02 Dezembro 2020
“Não é um caminho fácil, nós sabemos. Mas, seguindo os passos das incontáveis Mães da África, as gerações mais jovens são convidadas ao valor da resiliência. Ou melhor, resistência. Porque expressa melhor o esforço, o orgulho e a teimosia que une as mulheres africanas. Que resistam para que seus povos existam”, escrevem Elisa Kidanè e Maria Teresa Ratti, em artigo publicado por Vida Nueva Digital, 30-11-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Desde qualquer ponto de vista, falar sobre África, ou as Áfricas, suas mulheres e seus povos carregam o risco de serem repetitivos já que parece que tudo já foi dito. O clichê é mais ou menos sempre o mesmo e, ainda que se deem saltos mortais, o imaginário é imóvel e não é capaz de absorver aquilo que não reflete as milenares ideias preconcebidas de qualquer novidade. E no entanto, na África sempre se disse: “Ex Africa semper aliquid novi!”.
Há alguns anos, um jornalista que se apaixonou pela África, chegou a dizer que “o tema” da África não vendia, que não atraía ao mercado. Que miopia! Que memória curta porque, com os números nas mãos, recordemos que 80% do bem-estar do chamado “norte” do mundo provém da África.
Frente ao convite de Donne Chiesa Mondo a dar uma opinião, abriram-se duas possibilidades: rejeitar o oferecimento ou tentar narrar o futuro desta parte do mundo centralizando o relato na Igreja, África e a mulher. Uma grande aposta que tratamos de dar, tentando deixar de lado os estereótipos, descolonizando ao olhar e a mente e acompanhando assim outra narrativa deste imenso continente em forma de coração. Escolhemos a segunda alternativa com uma premissa: cantada ou não, a liturgia eclesial africana nunca pode prescindir delas, suas mulheres, a coluna vertebral que sustenta e cuida do desenvolvimento de todos os aspectos da vida.
Tanto se falamos de África ou mais elegantemente das “Áfricas”, para o imaginário coletivo deste continente é um mundo à parte. Não é assim como se percebe as mulheres e homens que nasceram nesta terra.
A África não é um mundo à parte, mas sim parte do mundo. E o que ocorre em todas as partes do mundo, para bem ou para mal, também ocorre na África. Ponto. Também se aplica o problema da relação entre a mulher e a Igreja. Queremos falar sobre isso.
Uma grande filha da África, Malian Aminata Traoré, escreveu: “Se você se sente como um mendigo, você se comportará como um mendigo. Para recuperar o nosso futuro, a primeira coisa que devemos fazer é descolonizar o nosso espírito”. Para fazer isso, a história deve ser reescrita, mas desta vez aqueles que foram considerados perdedores, ou perdedoras, neste caso, devem fazê-lo. Por muito tempo, a África esteve presente na estrutura social como um ouvinte sem direito de falar ou responder.
Até na Igreja. O caminho da evangelização na África nem sempre teve em conta a vida dos seus povos como lugar sagrado onde Deus sempre viveu. Muitas vezes deixamos de considerar as culturas, crenças e espiritualidade dos povos da África como o solo fértil para cultivar a exuberante planta do Evangelho.
No pior dos casos, uma folha em branco foi feita e o solo foi semeado com sementes de outras terras, muitas vezes, sem saber, favorecendo uma profunda dicotomia entre a vida vivida no sulco doméstico da Religião Tradicional Africana e as Boas Novas de Jesus, muitas vezes apresentado por uma multidão de Igrejas divididas e até opostas entre si.
Embora seja considerado “um pulmão de espiritualidade” – como Bento XVI definiu a África na abertura da segunda Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos para a África, 2009 –, hoje encontramos um continente onde a porcentagem de cristãos é alta, mas a mensagem de libertação que é a Boa Nova ainda luta para encontrar a cidadania plena na vida diária de milhões de mulheres e homens.
A experiência de transformação inerente à mensagem cristã foi recebida de forma extraordinariamente viva nas liturgias, onde não se contam as horas para celebrar a beleza da fé. Muitos povos saem de celebrações calorosas e coloridas e se encontram em situações de marginalização, empobrecimento e injustiça que ofendem profundamente a dignidade humana e a verdade do Evangelho.
Além disso, parece-nos que a Igreja na África, e a Igreja universal, ainda carecem de páginas fundacionais de narração, de histórias inéditas de homens e mulheres que conseguiram transformar a mensagem de Cristo em uma vida vivida, pagando caro por sua existência em favor de um testemunho cristalino dos valores do Evangelho. Há homens e mulheres que nos deram páginas de reflexões corajosas, uma teologia africana capaz de tocar as cordas da alma dos seus povos, uma literatura única que, com uma multiplicidade de estilos, celebra o sentido e o fluxo das idades da vida e dos acontecimentos que o acompanham com clareza exemplar.
Muito pouco se sabe. Gostaríamos de saber o tipo de bibliografia que se utiliza nos seminários ou casas de formação religiosa africanas. Que novas gerações podem emergir desses lugares que marcam o caminho da fé em uma comunidade cristã, se você não tiver a coragem de aproximá-los à fonte viva de nossas raízes e culturas? Continuar a emprestar conhecimentos, obras, ideias, conceitos, teologias e santidade só reforça o estereótipo que representa a África como um recipiente que só recebe. A história deve ser reescrita.
