21 Agosto 2024
Restaurar a Mata Atlântica numa terra indígena pode facilitar a movimentação de grandes animais no noroeste gaúcho. Disputa pela área aguarda uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), enquanto a Força Nacional de Segurança Pública tenta acalmar os ânimos regionais.
A reportagem é de Aldem Bourscheit, publicada por ((o))eco, 20-08-2024.
Homologados em abril do ano passado, os 711 ha da Terra Indígena Rio dos Índios abrigam cerca de 230 kaingang. Cada ha equivale a cerca de um campo de futebol. Hoje marcados pela agropecuária, de 350 ha a 550 ha do total podem ser recuperados.
Quem avalia é Alexandre Krob, coordenador Técnico e de Políticas Públicas do Instituto Curicaca. A ONG atua com os indígenas resgatando a vegetação nativa, inclusive para formar um corredor que ajudará espécies como onça-pintada, queixada e veados. “É uma oportunidade de ouro”, resume.
Essa “estrada verde” facilitaria o deslocamento desses ameaçados animais entre os maiores maciços conservados naquela porção do estado, as terras indígenas Nonoai, Rio da Várzea e Guarita, os parques estaduais florestais de Nonoai e do Turvo, e margens vegetadas do Rio Uruguai.
Já rodando, a restauração acontece com mutirões e privilegia plantas usadas no artesanato e alimentação kaingang, incluindo a erva-mate e a araucária. O cacique Saci, ou Luís Salvador, afirma que o trabalho irá manter fontes de água, biodiversidade e a cultura daquele povo.
“O extermínio da floresta e do pinhão [semente da araucária] bateram forte na região, mas no território [Rio dos Índios] ainda terá muita vida. Nossos filhos e netos e toda a sociedade colherão os frutos da restauração da Mata Atlântica”, projeta.
Uma das seis terras indígenas homologadas pelo governo federal desde o início de 2023, a TI Rio dos Índios é palco de disputas e pressões políticas. Até agora, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) indenizou e desapropriou cerca de 100 ha (14%) dos 711 ha da área protegida.
Proprietários legítimos ou de boa-fé que forem pagos pelas benfeitorias devem deixar o local em até 30 dias, diz a autarquia federal. Já quem ocupou as terras com violência, causou destruição ambiental ou o fez após a destinação aos kaingang, pode não receber nenhum tostão.
“Se indenizarem apenas as benfeitorias, os produtores irão plantar onde?”, questiona o prefeito de Vicente Dutra, Tomaz Rossato (MDB).
A Funai não atendeu nossos pedidos de entrevista até o fechamento da reportagem, mas em notícia do Ministério dos Povos Indígenas diz que a saída de “não indígenas” mitigará “conflitos fundiários” e irá reparar “injustiças, violências e esbulho perpetrados historicamente”.
A autarquia também afirma que a Rio dos Índios foi homologada após “extenso e criterioso processo” de “identificação e delimitação, respeitado o direito ao contraditório”.
Já o presidente do Sindicato dos Produtores Rurais de Vicente Dutra, Marcelo Soares, diz que a Funai avançou na regularização fundiária da terra indígena mesmo após uma liminar da Justiça Federal ter congelado as desapropriações. “Foi um ato ilegal essa retirada de moradores”, acredita.
A liminar concedida em outubro passado pela juíza Maria Pezzi Klein, da 9ª Vara Federal de Porto Alegre, atendeu uma ação de agricultores e da Associação dos Amigos das Águas do Prado. O caso aguarda julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Uma batida de martelo que pode acabar com uma disputa de ao menos duas décadas entre indígenas, agricultores e microempresários por aquelas terras, em Vicente Dutra. O município é capital estadual da cuia de chimarrão, bebida típica gaúcha.
Para Soares (Sindicato dos Produtores Rurais), 711 ha serão “perdidos” com a Rio dos Índios e até o turismo será afetado, como num parque de águas termais agora na terra indígena. “Que fiquem na área deles e não tirem terras de quem está trabalhando, produzindo e pagando impostos”, diz.
Já o prefeito Tomaz Rossato diz que a área da TI a “vida toda” foi de produção rural, como soja, milho, trigo, feijão e mandioca para sustento familiar, e que os índios apenas acampavam, por exemplo para vender artesanato, na área hoje homologada.
“Se for respeitar o marco temporal, temos boa expectativa para solução do problema, mas se não tiver volta teremos que cumprir, mesmo contra a vontade”, diz o administrador.
Em avaliação no STF, a tese do marco temporal só permitiria a demarcação de terras ocupadas por indígenas até 1988. Naquele ano foi proclamada a nova Constituição Federal, determinando a devolução gradual das terras a povos indígenas que foram removidos à força de suas moradas.
Os kaingang hoje pleiteando a TI Rio dos Índios ocupavam até então cerca de 8 ha em Vicente Dutra. Daí a expectativa da etnia de que a homologação dos 711 ha seja validada pela Corte Suprema. O impasse mantêm os ânimos regionais acirrados.
Em novembro passado, casas e galpões de famílias agricultoras na terra indígena foram incendiadas. À época, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) afirmou que os crimes foram uma retaliação a famílias que estariam negociando indenizações com a Funai.
A TI Rio dos Índios é listada no relatório de 2022 sobre Violência contra Povos Indígenas no Brasil, da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
A temperatura subiu ainda mais quando a Prefeitura de Vicente Dutra pagou R$ 200 mil a um advogado e a um antropólogo para questionar a homologação, diz o jornal Sul21. “Estamos fazendo de tudo para que isso não aconteça”, ressalta Soares (Sindicato dos Produtores Rurais) a ((o))eco.
A ameaça de conflitos fez o ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, enviar a Força Nacional à região, ao menos até o fim de outubro, para garantir a segurança de todas as pessoas e apoiar servidores federais e estaduais na demarcação das terras.
“É a própria Funai e essas ONGs que fazem a cabeça dos coitados [indígenas], mas conseguimos levar ‘meio conversado’ [com os produtores rurais]. Até então está tudo na paz”, pondera o prefeito Tomaz Rossato.
Conforme o cacique Saci, a área terra indígena também é alvo de “políticos falsos” levando violência, álcool e drogas tentando minar a resistência dos kaingang em permanecer na área homologada. “Mas, sem território não há vida, não há cultura”, ressalta a liderança.
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Terra indígena pode reforçar via para grandes animais no Rio Grande do Sul - Instituto Humanitas Unisinos - IHU