18 Março 2024
"Por que são perfeitos os dias? Porque Hirayama, o personagem que Wim Wenders criou para Dias perfeitos, acorda quase sempre bem disposto, e olha para o céu sorrindo? Em parte, sim. Só que mais do que observar o tempo, esse olhar está carregado de uma conexão com um tocante estado de espírito transcendente. Incrível como essa cena, que vai se repetir, aliás como tantas outras, é fundamental para expressar a que veio o filme", escreve Solange Peirão, historiadora e diretora da Solar Pesquisas de História, em artigo publicado por A terra é Redonda, 09-03-2024.
Por que são perfeitos os dias? Porque Hirayama, o personagem que Wim Wenders criou para Dias perfeitos, acorda quase sempre bem disposto, e olha para o céu sorrindo? Em parte, sim. Só que mais do que observar o tempo, esse olhar está carregado de uma conexão com um tocante estado de espírito transcendente. Incrível como essa cena, que vai se repetir, aliás como tantas outras, é fundamental para expressar a que veio o filme.
E nessa direção, pouco importa no que consiste o cotidiano de Hirayama. Muito se tem falado, entre os comentaristas, sobre o trabalho desse homem, uma pessoa madura que limpa, com esmero, os banheiros públicos de Tóquio. É claro que privilegiar uma atividade banal, menor, desprezada socialmente, ajuda a evidenciar o contraponto entre a rotina diária e a preservação de um estado de quietação e sossego, que o personagem carrega quase sempre.
Os dias se sucedem. A sequência das atividades de Hirayama se repete tal e qual. Nada de utilização de algum recurso cinematográfico que possa sugerir a repetição; elas são todas desenhadas iguaizinhas, e com o mesmo tempo de duração. Cada um de nós, certamente, dá a ela um sentido diferente. Para mim, pessoalmente, serviu, antes de tudo, para saborear criticamente o mundinho desse homem.
Ele acorda, dobra os tatames, empilha-os em um canto da ampla sala, as paredes forradas de livros e fitas cassete. Senta-se diante de uma pequena mesa com muitos vasinhos de plantas e as rega, com a delicadeza de quem cuida de amigos. É o ponto de partida para a observação da natureza, cheia de reverência e encantamento, durante a jornada de Hirayama, e por meio da qual a narrativa vai expor situações expressivas de sua vida.
Sai de casa, latinha na mão, como café-da-manhã. Parte então para o trabalho de limpeza, super esmerado, nos banheiros públicos de Tóquio. Chama atenção a arquitetura diversa, bonita, dos espaços, e a modernidade das louças. A limpeza acontece em meio ao entra e sai dos usuários, mostrando tipos humanos diferentes, em uma situação tão peculiar da vida. As cenas despertam, entre os espectadores, os primeiros sorrisos discretos.
A pausa para o almoço, um lanche breve em uma praça, solitária nos primeiros dias, aponta para vizinhos também solitários, um sem-teto e uma jovem, mas que se cumprimentam com o olhar. Depois, Hirayama saca de uma câmera fotográfica analógica, e mira a copa de uma árvore. Sempre repetirá a mesma tomada.
O fim do dia é marcado pelo banho coletivo em banheiros públicos, de um jeito que provoca admiração entre nós, ocidentais, mas complementado naquelas fantásticas banheiras com hidromassagem.
À noite, a refeição mais completa acontece em um restaurante simples, barulhento, em uma galeria de passagem, mas com proprietários acolhedores.
De volta à casa, Hirayama desenrola os tatames e lê, sob a luz de um abajur. De novo, para nós ocidentais, acostumados com cabeceiras abarrotadas de travesseiros, causa estranheza a impressão de desconforto. Como é possível ler assim? No entanto, compreende-se: fica mais fácil abandonar o livro no chão, ficar na posição propícia para olhar o céu, a árvore, lá fora, e entrar em estado de quase sonambulismo. Adormecer.
Quando a repetição das cenas começa a provocar certo desconforto, e a sensação de que, afinal, os dias podem ser mais enfadonhos do que perfeitos, Wim Wenders vai introduzindo pequenas novidades nesse cotidiano, que o torna particular. É curioso como essa intromissão é discreta e paulatina. E vai, pouco a pouco, cativando os espectadores para, de fato, concordar com ele e achar mesmo que são perfeitos os dias.
