05 Julho 2024
"O problema que se torna cada vez mais urgente para mim é tentar entender a quem, ao quê, demos o nome 'Deus'. Com quais significados foi preenchida a palavra 'Deus', que em si - sabemos - é apenas um nome genérico de origem grega. Tenho a impressão de que, se não reconstituirmos a origem e a história desse nome, nas culturas que o adotaram, não apenas entenderemos cada vez menos de que Deus estamos falando, mas o nome de Deus ficará uma cápsula vazia, que cada um pode preencher a seu bel-prazer", escreve Gabriella Caramore, autora e estudiosa (La parola di Dio [A palavra Deus], livro publicado pela Einaudi em 2019), em artigo publicado por Qol. A tradução é de Luisa Rabolini.
Antes de tudo, quero parabenizar os organizadores desta palestra pela maneira como pensaram esta lembrança de Paolo De Benedetti, reunindo todos nós em torno de uma de suas perguntas: "Qual Deus?” O encontro físico entre os amigos de quem não está mais presente é algo que dá conforto, que aquece a memória. "Reencontrar-se também é um Deus", afirma-se na Helena, de Eurípides. Mas se também se quer lembrar o legado "espiritual" e "intelectual de um amigo", de Paolo neste caso, então é essencial retomar aquele que ele nos deixou, seus pensamentos, suas reflexões, aquilo em que se esforçou e se alegrou na sua vida, e trabalhar em torno disso.
O Paolo De Benedetti da minha memória, especialmente nos muitos diálogos com ele em Uomini e Profeti, mas também naquele seu estilo próprio inteligente e seco nos livros, nos ensaios e nos discursos, é o frequentador da sabedoria rabínica, ou melhor, o atravessador daquela sabedoria para fora do contexto primorosamente judaico, e o exegeta, o intérprete das Escrituras, grande conhecedor das interpretações dos outros, às quais sempre acrescentava seu próprio ponto de vista altamente original.
Mas aqui nos deparamos, em "Qual Deus?” com uma questão primorosamente teológica: qual Deus? Dele, no entanto, quero enfatizar o "limiar" específico do qual a pergunta parte, ou seja, aquele "vir da história" que é explicitado no subtítulo.
Logo nas páginas da Introdução, Paolo se pergunta "que imagem de Deus é defensável hoje". Talvez "precisemos mudar Deus para preservá-lo (e para que ele nos preserve). Talvez isso signifique apenas mudar a nossa maneira de pensar sobre Deus. Ou talvez não?" No meu ponto de vista, a resposta é: Sim. Realmente é preciso mudar a maneira como pensamos sobre Deus. Acima de tudo, sair de uma ambiguidade segundo a qual, por um lado, inevitavelmente se pensa em Deus de forma diferente do que no passado, porque a passagem da história, a crítica que limpou nosso olhar de tantos equívocos e de tantas ignorâncias nos leva a muitos repensamentos com relação à imagem de Deus elaborada no passado; por outro lado, há uma espécie de cisão entre as aquisições do método histórico e crítico e uma fixidez em considerar "Deus" como algo "real", "objetivo", acima de tudo "inquebrável" na imagem que fizemos dele. Sem perceber que, ao fazer isso, Deus se torna um objeto, um ídolo em última análise, do qual é possível fazer o que se quiser.
Pessoalmente, sinto cada vez mais um "desconforto da inteligência" quando alguém menciona Deus, ou o Senhor, ou o Pai (ou o "Materno"), sejam eles crentes fervorosos ou intelectuais desencantados, colocando entre parênteses, de certa forma, a complexidade implícita no nome e nos seus sinônimos ou epônimos, desconsiderando o contexto histórico e cultural em que se afirmaram e o contexto em que se enquadram hoje, tornando-os obsoletos, abstratos, sem devolvê-los à mobilidade da história que os gerou, removendo-os assim dos exigentes questionamentos do presente. E também desconsiderando o fato de que, ao falar de algo tão decisivo na história de nossa cultura como a figura de "Deus", cada um deveria responder sobre isso não apenas para si mesmo, mas também para a linguagem e o pensamento do tempo presente.
Todos os grandes profetas, de Isaías a Jeremias e a Jesus - e esse é um pensamento típico de Paolo De Benedetti - falavam aos seus contemporâneos. E antes dos profetas, a própria Torá foi escrita "no tempo presente", embora fale do passado e do futuro. Hoje, se não traduzirmos as palavras antigas para a "linguagem contemporânea", se não levarmos em conta a linguagem simbólica usada naquelas Escrituras estratificadas no tempo, se negligenciarmos a intenção por trás dos textos, corremos o risco de propor palavras vazias, que não têm mais nenhum impacto sobre as novas gerações e dentro dos complicados arranjos mundiais que estamos vivendo e, portanto - poder-se-ia dizer por paradoxo - corremos o risco de profanar aquele nome que estamos tentando preservar. "Deus" é uma palavra móvel. Essa é a sua virtude.
Torná-la "imóvel" é, no fim das contas, profaná-la.
