16 Julho 2024
"Ao escutar o anúncio de que o Reino de Deus já está entre nós, na história humana, tendemos a dar uma risadinha de descrença, como fez Abraão, e depois Sara", escreve Pedro A. Ribeiro de Oliveira, sociólogo.
O livro de Gênesis (18, 10-15) narra que, ao visitar a tenda de Abraão e Sara, o Senhor lhes anuncia que dentro de um ano eles terão um filho. Abraão já tinha recebido essa notícia e, descrente, riu (Gn 17, 15-19). Agora é Sara quem ri, porque sabe que já tinha passado o tempo de fertilidade do casal. Tomo essa narrativa para motivar nossa reação diante da realidade atual, marcada pela confluência de três crises globais:
(i) a Terra entrando na era das catástrofes climáticas e ambientais;
(ii) o sistema mundial se desfazendo porque acabou a hegemonia que os EUA exerceram desde o final da II guerra mundial;
(iii) o novo fascismo quebrando os poucos laços de solidariedade entre ricos e pobres.
Embora independentes entre si, essas crises coincidem e se sobrepõem, provocando um desastre para a espécie humana e para a grande comunidade de vida da Terra.
Diante disso, ao escutar o anúncio de que o Reino de Deus já está entre nós, na história humana, tendemos a dar uma risadinha de descrença, como fez Abraão, e depois Sara... Mas vamos por partes.
Desde cerca de 20 mil anos, quando terminou o último período glacial, a Terra vem se aquecendo. Esse aquecimento acelerou-se no século 18 devido à industrialização baseada na energia fóssil. O desenvolvimento industrial e dos transportes no século passado fez soar o alarme do aquecimento global: quando ele chegar a 1,5°C acima da média de 1850-1900, vão-se multiplicar os eventos climáticos (ondas de calor, secas, enchentes, aquecimento dos oceanos, incêndios etc.) chamados de extremos, por causar muita morte. Até pouco tempo esse aquecimento poderia ter sido evitado se o mundo todo tivesse diminuído sua emissão de CO2. Isso não aconteceu, e agora não há mais retorno: tudo que se pode fazer é diminuir os danos que o aquecimento global provocará. O problema é que o mundo não está reduzindo o consumo de carvão, gasolina, querosene, gás e outros derivados do petróleo. A emissão de CO2 tem aumentado (só diminuiu o ritmo de seu aumento) e tudo indica que o teto de 1,5° C será ultrapassado em breve.
O impacto do aquecimento na vida humana é previsível: o que fazer, por exemplo, numa grande cidade atingida pelo calor extremo, se faltar energia elétrica? Como assegurar o alimento durante uma seca geral ou uma grande inundação? É de se prever ondas de convulsão social, especialmente nas cidades, porque não há meios de impedir uma multidão faminta de cometer saques e atos de violência. As enchentes de 2024 no Rio Grande do Sul representam uma amostra de eventos climáticos que serão cada vez mais frequentes e intensos. É preciso ter em conta que só não houve ali violência social devido à pronta intervenção do governo federal mobilizando recursos de todo o País.
Desde o fim da guerra fria (em 1991, com a dissolução da URSS), parecia delinear-se um arranjo mundial multipolar: as potências geopolíticas – EUA, União Europeia, Rússia, China e Índia – assumiriam posição de polos regionais, de modo a se equilibrarem em poder econômico, político e militar. Mas os EUA usaram a vitória de 1991 para reforçar sua hegemonia, acreditando que tinha a missão de impor seu modo de vida ao mundo todo. Essa hegemonia, porém, foi abalada pela crise financeira de 2008, que enfraqueceu os EUA e a União Europeia e abriu espaços para a China como potência concorrente. Nesse quadro delineia-se uma nova configuração da ordem mundial, onde ganha força o Sul global (países antes chamados de “terceiro mundo”) cuja representação se dá no bloco BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), que hoje já incorpora outros países.
Principal potência mundial, os EUA reagiram a essa perda de hegemonia reforçando seu poder militar. Isso levou a guerras regionais, destacando-se a guerra entre Rússia e OTAN na Ucrânia, e, indiretamente, o conflito armado entre Israel e o Hamas. Assim a 3ª guerra mundial em capítulos – como a qualificou Francisco – dá sinais de que tende a intensificar-se sem que haja iniciativas concretas de encaminhamentos para a Paz mundial: apelos de líderes mundiais como Francisco e Guterres, secretário-geral da ONU, não são levados a sério nem pelos governos envolvidos nesses conflitos, nem por seus apoiadores diretos.
