16 Mai 2024
"Vivemos numa sociedade cuja primazia está posta no processo de produção-comercialização-consumo. Nela, com frequências as pessoas se medem pela quantidade ou aparência de “bens” que possuem, não pelo “bem” que são capazes de colocar à disposição, e menos ainda pelas relações que são capazes de costurar e cultivar. Apesar da perda, a maior riqueza humana permanece de pé, junto com a vida, a fé e a esperança!", escreve Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS, assessor do SPM – São Paulo, 15-05-2024.
Evidentemente não se trata de romance ou poesia. A ferida da tragédia permanece viva e sangrenta por todos os poros. Água e lama ainda cobrem as casas, em alguns casos até o teto. Centenas de milhares de pessoas, sem chão e sem rumo, encontram-se nos abrigos improvisados. A grande maioria dos atingidos perderam em segundos, minutos, horas tudo aquilo que haviam conquistado durante anos. Estradas continuam bloqueadas, pontes foram levadas pela torrente, edifícios ruíram definitivamente. Nesses abrigos, não é fácil resgatar um mínimo de privacidade familiar ou parental. Menos fácil, ainda, é ver-se dependente da caridade pública. Água potável e alimentos; remédios, perfumes e cosméticos; roupas do corpo, de mesa e de cama; produtos de higiene pessoal e calçados; veículos, eletrodomésticos, móveis e colchões; livros, fotos, documentos, lembranças do ambiente familiar e amigo; toda espécie de animais de estimação e até mesmo os brinquedos das crianças – tudo foi arrasado e arrastado pela fúria brutal da tempestade.
Uma calamidade sem precedentes que se estende por quilômetros de ruas e avenidas alagadas. Que mostra sua face mais cruel nas habitações engolidas até o telhado, nas ruínas, escombros e destroços acumulados por todos os lados. E que, em rápidos segundos, impõe a difícil decisão de sair ou não sair da própria casa, tão duramente adquirida. Pior, uma tormenta que não dá tréguas, entrando pelas portas e janelas uma, duas, três vezes!... Pessoas completamente ilhadas à espera do socorro, bairros tomados pelo pânico, cidades inteiras isoladas de qualquer ponto de contato. A tanta e tamanha desgraça, somam-se as redes hidráulica e elétrica comprometidas, comprometendo igualmente qualquer tido de comunicação. Lamentos, lágrimas engolidas à força e pranto declarado vão se multiplicando. E agora chega o frio!
O pesadelo parece não ter fim. A cada estiagem, chegam as previsões meteorológicas de novas aguaceiros. A água dos rios que já começa a baixar, se ergue outra vez furiosamente. Até quando esta situação degradante, até quando este inferno?!... Mas, é justamente o inferno que acaba por revelar um pedaço do céu. Em maio à crise, ao caos e ao “apocalipse”, a humanidade se encontra consigo mesma. Os desencontros nos espaços dos abrigos abrem a oportunidade para encontros inusitados, mas também reveladores. Dor, medo, inquietude e ameaça são as coisas que mais se compartilham. Destinos adversos se cruzam e recruzam, e nessas inóspitas encruzilhadas, luzes e sombras se mesclam e se entrelaçam. A experiência de árduas experiências passadas pode, sim, levar a uma “fusão de horizontes” furos, para usar a expressão de H. G. Gadamer.
Mas no terreno das perdas, da carência e da penúria, podem emergir riquezas absolutamente insuspeitadas. A humildade de receber bem pode se revelar tão nobre e tão grande quando a solidariedade de oferecer. Aliás, as noites mais escuras e a crises mais desesperadoras, numa ambiguidade característica da condição humana, costumam intensificar tanto a corrupção do mal quanto o brilho do bem. E aí oportunidades e oportunismos andam de mãos dadas. Vandalismo e voluntariado normalmente coexistem em meio às desgraças. É nesse solo ambíguo e escorregadio que o ato de “dar e o receber” tendem a revelar as riquezas ocultas no mais profundo das entranhas humanos. Por terra caem as máscaras, desnuda-se a hipocrisia do cotidiano, nivelam-se orgulhos e humilhações, para o surgimento inesperado de novos laços, novas encontros, diálogos nunca antes imaginados – enfim, para novas relações humanas.
Semelhantes momentos turbulentos tendem também, e sobretudo, a relativizar e ressignificar o conceito de riqueza. Descobre-se subitamente de quão poucas coisas necessitamos para sobreviver sobre a face da terra. Banalizam-se muitos objetos que antes considerávamos essenciais e absolutos. O caminho e o sofrimento ajudam a depurar a mala e a alma. Purificam a quantidade de produtos e quinquilharias que, pouco a pouco, vamos acumulando ao longo de nossa trajetória existencial, focalizando o olhar e a atenção naquilo que é essencial. Quem navega sabe que, às vezes, é preciso esvaziar a embarcação do que é supérfluo, para salvar o que é absolutamente indispensável.
Vivemos numa sociedade cuja primazia está posta no processo de produção-comercialização-consumo. Nela, com frequências as pessoas se medem pela quantidade ou aparência de “bens” que possuem, não pelo “bem” que são capazes de colocar à disposição, e menos ainda pelas relações que são capazes de costurar e cultivar. Apesar da perda, a maior riqueza humana permanece de pé, junto com a vida, a fé e a esperança!
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A riqueza de quem perdeu tudo. Artigo de Alfredo J. Gonçalves - Instituto Humanitas Unisinos - IHU