um recurso e devemos ver a Igreja não de forma piramidal, mas como um corpo. O sínodo nos ajudará a enxergar isto claramente. Mais do que um tema ou outro, é justamente a participação e a vocação dos batizados que confere à Igreja um rosto sinodal, que penso que terá grandes consequências no futuro.
Quando o senhor orientou o retiro espiritual da Cúria Romana, em Ariccia, em 2018, também falou que é importante que os padres frequentem o cinema. Por quê?
Um padre tem que ser um especialista em humanidade. E as nossas experiências de humanidade são limitadas. Nós temos uma vida, não temos outras, e o cinema permite criar relações de empatia, de escuta, com figuras e situações muito diferentes das nossas. E isto é absolutamente necessário para um padre que deve ser como um obstetra: precisa ajudar a fazer nascer a vida, deve assistir ao parto e se não tiver a habilidade, ou seja, a capacidade de entender a complexidade do ânimo humano, que Fernando Pessoa dizia que era o abismo dos abismos da complexidade, se não tivermos esse olhar para a complexidade e a diversidade humana, não podemos realmente servir, conforme o Papa Francisco sempre repete.
Já há seis anos no Vaticano, o senhor vê o Papa Francisco com frequência. O que mais impressiona nele?
É uma boa pergunta. Impressiona-me muito a sua inteligência: é brilhante. Quando responde, é inteligente, profundo. Muitas vezes, surpreendentemente, leva as questões muito além. Isto é algo que me fascina e que tento aprender.
Depois, fico impressionado com a sua simplicidade evangélica. Nesse homem há cheiro de Evangelho. É comovente. Alguém disse: “Estou diante de alguém que acredita que a verdade é a verdade”. E isto não é muito comum.
Já esteve alguma vez na Argentina?
Sim, estive uma vez e viajarei novamente, em agosto, para visitar a Universidade Católica Argentina.
A Argentina, como sabe, é um assunto pendente para o Papa Francisco, que nunca viajou para a sua terra. E mais, todos lá vão perguntar ao senhor sobre este assunto. Pensa que ele irá?
Eu penso que ele vai lá todos os dias, que viaja para a Argentina todos os dias, certamente. Assim como eu, embora não seja deliberado, voluntário, viajo todos os dias ao meu país de origem. Todo homem é assim. Ele viaja sempre ...
Uma última pergunta: o senhor tem consciência de que alguns o consideram “papável”?
(Risos) Penso que a Igreja, neste momento, tem um Papa extraordinário que todos nós devemos apoiar de todas as formas e agradecer por tudo o que faz para ajudar a Igreja a ser mais missionária e mais profética.