Já existem volumes importantes, mas devemos ter a coragem de lê-los, compartilhá-los, apropriá-los e divulgá-los. Anos atrás, quando o vento das intolerâncias já era forte e várias fronteiras começavam a se entrincheirar, Lilian Thuram, uma futebolista francesa nascida em Guadalupe, escreveu o livro “My Black Stars, de Lucy a Barack Obama”. No prefácio narra: “Durante a minha infância, mostraram-me muitas estrelas. Eu as admirava, sonhava com elas: Sócrates, Baudelaire, Einstein, General de Gaulle... Mas ninguém nunca me falou das estrelas negras. Eu não sabia nada sobre meus ancestrais”. Ela se arma de valor para encontrar quase cinquenta homens e mulheres no firmamento dessas estrelas negras que desconhece.
Pensando na história do continente, e especificamente da Igreja na África, já é tarde para narrar a evolução da experiência cristã e seu impacto na sociedade desde homens e mulheres, jovens e velhos do que ao longo dos séculos traçaram o caminho africano para a santidade. Folheando calendários litúrgicos ou martirologias universais, parece que para os santos e santas africanos o crime de segredo também impera no Paraíso! Sem esquecer que agora é imperativo ter uma narrativa de fé que fala de um discipulado integral seguindo os passos do Nazareno.
Por muitos séculos a África foi desprezada, é um dever de justiça e verdade. Coragem, mulheres da África, leiam estas páginas. Juntas devemos ter a coragem de apontar as estrelas negras que iluminam o firmamento da Igreja universal. Nas palavras de Thuram, “toda pessoa precisa de estrelas para se orientar, precisa de modelos para construir a autoestima, para mudar sua imaginação, para quebrar os preconceitos que projeta sobre si mesma e sobre os outros”.
O papa Bento XVI, na audiência geral de 14 de fevereiro de 2007, disse: “A história do cristianismo teria tido um desenvolvimento muito diferente se não fosse pela generosa contribuição de muitas mulheres. Por isso, como escreveu o meu venerado e querido predecessor João Paulo II na Carta Apostólica Mulieris dignitatem, a Igreja dá graças por cada mulher. A Igreja aprecia todas as manifestações do ‘gênio’ feminino que se manifestou ao longo da história no seio de todos os povos e nações. Dai graças por todos os carismas que o Espírito Santo concede às mulheres na história do Povo de Deus, por todas as vitórias que devem à sua fé, esperança e caridade. Ele os agradece por todos os frutos da santidade feminina”.
Ousamos sugerir que não apenas a história do Cristianismo, mas toda a história da Salvação, desde a primeira Eva até a Mulher do Apocalipse, teria sido uma história completamente diferente sem a presença e contribuição das mulheres.
Nas duas Assembleias Especiais do Sínodo dos Bispos para a África (1994 e 2009), o papel das mulheres na Igreja foi discutido. Surgiram propostas, promessas e muitos e infinitos pequenos passos, mas nada em comparação com as expectativas que as comunidades cristãs e suas mulheres tinham e têm em seus corações.
Certamente, os Sínodos são plataformas privilegiadas e areópagos que o Papa convoca para ouvir, conhecer, compartilhar e iluminar os passos da Igreja no sinal da sinodalidade. Mas se a questão de como iniciar um diálogo aberto sobre a questão das mulheres é genuína na Igreja, nos perguntamos: por que não um futuro Sínodo em que as mulheres falem com o Papa para se relacionar, explicar e indicar colegialmente os caminhos a seguir para sua maior participação dentro e para o benefício de toda a Igreja? Seria extraordinário poder fazê-lo falando talvez da Igreja da África!
A viagem do papa Francisco à República Centro-Africana para abrir a Porta Santa por ocasião do Jubileu Extraordinário da Misericórdia foi um exemplo brilhante de proximidade ao sofrimento e à esperança de um povo que por muito tempo sofreu as consequências de múltiplas tensões e incertezas sem fim.
Para falar adequadamente sobre a África, a Igreja e as mulheres que carregam este continente (inclusive a Igreja) sobre os ombros, é necessário mudar o olhar, o tom de voz e, sobretudo, a língua. O que sempre denota uma certa mentalidade.
Como é triste ouvir certos ministros ordenados se dirigirem a mulheres consagradas como se estivessem conversando com meninas para instruir e acompanhar. Quando se fala da África, seus povos, suas mulheres e mulheres consagradas, ouvem-se frases como: “essas Igrejas são (sempre) muito jovens”; “ainda precisam de muito lá”; “Elas não estão prontas ainda”; “Elas nunca farão o que fizemos!”. Revelam a mentalidade de quem observa este continente com um mal disfarçado, senso de superioridade e considera estes povos mais vítimas do que interlocutores.
