10 Agosto 2024
Durante um encontro com Anita Fernández, neta de Esther Ballestrino de Careaga, Mãe da Praça de Maio sequestrada e desaparecida em 1977, o Papa definiu como “perigosa” a visita dos deputados libertários aos prisioneiros genocidas.
O artigo é de Washington Uranga, jornalista e pesquisador em comunicação argentino, publicado por Página|12, 09-08-2024.
“Não relaxe, guarde a memória do que recebeu. “Não só de ideias, mas de testemunhos”, disse o Papa Francisco num vídeo que gravou a pedido de Anita Fernández durante um encontro que realizaram em Roma para o Instituto Espaço de Memória. Anita é neta de sua amiga Esther Ballestrino de Careaga, sequestrada e desaparecida pela ditadura militar, e filha de Ana María Carreaga, que também foi sequestrada enquanto estava grávida dela durante a conversa privada na residência de Santa Marta, no Vaticano. O Papa reconheceu ter conhecimento do encontro entre deputados de La Libertad Avanza com presos genocidas na prisão de Ezeiza. Um encontro que o chefe da Igreja Católica caracterizou como “muito perigoso” e apelou “para cuidar da democracia”.
“Cheguei à reunião com a ideia de perguntar a Francisco a sua opinião sobre a visita dos legisladores aos repressores, mas descobri que o Papa me disse, antes que eu pudesse perguntar-lhe, que tinha sabido da visita aos estes crimes genocidas e que ele estava muito preocupado com isso", disse Anita Fernández em entrevista à rádio AM 750. Ali também destacou que "é muito relevante que seja o Papa quem envie esta mensagem de memória, verdade e justiça ao povo argentino, que foi uma mensagem direta para não acabar com esta luta".
As informações e o vídeo da entrevista foram divulgados pelo Instituto Espaço de Memória e não diretamente pelo Vaticano por se tratar de um encontro privado. Junto com Fernández também participaram do encontro seu marido, Pablo Mac Cormack, seu pai, Jorge Fernández e sua esposa Bibiana Belbasso.
Ainda jovem, de apenas 16 anos, Bergoglio conheceu Esther Ballestrino de Careaga quando trabalhava como técnico químico em um laboratório e a mulher, posteriormente sequestrada, trabalhava como sua chefe em um laboratório em Buenos Aires. Careaga foi uma das três Mães da Praça de Maio sequestradas em dezembro de 1977 (graças à infiltração de Astiz no incipiente movimento de direitos humanos) e foi vítima dos chamados "voos da morte" através dos quais os militares jogavam prisioneiros no Rio da Prata.
Anita Fernández relatou que o Papa lhe contou nesta ocasião como conheceu sua avó e a descreveu como “uma mulher amorosa, extraordinária e muito divertida”. Segundo o comunicado divulgado pelo Instituto Espaço de Memória, “na entrevista, o Papa também lembrou com admiração sua amiga e companheira Esther Ballestrino de Careaga e disse que com ela aprendeu sua amplitude política, entre outras palavras carinhosas”.
Aqueles que visitam Francisco no Vaticano afirmam frequentemente que o Papa acompanha de perto os acontecimentos atuais no seu país natal. Por isso, não surpreende que este não seja o primeiro gesto de Jorge Bergoglio em relação à intenção do LLA de encerrar a memória do genocídio cometido pela ditadura militar.
Esther Ballestrino de Careaga fez parte do primeiro grupo de Madres da Plaza de Mayo que, junto com militantes e religiosos, entre os quais as freiras francesas Alice Domon e Léoni Duquet, se reuniram na Igreja da Santa Cruz para colher informações sobre os detidos desaparecidos. O marinheiro Alfredo Astiz participou de uma dessas reuniões e, se passando por parente do desaparecido, integrou a quadrilha que sequestrou esse grupo em 8 de dezembro de 1977. Hoje Astiz está condenado e preso na prisão de Ezeiza.
