24 Julho 2024
"Os 'dias perfeitos' são feitos de um cotidiano radical, de experiência com as contradições do presente absoluto, da percepção da beleza ao nosso redor, desapegados de si mesmos, livres para entender os movimentos desta vida finita, mas em insolúvel tensão com a eternidade fundada num vistoso e produtivo vazio", escreve Ricardo Evandro Santos Martins, professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Pará (UFPA), em artigo publicado por A Terra é Redonda, 19-07-2024.
Hirayama limpa os banheiros públicos da região de Shibuya, na grande Tóquio. Dorme no andar de cima de uma edificação muito simples de 3 ou 4 cômodos, um pouco distante do centro da cidade. No seu quarto há muitos livros, fitas cassetes e um simples colchão onde se deita com um simples cobertor.
Ao lado deste quarto, cultiva mudas de árvores, pequenas plantas regadas todos os dias por ele. Há também um armário com caixas de metal. Nelas guarda fotografias em preto e branco, feitas pela sua máquina analógica Olympus. No andar de baixo, tem uma pia, já perto da porta de saída, mesmo lugar em que escova seus dentes. Antes de sair para trabalhar, pega de uma estante as suas chaves, a máquina fotográfica e lá deixa seu relógio de pulso.
Antes de entrar em seu carro de cor azul, Hirayama compra uma lata de café de uma máquina refrigerada de bebidas. Ao entrar no veículo, insere no seu toca-fitas a cassete da banda britânica The Animals. Iluminado pelo famoso sol nascente japonês, escutamos com Hirayama a música House of the rising sun. A canção é um sucesso dos anos 1960. A letra fala algo sobre um bordel em Nova Orleans, onde tem sido “a ruína de muitos garotos pobres”, confessando o cantor ser também um destes garotos arruinados.
Hirayama é muito dedicado no seu dever de limpar os banheiros em Shibuya. Leva os produtos de limpeza no seu carro, tem seu próprio material de trabalho. Chega a usar um pequeno espelho para saber se há sujeira por debaixo da pia. Realiza sua tarefa repetidamente em cada um daqueles banheiros, cuja arquitetura muda a cada setor da cidade. Banheiros futuristas, metálicos, banheiros de vidro, mas que ficam opacos quando se aciona um dispositivo, e tem até um banheiro de estilo ecológico, naturalista, amadeirado.
Ao redor de um desses banheiros, Hirayama vê um jovem japonês de paletó que dormiu na rua. O rapaz talvez tenha bebido demais na noite anterior ou só não conseguiu voltar para casa, depois de um dia de trabalho em algum escritório do mercado financeiro, esgotado pelo capitalismo japonês tardio. Ou as duas coisas. E em contraste com ele, Hirayama está desperto. Foi dormir cedo, acordou cedo. Trabalha muito também. Mas leva uma vida com a simplicidade de um servente de banheiros públicos.
Em outro desses banheiros, acaba por encontrar uma criança chorando, sentada no vaso sanitário. Pega-a pela mão e procura seu responsável. Logo aparece uma mãe com um bebê no carrinho. Toma a criança da mão de Hirayama e imediatamente, enquanto dá bronca em seu filho, limpa sua mãozinha com álcool. A mesma mão que segurava a de Hirayama.
O cotidiano de Hirayama é quase sempre monótono. Exceto por alguns acontecimentos ligeiramente estressantes, na maior parte do tempo ele permanece calado ou responde com um balançar de cabeça, ou por uma expressão com a voz, por um mero gesto.
Ao longo do dia, Hirayama interage com Takashi, seu subalterno. Muito jovem, preguiçoso e infantil, quer impressionar uma moça blasé de cabelos descoloridos, de nome Aya. Takashi chega a pedir dinheiro ao seu silencioso chefe para poder encontra-la, pois, afinal, “Não dá pra se apaixonar sem dinheiro”. Após pedir carona a Hirayama, Takashi e Aya pedem para escutar um dos cassetes no carro. Aya interage com nenhum dos dois, parece ter mais se interessado pela música de Patti Smith, Redondo beach, sobre uma triste garota, que teria sido vítima de um “doce suicídio”.
Até a primeira metade do filme nada é revelado acerca do passado de Hirayama. Não se sabe nada de sua juventude, se tem família, do porquê vive sozinho e em silêncio a maior parte do tempo, se ama alguém ou se convive com alguém a quem se poderia chamar de amigo. Mas conhecemos estas pessoas por quem cruza durante a semana, em sua rotina cotidiana de ir ao trabalho, depois à sauna, para tomar banho, e depois ir comer numa espécie de estação de metrô.
Dentre essas pessoas com quem malmente convive, para além de seu subalterno Takashi e de Aya, Hirayama cruza algumas vezes com um idoso em situação de rua, em aparente estado de delírio. Ele fica dançado e falando sozinho perto de um dos banheiros, e fica perambulando a cidade, carregando galhos secos nas costas. Hirayama o cumprimenta com um aceno de cabeça. Mais nada. E, nos intervalos para o lanche, ainda na hora do trabalho, mais de uma vez, Hirayama vai a uma espécie de praça budista, e se senta ao lado de uma moça de roupas claras, segurando um sanduiche nas mãos, olhando-o de modo assustado e melancólico. Sozinha, como ele.
Em uma dessas vezes que foi a essa praça, Hirayama se encontra com um monge budista e pede a ele, com um simples gesto, permissão para retirar uma muda, crescendo perto de uma grande árvore. O monge consente também com um gesto. Ambos em silêncio, gentileza e gratidão. Mesmo modo de comunicação que Hirayama tem com um desconhecido, ao encontrar um pedaço de papel escondido em um dos banheiros, com um “jogo da velha” desenhado nele. Hirayama continua a partida e devolve o pedaço de papel ao esconderijo a cada vez que volta ao banheiro para limpá-lo — até que o jogo acaba e recebe desse anônimo um “obrigado!”
E entre o trabalho dedicado, interesse por pequenas plantas, tanta educação com as pessoas e até generosidade gratuita para com seu desleixado subalterno Takashi e sua pretensa namorada Aya, Hirayama também encontra tempo para fotografar. Naquela mesma praça budista, ele tira fotos de uma árvore com sua Olympus analógica. As fotos são em preto e branco — da mesma cor das imagens que sonha enquanto dorme. Essas fotos depois são reveladas. Ele descarta umas e guarda outras naquelas caixas de metal, etiquetadas por ano, uma a uma.
É somente na segunda metade do filme que se começa a ter melhores pistas sobre o passado de Hirayama. É a partir do surgimento da filha de sua irmã que se poderia até especular um pouco mais sobre o passado dele. Niko surge inesperadamente na casa de seu tio. Ela é adolescente e parece ter se desentendido com sua própria mãe, procurando asilo, assim, na casa de Hirayama.
Niko pede para acompanha-lo no seu cotidiano. Hirayama hesita, mas aceita o pedido de sua sobrinha. Os dois chegam a tirar fotos juntos naquela praça budista, vão à sauna, e, depois, passeiam juntos pela cidade. Neste ponto do filme, momento em que atravessam de bicicleta uma ponte, Niko comenta sobre como sua mãe e seu tio são de mundos muito diferentes.
Hirayama dá lições que mais parecem próprias da filosofia oriental ou mesmo da tradição das práticas religiosas budistas: “O mundo é formado por muitos mundos. Alguns estão conectados, outros não”. E ao responder ao convite de Niko para que acompanhem de bicicleta até o desaguar do rio sobre o qual atravessavam, seu tio complementa suas lições filosóficas, dizendo que poderiam fazer isso juntos “Da próxima vez…”. Niko replica: “Quando é ‘da próxima vez’?”. E ele responde, como um sábio budista: “Da próxima vez é da próxima vez. Agora é agora”.