O problema que se torna cada vez mais urgente para mim é tentar entender a quem, ao quê, demos o nome "Deus". Com que significados foi preenchida a palavra "Deus", que em si - sabemos - é apenas um nome genérico de origem grega. Tenho a impressão de que, se não reconstituirmos a origem e a história desse nome, nas culturas que o adotaram, não apenas entenderemos cada vez menos de que Deus estamos falando, mas o nome de Deus ficará uma cápsula vazia, que cada um pode preencher a seu bel-prazer, como sempre aconteceu ao longo da história, e como está acontecendo agora em todas as áreas em que eclodem os conflitos.
Para mim, aliás, não cria nenhuma dificuldade a ideia de que se possa viver "sem Deus". Milhões de pessoas vivem com outros deuses ou totalmente sem deuses. E esses mesmos milhões vivem, criam, amam, sofrem, pensam e agem com as mesmas esperanças e os mesmos desesperos que aqueles que são crentes no Deus das tradições. Mas acredito que esvaziar a palavra Deus dos significados que teve na história - e que ainda tem em alguns contextos - ao não levar a sério a sua natureza problemática, a sua complexidade, acaba por dispersar, anular, amputar um patrimônio de história, de pesquisa, de conhecimento da história humana, perpetrando um puro desperdício, realizando uma remoção culpada do nosso passado e também daquele que poderia ser o nosso futuro.
Ou, especularmente, se faz um uso cegamente fundamentalista disso, como vemos acontecer em todos os estados que pretendem ter um fundamento religioso. Como sair, então, desse tipo de "pensamento duplo" que, por um lado, quer preservar Deus de um pensamento crítico, mas, pelo outro, congela-o em uma abstração fora do tempo que acaba por lhe tirar a "dimensão"?
Parece-me que uma saída poderia ser seguir o caminho da história. Tentando entender, precisamente, como nasce a ideia daquele Deus, como se torna - no caso das religiões que se afirmaram no Ocidente - o Deus único, o Deus da história, o Deus que se torna próximo de um povo (ou, mais tarde, de toda a humanidade), o Deus da misericórdia que, às vezes, no entanto, se expressa com uma brutalidade inaceitável para os ouvidos contemporâneos, o Deus de um e o Deus de todos, o Deus de muitas faces e muitos nomes, elusivo, mas narrado nas Escrituras que mostram a luta de um povo e dos povos - para encontrar morada no mundo, para ter justiça e liberdade, para ficar do lado de quem é pequeno e sofre abusos, para entender como vencer os opressores dos fracos e dos indefesos. Essa é a história que me faz tremer de emoção.
Ver os esforços, as esperanças, os desesperos que os seres humanos foram capazes de elaborar para dar a si mesmos - e nos dar - a civilização, e a quantas quedas desses esforços tentaram e estão tentando remediar. O exegeta, filólogo e biblista Thomas Römer, que, além disso, recebeu um diploma honorário da Universidade de Tel Aviv, fala de "invenção de Deus", referindo-se ao fato de que, de acordo com as pesquisas históricas mais recentes, o Deus único de Israel não nasce em Israel, mas de tradições sedimentadas, reelaboradas, numa região muito vasta, em meio a um conglomerado de divindades, que muito lentamente, no caso de Israel, se fundem no Deus único, o Deus relacionado àquele povo particular, que mais tarde se tornará o Deus de todos os povos. A "tensão entre inclusão e segregação, entre coabitação e confronto" é o que faz com coexistam na Bíblia "dois monoteísmos diferentes" que continuam a se opor dentro das comunidades contemporâneas, e que talvez fosse saudável trazer à luz. Ao liberar a palavra "Deus" de uma obediência acrítica à tradição e trazê-la de volta ao magma da história que a construiu, talvez seria possível salvar a palavra "Deus", devolvendo-a ao atribulado trabalho do "caminho do homem" para construir a comunidade e para buscar um "sentido" nessa atribulada jornada.
Saber que o Deus único é uma construção tardia dos escribas que, ao longo dos séculos, redigiram aquela complicada e muitas vezes contraditória biblioteca que é a Bíblia, não me parece ser uma perspectiva reducionista em relação daquela engenhosa e grandiosa elaboração de uma busca de sentido à qual aqueles que nos precederam deram o nome de "Deus". Isso não me distancia do desejo de vasculhar mais naquelas palavras e extrair delas a essência da tentativa claudicante de construir a civilização. Saber, como a Bíblia afirma, que aquele Deus é chamado de muitas maneiras também parece ser um bom antídoto contra a tentação de transformá-lo em um ídolo. Mas também é uma forma de indicar a sua grandeza, a sua impossibilidade de ser apreendido dentro de um conceito e, usando uma forma um tanto atrevida, a sua não pertença a uma única religião. Isso não apaga a visão do Deus "pessoal" do povo de Israel. É evidente que cada um nasce e cresce dentro de uma cultura, de uma civilização.