Tudo se passa como se, pressionados pela crise financeira, os detentores do grande capital tenham dado mais um passo na acumulação da riqueza ao fazer dos juros elevados e da pilhagem de bens-comuns suas principais fontes de lucro. Minérios, terra, água, reservas de petróleo, conhecimentos, tudo se torna objeto de cobiça das empresas que buscam o lucro imediato. Ocupam territórios de povos originários, derrubam florestas, espalham venenos para apressar a produção do agronegócio, monopolizam medicamentos, pouco se importando com os direitos dos povos e da Terra. Pressionadas por fundos de investimento que exigem dividendos para remunerar o capital, essas empresas não levam em consideração os danos ecológicos e sociais provocados por sua atividade econômica. Esta é a “economia que mata”, como a qualifica o Papa Francisco (EG, n. 53).
Para blindar-se contra possíveis medidas que viessem a diminuir seus lucros, subvencionam a eleição de governantes e parlamentares que se encarregam de protegê-las retirando direitos dos mais fracos. Assim, temos o paradoxo: em vez de moderar sua ambição diante do atual contexto de guerras e de catástrofe ambiental, aumenta a voracidade do capital que busca acumular o maior lucro possível hoje, para ter reservas para quando a situação piorar.
Nesse contexto em que os clamores pela Paz são abafados pelos tambores da guerra que ecoam pelas redes sociais e pela mídia, gera-se o clima de insegurança e medo que hoje toma conta do mundo. Embora esse clima de insegurança seja consequência objetiva das mudanças climáticas e da instabilidade geopolítica e econômica, ele é percebido como se fosse o resultado da ação de alguma força ou entidade maligna que secretamente age contra o bem da humanidade.
Esse medo difuso, que logo deriva para o sentimento de ódio contra quem é apontado como fonte de ameaça, tem sido difundido pela mídia corporativa e pelas redes digitais: ali são exibidas cenas de violência contra pessoas desprotegidas, e insinua-se que as forças de segurança são impedidas de atuar por causa dos preceitos legais e dos Direitos Humanos. Diante da necessidade da própria segurança, essa narrativa da impotência da Democracia para combater a violência favorece o ataque às Políticas Sociais e apresenta a segurança privada e as milícias como solução. Este é o terreno propício ao fascismo como ideário político e cultural que trata todo adversário como inimigo a ser eliminado. Mas diferentemente do fascismo clássico, que provocou a 2ª Guerra Mundial, o atual fascismo adota o ideário liberal. Assim, promove o Estado mínimo no campo das Políticas Sociais e o Estado forte na repressão a qualquer oposição.
Enfim, o atual fascismo adota o patriarcado como única forma admissível de família. Trata-se aqui de um sistema de poder concentrado na figura do pai de família, que tem (i) a propriedade da terra e dos bens da família (patrimônio), (ii) o poder sobre a mulher e as filhas e (iii) o poder sobre as pessoas que emprega, poder este derivado da propriedade de pessoas escravizadas. Trata-se, portanto, de um sistema de poder que desconhece a igualdade de direitos entre as pessoas e naturaliza as desigualdades – econômica, racial, de gênero e outras.
Nesse contexto, as instituições da Democracia, bem como qualquer governo democrático, são alvos de ataques e cerceamento, especialmente quando defendem as populações mais vulneráveis (inclusive por questão de raça, gênero ou migrantes) e o meio ambiente, para protegê-los da pilhagem capitalista. Isso acontece também no Brasil.
Os agentes políticos inspirados no ideário fascista têm dado claros sinais de seu propósito de estabelecer aqui um regime que retome e radicalize o modelo bolsonarista, que não hesita em burlar as normas do Estado Democrático de Direito. Confiantes em sua força no Senado, na Câmara Federal e nos governos estaduais, esses agentes políticos atuam intensamente nas redes digitais, difundindo fake news que contribuem para o clima de medo e de desinformação ao mesmo tempo que defendem a violência policial e a formação de milícias. O apoio que recebem de muitas Igrejas evangélicas e de setores da Igreja católica, somado à conivência da mídia corporativa – que não contraria os interesses do setor financeiro ou rentista – assegura o poder desses políticos que se comportam como se não houvesse futuro e que tratam de ganhar o máximo possível no curto prazo. Aqui reside a afinidade entre o capitalismo de rapina e o oportunismo político, já mencionada.
