14 Setembro 2023
A segunda vida de F. Santucho começou em 28 de julho de 2023, quando se tornou oficial sua descoberta pelas Avós da Praça de Maio [Abuelas da Plaza de Mayo], graças ao teste de DNA. F. é uma inicial fictícia – Santucho pediu para permanecer anônimo – mas é o neto número 133 recuperado pela organização humanitária argentina que há 47 anos se dedica à busca dos cerca de 500 recém-nascidos e crianças roubadas e desaparecidas desde os primeiros meses da ditadura cívico-militar que abalou o grande país sul-americano entre 1976 e 1983.
A reportagem é de Federico Tulli, publicada por Riforma, 15-09-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Crianças tiradas das mães prisioneiras (e depois sumidas) nos centros de detenção clandestinos do regime e entregues a outras pessoas que alteraram os seus dados pessoais. Muitas das crianças roubadas, como “saque de guerra”, foram de fato registadas como filhos legítimos pelos próprios membros das forças repressivas. Para todos foi anulada a sua verdadeira identidade, e não apenas simbolicamente. O propósito (insano e criminoso) dessa prática planejada pelos golpistas era cortar os laços de sangue para bloquear a propagação do "gene marxista", tirando as crianças das famílias dos "subversivos" e confiando-as a quem pudesse educá-las de acordo com os valores "ocidentais e cristãos". De acordo com essa visão os Santuchos eram subversivos muito perigosos. Julio Santucho, pai do neto 133, foi um dos símbolos da resistência à ditadura. E quando essa história começou estava no exterior, no exílio para escapar da captura e da morte e encontrar uma maneira de colocar à salvo toda a família.
A primeira vida de F. Santucho “começou”, se assim podemos dizer, antes mesmo do seu nascimento.
Precisamente em 13 de julho de 1976, “quando uma patrulha de militares golpistas invadiu uma casa de Buenos Aires onde havia três jovens mulheres com três crianças." Miguel “Tano” Santucho, filho de Júlio e irmão do “neto 133”, conta essa história. Encontramo-nos com ele em Roma, onde, com toda a sua família, foi convidado pelo prefeito Gualtieri para festejar o reencontro no Campidoglio, sede do governo de Roma.
Durante muitos anos, junto com o irmão Camilo e o pai, Júlio, Miguel esteve exilado na capital. Hoje, conta Miguel, "voltamos a morar em Buenos Aires e foi aqui que pudemos abraçar o nosso irmão pela primeira vez. Foi uma emoção indescritível", conta visivelmente emocionado.
Religamos os laços com Miguel: “Em 13 de julho de 1976 eu tinha 8 meses, Camilo tinha três anos e estávamos naquela casa junto com a nossa mãe, Cristina Navajas, e a irmã de nosso pai, Manuela Santucho, e outra companheira, Alicia D'Ambra. Eles levaram as três embora. Minha mãe tinha 26 anos quando desapareceu e ninguém, nem mesmo meu pai e a nossa avó Nelida Gomez Navajas, sabiam que ela estava grávida. A vovó descobriu isso mais tarde no diário de nossa mãe".
Nelida Navajas uniu-se às 12 mulheres que haviam recentemente fundado as Avós da Praça de Maio e começou a busca por sua filha. F. nasceu em um centro de detenção no início de 1977 e foi entregue a um agente de segurança casado com uma enfermeira. Hoje, o homem, agora com 90 anos, está sendo julgado em Buenos Aires. Também por essa razão F. pede para permanecer anônimo. “Até o meu irmão ser encontrado nem sabíamos o sexo", continua Miguel, que há anos faz parte do conselho de administração das Abuelas e que participou pessoalmente da investigação. “Ele começou a ter as primeiras dúvidas depois de ter sabido por uma mulher que não era filho biológico daqueles que pensava serem seus pais.
A princípio tentou obter informações mais precisas daquele que se dizia ‘pai’, mas a reação do homem praticamente teve o efeito de empurrá-lo a se submeter a um teste de DNA". Após mais um período de compreensíveis incertezas e medos, contando com as Abuelas, F. Santucho realizou o teste e assim que o resultado foi conhecido a sua segunda vida começou. Ou melhor, a recuperação daquilo que lhe fora violentamente negado quando nasceu: identidade e afetos sinceros.
Uma recuperação que passa também por um importante projeto realizado pelas Avós da da Praça de Maio (financiado com dinheiro da igreja valdense destinado a projetos internacionais), que recebe o nome de Arquivo biográfico familiar. Criado em 1998 pelas Abuelas, o Arquivo tem como objetivo reconstruir a história de vida dos desaparecidos cujos filhos nascidos em cativeiro ou sequestrados junto com seus pais, foram roubados. “Graças ao Arquivo meu irmão pôde conhecer a história de sua mãe e da sua família, acompanhar passo a passo o que a vovó fez para encontrá-lo, até 2012, quando morreu sem ter tido a oportunidade de conhecê-lo. F. leu as nossas entrevistas, ouviu as nossas palavras gravadas, pôde saber que nunca deixamos de procurá-lo, de amá-lo, de querer o libertar. Nunca desistimos, mas – ressalta Miguel – quero dizer que essa não é só apenas uma “vitória” da família Santucho. Estamos falando de um crime contra a humanidade, a busca por netos roubados é uma luta coletiva e o reencontro é uma vitória social que tem um profundo significado político".
Por isso é importante a rede de relações internacionais que as Abuelas estão construindo (na Itália é muito forte o vínculo com a 24Marzo, uma organização sem fins lucrativos de referência para os muitos ex-exilados argentinos que vivem no país e está empenhada, entre outras coisas, na busca aqui entre nós de filhos tirados dos desaparecidos). “É necessário o apoio de muitos para que as Abuelas possam tornar-se totalmente independentes economicamente do governo de Buenos Aires. Porque os governos mudam e nem todos veem de bons olhos a nossa organização”, conclui Miguel, lembrando que falta pouco mais de um mês para as eleições.
O diário da sua mãe também está no Arquivo? - pergunto antes de me despedir. "Não, está comigo."
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Argentina. O homem nascido duas vezes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU