24 Julho 2024
Dois especialistas que buscam combater a desnutrição investigam o panorama que condena milhares de crianças, principalmente de comunidades indígenas, à pobreza.
A reportagem é de Angélica Galão, publicada por El País, 21-07-2024.
Nos territórios mais remotos da Guatemala, nas suas zonas rurais de difícil acesso, as pequenas lojas que fornecem alimentos à população estão repletas de refrigerantes açucarados e sacos de cores vibrantes, com personagens famosos da televisão, cheios de batatas fritas desprovidas de nutrientes. Comprar alimentos frescos é muito caro para a população média e com os poucos quetzales que têm, preferem consumir algo aparentemente mais atraente e aspiracional do que um prato de vegetais.
O conhecimento que antes permitia a essas pessoas cultivar milho e feijão, cereais e frutas vem desaparecendo desde a Colônia, a ponto de poucos saberem o que significa ser autossuficiente a partir da terra. A baixa qualidade da água e a dificuldade de ter condições saudáveis para cozinhar ou de dar banhos regulares aos mais pequenos são fatores que se somam a este quadro complexo que faz da Guatemala hoje o país com a sexta maior prevalência de desnutrição crônica no mundo e o primeiro na região.
“Uma estatística nacional de 2014 diz que na Guatemala 1 a cada 2 crianças tem desnutrição crônica”, alerta José Silva, diretor do programa Guatemaltecos pela Nutrição, que explica: “Isto significa que 1 em cada 2 crianças não tem macronutrientes adequados para que a nutrição seja adequada. Seu cérebro termina de se formar. O impacto disso na vida da criança é que ela não terá as ferramentas para se desenvolver. Serão crianças sujeitas à pobreza”.
Nas notícias, a desnutrição aguda, que se manifesta em sintomas mais alarmantes, como a evidência dos ossos das crianças e das suas barrigas infladas, atrai mais manchetes porque é responsável pela morte de dezenas de crianças todos os anos. A desnutrição crônica é um fenômeno mais silencioso, mas não menos prejudicial.
“Se compararmos duas crianças de 4 anos, sendo que uma está bem nutrida e a outra mal, é fácil perceber que essas duas crianças nunca terão o mesmo futuro. Aqueles que estão desnutridos não estudarão na escola nem escaparão da pobreza. Os cientistas dizem que aos 2 anos de idade, 80% do nosso cérebro já está desenvolvido, então a deficiência de nutrientes e vitaminas em tenra idade é uma sentença para o resto da vida. A nutrição é a base de tudo. “Os programas educativos não terão efeito se as crianças não forem melhor nutridas”, afirma a residente alemã Lilli Ebner-Stoll, que, face aos números críticos de desnutrição, criou o Nutrilisto, um suplemento de manteiga, com as comunidades locais que são fortificadas com amendoins, vendido hoje nos lugares mais remotos do país.
Mas como é que um país que está longe de ser um deserto, um país que, apesar de alguns dos ataques das alterações climáticas, goza de vegetação e montanhas, atingiu estes níveis de desnutrição crônica? José Silva, que há anos trabalha no território para combater este flagelo, tenta analisar o fenômeno. Ele afirma:
“Somos um país complexo e tem havido muitos desafios para implementar as centenas de programas que, no papel, quiseram combater desnutrição crônica. As comunidades vivem em territórios de difícil acesso, falam a sua própria língua, há uma complexidade na oferta de infraestrutura, há um abandono histórico do Estado, há uma alta prevalência de gravidez em meninas e adolescentes que não sabem como se nutrir e agora têm a responsabilidade de nutrir outro ser humano”.
Outro fator é que as áreas rurais, por exemplo na área cafeeira onde funciona o programa Guatemaltecos pela Nutrição, são locais onde não há mais trabalhadores para as lavouras. “Os jovens não querem mais trabalhar a terra. Como esta parte do país faz fronteira com o México, todos os jovens querem emigrar. Os homens que têm condições de trabalhar vão embora e mandam remessas”, explica Silva, que garante que com esse dinheiro que entra, em vez de investir na alimentação bem, as famílias querem ter celular e redes sociais. “A produção agrícola foi afetada por um novo modelo social, estamos ensinando-os a plantar, quando no passado isso foi aprendido lá”.