Mas também é necessário aceitar o paradoxo de que aquele Deus de um povo, se ele realmente é o Nome, o Altíssimo, o Único, o Infinito, é ao mesmo tempo o deus de todos os povos e de todos os viventes, que podem tê-lo chamado por outros nomes ou pelo mesmo nome. Como lidar com o paradoxo? Não é simples. Mas me parece que a única maneira seria entrar na contradição de um Deus para todos e de um Deus para um só povo. Desvendar - não revelar - o percurso por trás daquela palavra. Então, sim, aquele Deus aparece como uma "coisa nova", um novo pensamento, que nasce dentro da matéria viva de um povo sem terra e sem liberdade, de homens e mulheres em busca de morada, de paz e, em última análise, de vida; de homens e mulheres que lutam, como os homens e as mulheres de todos os tempos, para encontrar um lugar onde criar uma pátria, uma maneira de aplacar as necessidades, de curar os conflitos, de atuar a justiça contendo o medo, alimentando a esperança. Mas é algo novo que só tem sentido se pertencer, potencialmente, a toda a humanidade. Somente quando se reconhece que aquele esforço não é o esforço de “uma” religião, mas o esforço de todos os seres humanos.
Não me escandaliza nem me incomoda pensar que aquela de Deus seja uma “invenção”. Afinal, não sou certamente a primeira a utilizar essa expressão num sentido positivo e não - se fosse necessário esclarecê-lo ainda mais - para indicar um devaneio infantil. E, além disso, “em vir” significa a ação de “procurar o que já existe”. “Invenção”, caso seja preciso reiterá-lo, é o instrumento do humano, a sua capacidade de se equipar para viver, mas também para pensar, para desfrutar da beleza, para aliviar os esforços, para construir comunidade. Não é pouca coisa.
Aquela que foi chamada de “invenção do sagrado”, e que hoje se chega a explicitar historicamente como “invenção de Deus” (não só Römer vai nessa direção), não deve ser considerada uma ingenuidade de mentes “primitivas”. Pelo contrário, trata-se da colocação em movimento de um pensamento especulativo que não se contenta com o que aparece na concretude das coisas, mas investiga, escava, sonha, descobre. “Inventar”, precisamente. Questiona-se sobre o que está dentro do humano, mas também fora ou acima do humano. É assim que nascem as religiões, que assumem valores e significados diversos dependendo do contexto em que se desenvolvem. Como se sabe, existem religiões sem Deus e religiões cheias de deuses, espíritos, avatares, santos, profetas, mestres. O nosso problema hoje é compreender como foi possível, particularmente nas religiões do Ocidente, ou seja, no Judaísmo e no Cristianismo, unificar sob o mesmo nome, “Deus”, um amontoado de significados diferentes, como se pode verificar pela leitura do texto bíblico e pela história das fés, dando, porém, a essa palavra um significado único, imutável e eterno. De fato, a palavra “Deus” atribuída ao Deus bíblico é uma abstração.
Dentro da qual se expressam diferentes necessidades para nomear o que está além do humano, o que nos envolve na imensidão do universo e o que nos guia pelos caminhos da história e das relações entre indivíduos e comunidades. Na realidade, já na Bíblia, o nome de Deus é um nome secreto que não pode ser pronunciado. Como passou de nome “comum” para (um) nome “próprio”, como se se tratasse de uma pessoa cognoscível, identificável, de casa? Não seria isso uma profunda deturpação da ideia de Deus? O que fazer então, hoje, com essa palavra?
Aqui está. Realmente penso com muita simplicidade e sem querer professar nenhum ateísmo, que para mim é outra forma de idolatria, nem presumir ter descoberto sabe-se lá o quê, que aquela do Deus judaico e cristão (e se realmente quisermos ir mais longe, também muçulmano) seja uma complexa, poderosa e engenhosa "invenção" de um povo, que confluiu na elaboração de mais povos. Também poderia ser chamado de “Mito”, como o do destino no mundo grego, ou do nirvana no mundo budista, por meio do qual se tentou elaborar uma forma de estar no mundo: buscando justiça, liberdade, igualdade, fraternidade. Buscando a beleza e o bem.
Aspirando à verdade. Sabendo que nós, humanos, somos uma mistura de verdade e mentira, de ferocidade e amorosidade, de avidez e benevolência. E sabendo que somos pequenos grãos de poeira num universo incognoscível, imprevisível e em eterna mudança. Também a palavra “Mito” espera que lhe seja devolvida a sua dignidade, como poderoso intermediário entre a vida terrena dos seres humanos e todo o incognoscível que a rodeia. Parece-me que, “talvez”, ensinando a nossa língua a dizer “não sei”, e também “não sei que nome dar” ao enigma de viver, sabendo que estamos sozinhos neste maravilhoso e terrível universo que nos rodeia, poderíamos ser reconduzidos com maior força à nossa responsabilidade cotidiana, à nossa tarefa de salvar aquele pouco que está ao nosso alcance da terra e da nossa humanidade. As narrativas sobre Deus que herdamos não têm menos valor por isso. São preciosos “vestígios de caminhos” para estudar, consultar, questionar para traçar um mapa do nosso avançar. Como tais, não são “realidades”. São mais minúsculas faíscas de verdade que, de vez em quando, iluminam os passos do nosso progresso.
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A palavra de "Deus". Artigo de Gabriella Caramore - Instituto Humanitas Unisinos - IHU