Quando chegam à casa de Hirayama, a mãe de Niko estava no aguardo dos dois, com seu carro de luxo e motorista. Ela pede à filha para pegar suas coisas e ir embora. Hirayama cumprimenta sua irmã e recebe dela uma sacola com seus chocolates preferidos. Ela pergunta a ele se está mesmo limpando banheiros pela cidade. Ele responde afirmativamente com um balançar de cabeça. Então questiona Hirayama se ele não pretende visitar o pai deles dois. Diz que está no asilo para idosos e que já não reconhece mais ninguém. Também comenta sobre como o pai deles não é mais a mesma pessoa do passado. Hirayama acena negativamente e abaixa a cabeça. Niko e sua mãe vão embora. Hirayama cai no choro.
Com essas pistas talvez seja possível supor que Hirayama escolheu essa forma de vida provavelmente para se afastar de seu pai. Provavelmente deve ser de família rica, deve ter tido acesso à cultura ocidental, fina literatura, música alternativa ocidental etc. Hirayama é um leitor voraz. Ao longo do filme, esteve com a obra de William Faulkner, Palmeiras selvagens (1939), e de Koda Aya, Árvores (1992). Escuta deitado em seu quarto Perfect days, de Lou Reed, ao redor de muitos cassetes da cena mais underground do rock americano e britânico dos anos 1960, 1970 e 1980.
Além de seu pai e irmã, Hirayama parece ter se isolado do mundo digital, da internet, ao ponto de achar que o aplicativo de música Spotify era um lugar físico. A verdade é que Hirayama parece ter se isolado ou ao menos tentado se isolar de seu passado, das modas tecnológicas. Vive seus dias como cultiva suas plantinhas. Hirayama cultiva seus dias em nome de dias perfeitos. Mesma perfeição e paciência, com as quais faz seu trabalho, mesma perfeição e paciência, com as quais lida com as pessoas ao seu redor.
Hirayama vive com a beleza das árvores, das músicas de sua juventude, com a beleza das histórias de seus livros. Observa o que está ao seu redor como um poeta de haiku (haikai). Poupa suas palavras diante da beleza e da perfeição do cotidiano, do seu presente absoluto e eterno, ainda que o passado e os seus desejos não cessem de o colocar sob tensão. A tensão entre o infinito eterno e o finito efêmero do cotidiano presente.
Talvez Hirayama tenha sido, no passado, como a jovem suicida de cabelos descoloridos ou como o tolo Takashi. Ou talvez Hirayama possa ter sido como sua sobrinha Niko, em conflito com os pais, tentando fugir e procurar por asilo, por dias melhores, menos imperfeitos. Talvez Hirayama tenha fugido da corrida para o sucesso capitalista, tendo renunciado à pressão insuportável sob a qual se submete aquele jovem executivo. E por isso, quem sabe, Hirayama olha intrigado para o velho em situação de rua, em aparente delírio, pois sabe que ele mesmo também está no limiar da desconexão não só da forma de vida do capitalismo, mas também do que entendemos por realidade compartilhada mais comum.
Não se sabe ao certo os motivos das escolhas de vida feitas pelo personagem Hirayama, em Perfect Days (2023). Será que Hirayama foi, na sua juventude, um “garoto arruinado”, como na letra de House of the rising sun, do The Animals — cantada por duas vezes no filme —, mas agora em busca de algum tipo de redenção e paz? Por que ele se afastou da família e da temporalidade do capitalismo brutal do Japão do pós-Guerra? Como sua sobrinha, ele foge de um passado traumático causado por seu pai? Afinal, o que faz Hirayama ser tão dedicado em seus “dias perfeitos”?
Levanto a hipótese, aqui, de que Hirayama leva essa forma de vida sob alguns conceitos teóricos e valores práticos semelhantes às práticas budistas da tradição zen.