As mulheres africanas não estão esperando que alguém venha resgatá-las. Desde tempos imemoriais, elas andam descalços e carregam o continente nos ombros (incluindo a Igreja). São aquelas que cuidam da humanidade e que pagam com a própria vida a vida dos outros. Elas mantêm e transmitem a fé. Olhando para elas com um olhar transparente, parece que se encontram envoltas em um fio invisível que as une a todos. Todas as manhãs parece que se pode sentir o abraço caloroso destas milhões de mãos femininas que seguram, acariciam e embalam a humanidade ferida dos povos da África.
A questão da linguagem, pouco considerada e subestimada, é de relevante importância. A Igreja e os homens da Igreja devem aprender a nos nomear e a não nos entender. Não é um mero exercício de sintaxe tentar usar e exigir uma linguagem inclusiva. O problema é que, ao não nos incluir em seus discursos, a Igreja também nos torna invisíveis.
Durante a segunda Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos para a África, na qual uma de nós participou como auditora (Elisa), esperávamos que os bispos se dirigissem às mulheres como nunca antes, chamando-as de “queridas irmãs e mães da África”. E também sugerimos o que dizer a nós mesmos: “Em primeiro lugar, dirigimo-nos a vocês como crianças. Porque vocês são as professoras de paz, harmonia e reconciliação. Hoje pedimos que caminhem conosco no processo de renascimento, cura e justiça para nossa África. Vocês, que sempre percorreram as nossas ruas e as conhecem palmo a palmo, guiar-nos-ão e mostrar-nos-ão os caminhos a escolher para não nos perdermos num labirinto de intermináveis discursos. A vós confiamos o presente e o futuro das nações”.
Onze anos se passaram desde o Sínodo, e as mulheres africanas ainda estão esperando para serem consultadas e incluídas. Enquanto isso, uma multidão silenciosa de comunidades cristãs continua a testemunhar o Evangelho, a Boa Nova entrelaçada na carne e a vida cotidiana do continente que acolheu Jesus, refugiado no Egito, e que pelo cireneu Simão o ajudou a carregar a cruz, “achada no caminho” (Mateus 27, 32).
Mas não percam a esperança. Afinal, nós mulheres fomos as primeiras a receber o anúncio da Ressurreição!
Enquanto no resto do mundo a escassez de vocações já causa efeitos colaterais (envelhecimento, propriedades imensas e vazias, disparidade de gerações), na África há anos a vida consagrada da mulher encontra terreno fértil para crescer e se difundir. No entanto, essa vivacidade nem sempre é vista com grande simpatia entre os corredores dos institutos de fundação histórica.
Aqui encontramos a retórica habitual: “mas são verdadeiras vocações? Venham conosco para melhorar, ou mais seguro, para estudar?”. Lugares comuns que machucam. As vocações ministeriais e religiosas que surgem na África são um dom que Deus dá à Igreja para o bem de toda a Igreja e da humanidade. O discernimento é essencial, na África como em outros lugares.
A vida religiosa africana está tendo um impacto profundo na vida da Igreja e da sociedade. Significativas são as palavras de irmã Giuseppina Tresoldi, missionária comboniana que durante anos acompanhou, em nome da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica, o caminho das religiosas na África: “Entram no tecido social e da Igreja e provocam uma transformação atuando nos setores vitais da educação, da saúde e da formação cristã das pessoas. O potencial da vida religiosa na África está fora de questão. Como canalizar a riqueza dos vários carismas e ministérios dentro da Igreja para o seu crescimento e santificação, destacando sua face africana, continua sendo um grande desafio para cada congregação e bispo diocesano”.
Daí o apelo aos bispos para que olhem com mais equidade e respeito à vida consagrada para as mulheres e não pensem apenas nos seminários e na formação dos sacerdotes, mas também em dar oportunidades iguais de formação às religiosas e leigas. Enriqueçam seus ministérios e se beneficiem de sua experiência.
As religiosas e as mulheres que vivem em todos os cantos da África (assim como em outros países do mundo) devem ter a coragem de pedir à Igreja que nos olhe com os olhos de Jesus, que soube reconhecer a mulher como fiel co-protagonista do seu mistério pascal, e reivindicar o espaço que é nosso dentro dos lugares onde se votam as decisões – humanas, de fé e de pertença cultural – sobre a nossa própria vida e a vida das nossas comunidades.
Devem estar presentes nas formas que propiciam a formação integral da pessoa, não só nos projetos de desenvolvimento humano, mas também nos seminários, para que a visão da mulher seja ampliada não só como mãe, irmã ou cozinheira, mas como aluna, professora, teóloga e profissional. E reivindicar mais a urgência da nossa corresponsabilidade eclesial, não como exceção, mas como hábito.
Não é um caminho fácil, nós sabemos. Mas, seguindo os passos das incontáveis Mães da África, as gerações mais jovens são convidadas ao valor da resiliência. Ou melhor, resistência. Porque expressa melhor o esforço, o orgulho e a teimosia que une as mulheres africanas. Que resistam para que seus povos existam. Também para recuperar a posse daquelas raízes antigas da história que honra a África não só como berço da humanidade, mas também como guardiã da Terra onde todos aprendemos a olhar para o céu.
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As mulheres africanas carregam sobre seus ombros o continente... e a Igreja - Instituto Humanitas Unisinos - IHU