Primeiro, a ótima sacada da comunicação com um frequentador anônimo de um dos banheiros, que esconde o papel com um jogo da velha atrás da louça. Podemos supor algumas alternativas: ou o faxineiro encontra o papel e põe no lixo, ou topa, e entra na brincadeira. Que atitude se espera de nosso personagem?
Há ainda que se considerar a presença do jovem parceiro de trabalho, amalucado, que não entende o rigor de Hirayama. Mas o tom principal, nessas cenas, fica por conta da namorada do jovem, uma loirinha excêntrica da geração Z, que descobre as fitas cassete no carro bem equipado do chefe. Rende uma das bonitas cenas do filme, close no rosto da moça, ouvindo Patti Smith.
E nesse ponto, consideramos um dos aspectos marcantes dessa obra de Wim Wenders: a oposição entre formas diferentes de comunicação.
Na primeira parte domina o silêncio. Nosso personagem comunica-se essencialmente com o olhar, com gestos. Assim circula pela cidade, relaciona-se com os demais. Como não lembrar de M. Hulot, de Jacques Tati, nas suas investidas sobre Paris, nos anos 1950? É claro que a veia cômica do mestre Tati era forte, mas o que estava por vezes em jogo eram as novidades dos novos tempos: espaços sem divisórias (“c´est moderne, tout communique!”), portões eletrônicos nas garagens…Não causa impacto semelhante, a mocinha que descobre a fita cassete, ou a sobrinha de Hirayama que, divertidamente, opõe à câmera analógica do tio, o seu Iphone? E nesse caso, como se tratava também de uma forte expressão de afeto entre ambos, como é bela a constatação de que Niko guardou a velha câmera que ganhara de presente de Hirayama, na infância…
Essa relação de parentesco, inclusive, foi abordada de forma bastante estendida, e é com ela que culmina a fase de expressão verbal do personagem, envolvendo inclusive as relações conturbadas com a família, por meio de sua irmã, a mãe de Niko.
A passagem da fase não verbal para a fase verbal se dá lá pelos meados do filme, momento em que a mudança de rotina de Hirayama é marcada pelos fins de semana, pela substituição do tempo do trabalho pelo tempo do lazer. Este tempo inclui uma visita ao templo, à livraria, à loja onde compra e revela seus filmes, em preto e branco.
Nas fotografias analisadas, em casa, e rigorosamente acondicionadas, destaca-se a árvore sempre registrada na praça, à hora do almoço. O que Hirayama busca, comparando-as? A mudança das estações nela expressa, a passagem do tempo? O fato é que elas servem de mote para configurar as belas imagens-sombra, em preto e branco, que dançam em sua cabeça, plenas de histórias do cotidiano, plenas de memória, e que marcam seu estado de sonambulismo, antes de adormecer.
A primeira palavra, se não a que de tão expressiva aparece como primordial, acontece no bar de Mama, e é dirigida a essa japonesa cinquentona, que acolhe alguns “habitués” para jantar. Intui-se a ligação amorosa entre ela e Hirayama, não só porque é o primeiro diálogo, mas pelo clima e pela sinalização de outro frequentador enciumado. É com um antigo “affaire” de Mama que Hirayama vai contracenar no fim do filme, em uma bonita cena, na qual a amizade, a compaixão e o espírito pueril darão a tônica.
Ainda no bar de Mama, um momento de puro lirismo. Ela canta uma versão, em japonês, de “The house of the rising sun“, do The Animals, que, em inglês, abriu o filme. E ficamos por aqui com uma última observação. Hirayama, nas suas andanças por Tóquio, escolhe sempre uma de suas fitas cassete, para fundo musical. Sorte nossa, que saboreamos a trilha sonora que amarra o filme, enquanto as vistas deslumbrantes da Tóquio moderna passeiam diante de nós.
Vale lembrar que o futuro, como que a prometer novos rumos para o cotidiano do Sr. Hirayama, evoca nele um sorriso aberto, umedecido pelas lágrimas, enquanto dirige, na cena final. Desta vez, o rosto não está voltado para o céu, mas encara, olho no olho, a câmera, ou seja, todos nós. Ao som de qual música? Juro que pressenti, e acertei: “Feeling good”, de Nina Simone. Se é chavão, lugar-comum, pode ser. Mas caiu como uma luva.
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Dias perfeitos. Artigo de Solange Peirão - Instituto Humanitas Unisinos - IHU