Para explicá-los de modo um pouco mais aprofundado, vou falar de algumas semelhanças que vislumbro entre o modo como Hirayama leva sua vida e alguns conceitos fundamentais da famosa filosofia japonesa da Escola de Kyoto, especificamente representada por Kitaro Nishida (1870-1945):
(i) a aceitação da impermanência das coisas neste mundo;
(ii) da contradição insolúvel entre diversos mundos possíveis;
(iii) do desafio de se estar num eterno presente, sob a cotidianidade radical no lugar originário (bashô) de experiências mais autênticas com o vazio “autodeterminante”, produtivo;
(iv) e da experiência imediata, desapegada, dessubjetivada, “fora de si” (mu-ga), como diz Nishida, com a beleza.
Trago na parte final deste ensaio um pouco mais da filosofia de Nishida para, então, tentar ler a última parte deste mais recente filme do diretor alemão Wim Wenders. Refiro-me especificamente à parte de Perfect Days em que protagonista Hirayama procura pela personagem Mama.
Sem muitas explicações, e numa demonstração, pela primeira vez, do que parece ser um desejo erótico ou amoroso por alguma pessoa na história da película, Hirayama vai até ao restaurante a qual frequenta aos finais de semana, e se depara com Mama, a dona e cozinheira do lugar, sendo abordada por um homem. Ele adentra ao estabelecimento e vê Mama abraçando este homem misterioso. Desolado, Hirayama parte e vai comprar cerveja e cigarros. Senta-se à beiro do rio e, por coincidência, encontra esse mesmo homem desconhecido até então. Ele pede um cigarro e bebe cerveja com Hirayama.
O homem conta a ele que é ex-marido de Mama. Eles estão divorciados há anos, mas a procurou porque descobriu que está com câncer em estágio de metástase. Sua visita ao restaurante foi apenas para se despedir. E com o desenrolar da conversa, o ex-marido de Mama pergunta enigmaticamente ao Hirayama: “Sombras, será que ficam mais obscuras quando se sobrepõem?”. Então os dois caminham até à luz de um poste próximo e brincam com suas sombras projetadas sobre o chão.
Essa parte final do filme de Win Wenders parece não fazer muito sentido com o restante do filme. Mas se talvez lembrarmos de alguns conceitos da filosofia de Nishida podemos, quem sabe, levantar a tese de que a parte final de Perfect Days poderia ser um desfecho reflexivo possível sobre as contradições próprias à vida humana sobre a busca pela experiência desapegada com a beleza e sobre a procura pela liberdade plena.
Em Uma explicação sobre a beleza (1900), Nishida parte da “terceira Crítica” de Immanuel Kant para falar sobre como é essencial ao caminho da experiência da percepção da beleza o prazer desinteressado enquanto desapego do ego. Sim, Nishida está recepcionando a filosofia kantiana ao seu modo, comparando-a à prática religiosa zen-budista de se “sair de si”, do êxtase: o conceito de mu-ga. Para o filósofo de Kyoto, a vivência desapegada de si, dessubjetivada, é uma vivência com a “verdade intuitiva”. Distinta da “verdade lógica”, “esta verdade intuitiva se alcança quando nos distanciamos do apego próprio ao ego e nos fazemos um com a realidade” (Nishida, 2006a, p. 15).
Parece, então, que a vivência experienciada pelo personagem de Hirayama segue mesmo esse caminho da “verdade intuitiva”: suas palavras, suas opiniões sobre a natureza e sobre as pessoas a sua volta não importam. São o seu olhar sobre a natureza, sua atenção às músicas, sua “verdade intuitiva” impressa e desvelada por meio da tecnologia de suas máquinas analógicas, as práticas mais importantes para ele no seu cotidiano. E Hirayama está no caminho zen-budista da percepção da beleza na unidade de si com a realidade, ou seja, por um desapego absoluto de si (mu-ga) e vivido em um presente absoluto — “Da próxima vez é da próxima vez. Agora é agora”.
Contudo, mesmo assim, o conceito de mu-ga é insuficiente para se entender o encontro de Hirayama com o ex-marido de Mama, consciente de sua própria finitude, e é insuficiente para se entender a forma de vida isolada, silenciosa, mas generosa com aqueles que cruzam seu caminho em busca da beleza de dias perfeitos. Ainda que sejam da mesma natureza, a vivência do mu-ga não tem a profundidade da vivência religiosa. Trata-se de um desdobramento da tensão entre o presente absoluto e a eternidade, mais ainda lhe falta a grandeza própria àquela eternidade.