Lilli Ebner-Stoll, do Nutrilisto, concorda que o problema vai além da pobreza:
“No meio rural, como a infraestrutura não é boa, não há onde armazenar produtos frescos, não há frutas nem legumes, então só há produtos enlatados. Muito conhecimento foi perdido com a migração interna e essa perda de cultura se aliou à indústria de fast food, tão atrativa, tão aspiracional, que quando você tem a opção de investir 10 quetzales em uma cesta de frutas ou em um refrigerante, muitos escolhem refrigerante porque lhes dá a sensação de que lhes dá energia”.
O problema da desnutrição crônica, que na Guatemala atinge 46% da população e sobe para 60% nas áreas onde há maior prevalência de comunidades indígenas, parece transbordar de dados e diagnósticos, mas exige urgentemente a implementação de ações que pode marcar uma verdadeira mudança na vida de milhares de crianças condenadas pela sua má nutrição.
“Com a pesquisa realizada pelo programa Guatemaltecos pela Nutrição, percebemos que a desnutrição não é aleatória, mas responde a um modelo de 19 fatores críticos que classificamos em cinco pontos. Se não houver atenção primária à saúde, se não houver ações de educação nutricional, se não houver melhorias no saneamento ambiental e na qualidade da água, se não houver produção, disponibilidade, aproveitamento biológico dos alimentos e se o recurso monetário que chega não for usados de forma adequada, então há desnutrição”, explica José Silva, que assegura que os modelos de bem-estar têm sido inúteis e, pelo contrário, perpetuaram modelos problemáticos onde as famílias preferem manter a desnutrição dos seus filhos para continuarem a receber bônus e ajudas.
Quando Lilli Ebner-Stoll chegou à Guatemala, começou a investigar que soluções globais poderiam ser aplicadas localmente para ter um impacto real na curva de desnutrição e se deparou com o projeto Maniplus do antropólogo Ted Fisher:
“Ele trouxe o conceito de manteiga de amendoins fortificados, que têm sido utilizados há décadas em situações de crise na Síria, no Afeganistão e em Gaza para ajudar crianças e adultos. A manteiga de amendoim tem vários benefícios. Para que seu corpo seja capaz de absorver bem as vitaminas, você precisa de uma forma de gordura para melhorar a biodisponibilidade. Tomar um comprimido não é a mesma coisa que incorporar as vitaminas em um veículo como a manteiga. Além disso, é uma boa fonte de proteína e tem sabor forte, o que ajuda a mascarar o sabor do ferro e do zinco para que seja agradável ao paladar. Por fim, das nozes, o amendoim é o mais barato e tem vida longa”.
Apesar das vantagens do suplemento, este não pôde continuar a ser distribuído na Guatemala por falta de financiamento. Foi então que esta alemã teve a ideia de transformá-lo num produto de consumo, que a um custo baixíssimo (3 dólares, ou seja, 25 quetzales pela embalagem durante uma semana) permitiria às famílias consumi-lo sem depender de alguém para fornecê-lo. Foi assim que nasceu o Nutrilisto.
“Precisávamos que fosse um produto acessível, tínhamos que pensar em embalá-lo, torná-lo bonito, apetitoso, brincar com os elementos desse desejo. Criamos tudo com as famílias: o sabor, os materiais. Desde o início escolhemos embalagens desenhadas com mães e avós que não leem, porque a barreira da alfabetização é muito alta. As realidades são muito diferentes”, explica Ebner-Stoll, que sabe que a sua aposta não é uma solução estrutural, mas pelo menos permite que as crianças tenham tempo para se alimentarem melhor enquanto são feitas mudanças mais ambiciosas em toda a Guatemala.
Por sua vez, os acampamentos Guatemaltecos pela Nutrição que pretendem estar em diferentes territórios durante três anos já prestaram 12 mil serviços que vão desde consultas médicas, laboratórios, oficinas para promotores educativos, até diplomas em produção de alimentos. “Num ano registramos 800 crianças menores de dois anos e do total de crianças registadas conseguimos recuperar 80%”, conclui José Silva, consciente de que o que for feito terá de continuar a ser replicado pela comunidade e apoiado pelo Estado.