Na semana passada e de forma inesperada, Francisco incluiu na sua agenda de visita à Itália um encontro com a freira Geneviève Jeanningros, sobrinha de Léoni Duquet, irmã de sua mãe. Segundo a informação oficial fornecida pelo Vaticano, foi muito próximo e cordial com a freira francesa que na altura criticava a Igreja pelo seu “silêncio” em relação à ditadura militar mas que mais tarde acabou por aceitar que “era a proximidade e a ternura do Papa que me curou de tanto sofrimento”.
Agora Geneviève Jeanningros, da congregação das Irmãzinhas de Jesus de Charles de Foucauld, trabalha no bairro romano de Ostia num projeto que inclui pessoas em situação de pobreza, da comunidade LGTB+, trabalhadores de circos itinerantes.
O grupo de deputados que visitou Ezeiza era formado por Beltrán Benedit, María Fernanda Araujo, Guillermo Montenegro, Alida Ferreyra, Rocío Bonacci e Lourdes Arrieta, mas uma vez conhecido o fato, surgiram outros contatos entre membros do LLA e repressores detidos em Campo de Maio.
Segundo disse Bonacci, a visita não foi estranha para o chefe da Câmara dos Deputados, Martín Menem, e que foi a ministra da Segurança, Patricia Bullrich, quem deu instruções ao Serviço Penitenciário Federal para facilitar o acesso dos legisladores à prisão.
A este respeito, a deputada Rocío Bonacci admitiu que “parece que isto teve a concordância de Patricia Bullrich” e admitiu que o protocolo de segurança com o qual os legisladores foram recebidos em Ezeiza “era todo muito irregular”. Vale lembrar que os visitantes entraram sem nenhum tipo de registro e até portando celular – algo que não é permitido – o que também possibilitou que fosse tirada uma “foto de família” junto com os repressores, imagem que passou a ser divulgada através da mídia.
Bullrich destacou em uma visita a Mendoza que “uma coisa é cumprir uma sentença e outra é infligir a essa sentença uma situação de extrema gravidade, como ter uma pessoa com câncer terminal em uma prisão” sem fundamento de acordo com as informações emanadas do Serviço Penitenciário.
O próprio ministro da Justiça, Mariano Cúneo Libarona, defendeu a concessão da prisão domiciliária aos repressores atualmente presos. Em ocasião anterior o ministro havia afirmado que “estamos afetando o critério de humanidade das penas. “Estamos afetando o critério da dignidade e isso não se tornou justiça, mas sim uma vingança”. Disse ainda que “para mim há pessoas com mais de 80 anos que estão doentes, debilitadas e presas, que bem poderiam estar noutras condições de detenção”, disse o ministro. E acrescentou que se trata de “pessoas que merecem morrer em casa com uma tornozeleira da mão da mulher”.
Agora, em sua entrevista ao AM 750, Anita Fernández reconheceu que “a visita a Ezeiza não me surpreendeu, mas me causou muita ansiedade” porque sabemos que “Victoria Villaruel trabalha há muito tempo para reivindicar terrorismo de Estado”. E destacou “a necessidade de fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para que não possam avançar nesse sentido, porque isso seria muito grave para toda a sociedade argentina”.
Uma tentativa de condenar a visita dos deputados governistas ao presídio de Ezeiza foi frustrada esta semana na Câmara devido ao bloqueio consumado pela Hacemos Coalificación Federal, subtraindo o quórum da sessão em que a iniciativa seria discutida.
Segundo o procurador Félix Crous, que atua no caso ESMA, “a política oficial é a proteção dos repressores”. O procurador acrescentou a este respeito que “a política retórica e a atuação do governo vão no sentido da simpatia, do apoio e da cumplicidade com os condenados da ditadura” e denunciou que o LLA “não é um governo negacionista ou relativista, mas tem pontos de identificação com o processo” acrescentando que “parte da política oficial é proteger os repressores e isto deve ser dito sem eufemismos”.
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Papa apoiou a exigência de memória, verdade e justiça. Artigo de Washington Uranga - Instituto Humanitas Unisinos - IHU