A experiência com a beleza ainda é por demais momentânea. Por isto, é necessário que invoquemos um texto mais complexo do filósofo de Kyoto, um texto que lide melhor com as contradições de uma experiência desapegada do ego, a caminho da experiência com o presente absoluto. Com o seu ensaio tardio, chamado de A lógica do lugar do nada e a visão de mundo religiosa (1945), Nishida dá continuidade a sua antiga investigação sobre a “experiência pura”, mas vai aprofundar isso, agora, para desenvolver o conceito da lógica do lugar (basho).
Como explica Marcos Lutz Müller, “no sulco da experiência da meditação e da assimilação da tradição do pensamento budista do vazio como nada, [Nishida] vai aprofundar a experiência pura e imediata do sistema da consciência em direção ao conceito de ‘lugar do Nada absoluto’” (Müller, 2013, p. 23). E tal ideia de lugar (basho), em Nishida, ganha centralidade porque ele busca formular a noção de que haveria uma dimensão, na qual nossas experiências imediatas ocorreriam de modo radical e no sentido mesmo daquela dessubjetvação, do êxtase de si (mu-ga) sobre o qual falava em texto anterior, só que, agora, numa elaboração mais direta com a concepção budista de vazio, de nada autodeterminante, superando a noção ocidental do nada enquanto mero “não-ser”, como mera ontologia negativa.
Nishida vai muito mais além no desenvolvimento de seu pensamento filosófico de juventude, aliando-se às práticas meditativas budistas para elaborar de modo melhor a ideia de perda de si, do ego, no caminho do encontro com o Um por meio da consciência do nada enquanto fundamento sem-fundamento. Como diz ainda Müller, o lugar (basho) é este receptáculo onde se permite o surgimento de “todas as coisas no seu modo de ser irredutivelmente singular e, simultaneamente, o acesso ao si-próprio verdadeiro, que se defronta com a sua própria nadidade numa operação originária do esvaziamento e do esquecimento de si” (Müller, 2013, p. 24).
Isto talvez possa nos ajudar a entender, por algumas semelhanças, a forma de vida do personagem de Hirayama em Perfect Days, sua busca pela beleza, seu isolamento, sua liberdade, gentileza e até a entender seu diálogo metafórico com a morte, representado no filme pelo encontro com o ex-marido de Mama.
Nishida precisou elaborar uma lógica própria, uma que dialoga com a dialética hegeliana, mas que, com e para além de Hegel e de toda tradição metafísica ocidental, não entende o nada, o vazio absoluto, enquanto mera instância negativa do ser e das essências dos entes. Inspirado pelas práticas religiosas zen-budistas, Nishida entende o nada como uma dimensão fundamental, e, paradoxalmente, sem fundamento. O nada, então, é mais do que um não-ser porque pode determinar o mundo material e seus desdobramentos em mundo da vida e mundo histórico. Diferentemente da metafísica do Ocidente, Nishida entende o vazio como instância criadora, capaz até de superar as contradições binárias como ser e nada, temporal e eterno, e, também, vida e morte.
Tal superação oferece uma abertura à compreensão do agir livre cotidiano no agora, desde a consciência da própria finitude. O sujeito se vê parte de uma contradição produtiva entre o ser o nada, entre o agora e o eterno, entre o cotidiano e o absoluto. Segundo diz Nishida: “Na filosofia que proponho, o cotidiano sempre é visto em conexão com o absoluto, e por isso mesmo nunca negado, senão, pelo contrário, afirmado ao extremo” (Nishida, 2006b, p. 104).
O sentido de cotidiano para Nishida, desse modo, “não deve ser confundido com o ‘senso comum’. O sentido comum não é outra coisa que um certo sistema social de conhecimento engendrado ao longo da história.” (Nishida, 2006b, p. 105). O que Nishida quer dizer com “cotidiano” é, em verdade, a experiência com o “presente absoluto”, possibilitada pela tomada de consciência do ego sobre sua contradição com uma unidade dessubjetivante, desapegada do próprio ego.
É nesse sentido que Nishida vai falar de uma vontade livre, distinta da concepção abstrata da vontade livre kantiana: “A autêntica liberdade tem lugar no ponto de inflexão no que o ego, através de sua autonegação, autoafirma-se como a autonegação do Um. Neste ponto, o ego toca o começo e o fim do mundo. Começo e fim que são também alfa e ômega do próprio ego. Este é o ponto, dito de outro modo, em que o nosso ego adquire consciência do presente absoluto” (Nishida, 2006b, p. 105).
De modo mais simples, é por conta da consciência da própria morte e da experiência cotidiana desapegada de si, do próprio ego, é que podemos ser livres. Assim, voltando ao filme de Wim Wenders, não seria esta vida consciente da própria morte, desapegada do próprio eu, vivida em uma cotidianidade radical, num presente absoluto, uma vida semelhante àquela vivida por Hirayama? Uma vida que experiencia o cotidiano por meio do cultivo, não só de pequenas plantas, mas também das pequenas gentilezas ao longo do dia, com conhecidos e desconhecidos?
O encontro com o ex-marido de Mama é a reafirmação da autonegação do Um, do todo, do Absoluto, o qual se apresenta a nós, entes finitos, que vivenciam suas fagulhas, dialeticamente, em forma de nada, de vazio. O encontro com a lembrança da morte (memento mori) é a consciência de que deixaremos de ser um dia para retornarmos a um nada que, paradoxalmente, é um fundamento sem fundamento, um vazio afirmativo, dos nossos mundos material, histórico e vital. Sobre isto, como diz Marcos Lutz Müller, no seu artigo sobre Nishida: “É do conhecimento do nosso nada, da nossa ausência de fundamento, que recebemos nosso ser” (Müller, 2009, p. 160).
Hirayama e o ex-marido de Mama, como duas crianças, brincam com suas sombras, ou melhor, com a ausência de luz, interposta pela opacidade de seus corpos existentes, sobre o chão. Os dois respondem juntos à pergunta sobre se suas sombras se adicionam. E ambos encontram uma resposta: não, as sombras não se somam; a sombra não se aprofunda. Ela resta em sua negatividade perante à luz, garantindo a complementariedade dos contrários, a qual constitui a lógica dos nossos mundos.
Cada mundo com sua temporalidade própria: uma cronológica (mundo material); uma escatológica (mundo histórico); e outra em forma de brincadeira de criança (mundo da vida) — em alusão, quem sabe, ao fragmento de um mestre das contradições, mas, agora, do Ocidente, Heráclito, quando disse que o tempo (aiôn) é uma criança brincando (Fragmento LII).
Com o seu Perfect Days, produzido num mundo pós-pandemia do Covid-19, Wim Wenders talvez esteja nos fazendo um chamado ético para uma forma de vida de árduo cultivo do nosso cotidiano em meio à beleza. Um convite, em forma de expressão cinematográfica para que vivenciemos a beleza do presente absoluto da natureza e do convívio com os outros.
Wim Wenders está nos convidando à lembrança de que há um fim a nossa espera, restando-nos a tarefa de fazer de modo bem-feito tudo aquilo a que nos dedicamos fazer. E sempre com aquela gentileza, como a de Hirayama, de quem sabe sobre como “dias perfeitos” não são feitos de metas perfeitamente cumpridas ou de encontros com pessoas sem confronto e contradições.
Os “dias perfeitos” são feitos de um cotidiano radical, de experiência com as contradições do presente absoluto, da percepção da beleza ao nosso redor, desapegados de si mesmos, livres para entender os movimentos desta vida finita, mas em insolúvel tensão com a eternidade fundada num vistoso e produtivo vazio.
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Dias perfeitos — experiência desapegada. Artigo de Ricardo Evandro Santos Martins - Instituto Humanitas Unisinos - IHU