Diante desse quadro, a reativação das forças democráticas responsáveis pela eleição de Lula deve ser vista como sinal de esperança, mas não se deve ignorar que ela ocorre a partir de setores de classes médias já politizados, tendo pouca irradiação nos setores empobrecidos das periferias sociais. A maioria da população brasileira mostra não ter interesse pelas disputas políticas e parece não entender seu significado. Vítima do intenso processo de despolitização neoliberal dos anos 1990, essa enorme parcela da população se deixa influenciar pelas informações veiculadas por redes digitais sem compromisso com a verdade. Em consequência, difunde-se o negacionismo e reduz-se toda tomada de posição a mera “opinião” pessoal, independentemente de fundamento racional.
Para reverter esse processo de despolitização é necessário um grande esforço de educação popular, que exige a participação de pessoas dispostas a dedicar seu tempo e esforço para uma causa cujos resultados não são imediatos. Na segunda metade do século passado a Igreja católica conseguiu mobilizar muita gente para esse trabalho de educação política puxado pelo Movimento de Educação de Base e depois pelas Comunidades Eclesiais de Base, as Pastorais Sociais e as Pastorais das Juventudes. Quando, na virada do século, a Igreja católica só priorizou a formação religiosa de seus membros, a educação política foi deixada em segundo plano. Ela continuou a ser feita pela sociedade brasileira porque alguns Movimentos sociais – especialmente o MST – Partidos e até órgãos do Poder público entenderam sua importância e assumiram essa função social seguindo o método Paulo Freire. Mas o volume da educação política popular ainda é insuficiente para mudar o atual clima cultural de despolitização e de desinformação.
Nesta conjuntura, o processo eleitoral deste ano surge como ocasião propícia para a retomada da educação política popular. Na medida em que conseguirmos articular o apoio a alguma candidatura à reflexão sobre as dificuldades, avanços e resultados dessa ação política, estaremos realizando – na prática – esse processo educativo. O momento atual não favorece altos sonhos, porque a força do ideário fascista é grande e o processo de despolitização continua a crescer – inclusive, senão especialmente, entre os jovens – e isso torna difícil uma candidatura reunir pessoas dispostas a colaborar na campanha sem esperar recompensas no caso de vitória.
Não é recomendável prever grandes êxitos nessas eleições. Se o processo eleitoral deste ano consolidar o que se conseguiu em 2022, no sentido de assegurar as instituições democráticas e dar continuidade a Políticas sociais de redução de danos para a ecologia e para os setores mais vulneráveis, já será um ganho importante. É preciso, porém, que esses pequenos ganhos políticos venham junto com a disposição dos movimentos, partidos e organizações populares aproveitarem a ocasião para realizar sua função de conscientização e organização política desde as bases populares, para pavimentar o caminho de um Brasil – e um Mundo – onde Justiça e Paz se abracem.
Diante desse quadro, nossa primeira reação é como a de Abraão e Sara: dar uma risada de descrédito. A realidade do Mundo atual, submetido às catástrofes climáticas, guerras se intensificando, novo fascismo se difundindo e deixando os povos empobrecidos ainda mais vulneráveis, não deixa lugar para o otimismo. Mas tanto Abraão quanto Sara venceram esse momento de descrédito na boa notícia quando decidiram fazer o que podiam para gerar um filho. Foi um ato de Fé. Penso que é esse ato de Fé que nos cabe fazer hoje. Como, aliás, dá bom exemplo Francisco: seja ou não escutado pelos milionários e poderosos, o bispo de Roma clama pelos Direitos da Terra, pela Paz, por Terra, Teto, Trabalho e por outros Direitos desrespeitados pelo capital de rapina. Sejamos uma minoria abraâmica, como propunha Dom Hélder, e não descrentes zombeteiros que não têm futuro.
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Abraão, Sara e a conjuntura atual. Artigo de Pedro A. Ribeiro de Oliveira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU