25 Junho 2024
"O Ministério do Desenvolvimento Agrário pode deixar de ser o ministério do agronegocinho, uma pequena minoria capitalizada da agricultura familiar. Na verdade, este setor não preciso deste subsidio elevado. Ele está bem enquadrado na cadeia de produção de commodities de exportação e é capaz de produzir lucrativamente pagando as taxas de juros de mercado, abrindo caminho para que os parcos recursos do ministério sejam usados para beneficiar os mais pobres", escreve Jean Marc von der Weid é ex-presidente da UNE (1969-71). Fundador da organização não governamental Agricultura Familiar e Agroecologia (ASTA), publicado por A Terra é Redonda, 21-06-2024.
Este texto é mais do que uma análise das políticas públicas. Ele pretende ser uma proposta de ação para o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). Os leigos poderão achá-lo demasiado especializado, mas espero que o leiam até o fim para entenderem como se definem objetivos, métodos e custos de um programa de governo. A intenção é propor algo que caiba dentro do orçamento atual do ministério e, ao mesmo tempo, aponte para políticas permanentes e de longo prazo do Estado.
As políticas públicas de apoio ao desenvolvimento da agricultura familiar são recentes, tendo início no governo de Fernando Henrique Cardoso, com a criação do Programa de Apoio à Agricultura Familiar (PRONAF) e do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) nos anos noventa.
As políticas de apoio ao desenvolvimento adotadas nos governos populares seguiram o mesmo padrão estabelecido no governo de FHC, apenas buscando uma maior amplitude no número de beneficiários.
Distribui-se mais crédito com mais subsídios, financiou-se a extensão rural estatal (EMATER) e privada (ONGs), embora abrangendo, no máximo, 18% do público potencial, sendo que metade dele concentrado na região sul. Foi criado um programa de preços mínimos e outro de seguro safra, visando garantir a capacidade de pagamento das dívidas assumidas com o crédito PRONAF no caso de problemas com a produção ou com o mercado. Mesmo assim, foi pesado o endividamento dos agricultores e, apesar de várias anistias e renegociações destas dívidas, muitos ficaram inadimplentes e abandonaram suas produções e propriedades.
A orientação destas políticas seguiu o paradigma de modernização adotado pelo agronegócio desde os tempos dos militares e por uma minoria dos agricultores familiares desde os tempos de FHC. Esta orientação, embora os governos populares tenham tentado priorizar as culturas alimentares, acabou levando os agricultores familiares mais capitalizados (os principais beneficiários das políticas) para a produção de commodities – soja, milho e gado bovino. A produção absoluta para o mercado interno estancou, sobretudo nos produtos de consumo popular, com quedas constantes na produção per capita, com fortes efeitos nos custos da alimentação no país e, por conseguinte, no aumento da insegurança alimentar e na adoção de dietas mais baratas de pior conteúdo nutricional.
O novo governo Lula parecia ter entendido que o modelo promovido nos governos populares era um equívoco que levou não só à já mencionada redução da oferta de alimentos como à significativa diminuição do número de agricultores familiares, com 800 mil deles deixando o campo, mais do dobro dos assentados entre os censos de 2006 e 2017. O saldo negativo ficou em 400 mil agricultores, revertendo a tendência à expansão verificada entre os dois censos anteriores.
Não foi possível saber se estes números e este diagnóstico foram a base para a mudança de enfoque declarada pelo Grupo de Transição entre o governo do energúmeno e o governo Lula. Mas é fato surpreendente que o Grupo da Transição declarou que a prioridade do novo governo era a promoção da agroecologia, muito embora ele não tenha definido como é que as políticas vigentes seriam reformadas para se ajustar a este novo paradigma.
Infelizmente, entre a intenção e o gesto o governo simplesmente repetiu, na forma e no conteúdo, as políticas anteriores. O crédito segue dirigido principalmente para commodities e concentrado em uma minoria de agricultores capitalizados na região sul, a assistência técnica teve apenas duas chamadas para projetos (com os mesmos equívocos de formatação do passado), o seguro segue sendo exclusivo para a produção convencional. O apoio à agroecologia ficou limitado a pequenos programas com poucos recursos e sem um formato adaptado às peculiaridades da transição agroecológica.
Em 2023 o governo gastou 9 bilhões de reais para pagar a equalização dos juros do crédito subsidiado, de longe a rubrica mais importante na planilha das atividades finalísticas do MDA. A ATER recebeu menos de 500 milhões de reais para financiar três anos de projetos. O Programa de Aquisição de Alimentos arrancou 750 milhões de reais (inicialmente foram orçados 250 milhões) para o ano d 2023 e beneficiou 250 mil agricultores, sendo que o número dos que entregaram alimentos orgânicos ou agroecológicos foi uma pequena fração deste total.
Foi lançado com muito estardalhaço, na Marcha das Margaridas, um programa de “quintais produtivos”, dirigido à 100 mil mulheres produtoras nas áreas ao redor de suas casas. Foram orçados 100 milhões de reais para serem aplicados em quatro anos. O programa é potencialmente interessante, mas claramente sub-orçamentado, já que as experiências na região nordeste apontam para necessidades bem maiores para garantir segurança hídrica para a produção, além de outras infraestruturas.
Olhando de forma mais abrangente, constata-se que o Ministério do Desenvolvimento Agrário está atuando erraticamente, sem metas e objetivos bem definidos e sem uma rediscussão do formato das políticas que estão sendo aplicadas.
Não creio que o Ministério do Desenvolvimento Agrário tenha qualquer ideia das dificuldades e limitações para introduzir políticas em favor da agroecologia. Desde que conheci as resoluções do Grupo de Transição tenho repetido que faltam condições, no imediato, para a adoção generalizada de políticas voltadas para a agroecologia, mesmo se elas forem adaptadas corretamente para as condições deste sistema produtivo.
É mais prudente adotar um programa especial para o desenvolvimento agroecológico e dar a ele a máxima prioridade possível, sem tentar fazer com que todo o crédito Pronaf e toda a extensão rural apoiados pelo governo venham a se subordinar a esta proposta. O que me proponho neste texto é formular um programa para a agroecologia, indicando o seu tamanho possível, suas metas, objetivos e custos. Repetindo, o que proponho é um programa e não um conjunto de políticas universais a serem adotadas pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário.
Para começar, é importante definir qual o objetivo principal da ação do Ministério do Desenvolvimento Agrário e qual o público prioritário a ser beneficiado. No momento, pode-se dizer que as ações do Ministério do Desenvolvimento Agrário servem, sobretudo, para a promoção de uma produção convencional das commodities de exportação. Com este objetivo, o público-alvo é o dos agricultores mais capitalizados, chamados pejorativamente de agronegocinho. São, no máximo, 500 mil famílias, fortemente centralizadas na região sul e (em escala bem menor) sudeste. É para estes que a maior quantidade de recursos está sendo carreada.
E qual deveria ser o objetivo central do Ministério do Desenvolvimento Agrário? A produção de alimentos para enfrentar ou ajudar a enfrentar a fome, subnutrição e desnutrição que afetam perto de 130 milhões de brasileiros e brasileiras. A produção de commodities não pode continuar a ser o centro da política pública para a agricultura familiar.
Das 3,9 milhões de famílias agricultoras, cerca de 1,5 milhão é composta pela categoria de minifundistas, com até 5 hectares de terra disponível para as culturas e criações. Os mais pobres dentre essas, cerca de 1,2 milhão, são beneficiárias do Bolsa Família e afetados por insegurança alimentar grave na maior parte dos casos. Um programa de auto-suficiência alimentar dirigido a este público deveria ser a prioridade um deste ministério.
Um programa desta natureza exige um conhecimento dos problemas e restrições do público-alvo, para que ser possam definir as medidas a serem tomadas para alcançar os objetivos definidos.
A grande maioria destas 1,5 milhão de famílias se encontra nas regiões nordeste e norte, mas bolsões de pobreza existem em todas as outras regiões, Sudeste, Sul e Centro-Oeste. As famílias nordestinas se encontram sobretudo no semiárido, sofrendo com a irregularidade e insuficiência da oferta hídrica, poucos recursos financeiros, solos pobres e degradados. Em outras regiões o problema da oferta hídrica é menos acentuado, mas crescente, dada a generalização dos efeitos do aquecimento global. Também são comuns as terras desgastadas e os terrenos declivosos.
Na distribuição de responsabilidades entre os familiares, a produção (complementar) para o consumo da casa fica nas mãos das mulheres, com ou sem auxílio dos filhos, sobretudo os mais velhos. Estes subsistemas produtivos são conhecidos no Nordeste como “ao redor da casa”. Em outros lugares também se usa o nome adotado no programa do Ministério do Desenvolvimento Agrário, os “quintais produtivos”.
Estes subsistemas produtivos se destinam ao autoabastecimento, com venda de excedentes eventuais, nos casos mais avançados. Existem inúmeros desenhos produtivos neste subsistema, dependendo da área disponível, dos recursos materiais e humanos e das escolhas das mulheres. Os quintais dificilmente ultrapassam 1/5 de hectare e podem ser de apenas 100 metros quadrados. Tradicionalmente, se compõe de uma horta (às vezes suspensa em um girau para evitar os cães, galinhas e cabras criados soltos) de temperos, pequenas criações de galinhas, algumas árvores frutíferas e, em espaços mais amplos, pequenos roçados. Quando existem recursos hídricos disponíveis estas plantas são aguadas para maior segurança da produção. Não há uso de insumos químicos e a adubação se limita a uma cobertura do solo com restos de culturas.
O objetivo é suplementar o abastecimento da família, mas raramente estes quintais tradicionais conseguem um autoabastecimento significativo em quantidade e qualidade. A pouca variedade na dieta é a tônica destes sistemas. As hortaliças são pouco conhecidas e se limitam a cebola, jiló, maxixe, coentro, alho. Ovos e aves são a sua maior contribuição. As cabras não fazem parte deste sistema pela dificuldade de controle dos animais e ausência de instalações para contê-las. Porcos ou ovelhas podem aparecer, em criações “na corda” ou pequenos cercados. Fruteiras têm pouca diversidade, mas são contribuições importantes para a dieta familiar.
Este público tem parcos recursos financeiros e os existentes são utilizados prioritariamente nos roçados de maior porte de responsabilidade dos homens. Como já foi assinalado, a maioria depende do Bolsa Família e da alimentação escolar para melhorar a nutrição de adultos e crianças.
As experiências de ONGs de promoção da agroecologia na região nordestina são muito bem-sucedidas e disseminadas em todos os Estados e podem servir de base para o programa. Nelas, os técnicos se apoiaram nas práticas usuais das mulheres e introduziram infraestruturas hídricas de vários tipos e os métodos e práticas da agroecologia. Isto permitiu a ampliação da variedade de produtos de modo a garantir uma alimentação correta do ponto de vista nutricional e as quantidades necessárias para toda a família. Estas inovações implicaram na apresentação e acesso das mulheres a produtos que desconheciam como hortaliças e legumes. Sem uma educação alimentar e culinária o padrão alimentar não progride e apenas aumenta o volume consumido de uma dieta pobre em nutrientes.
As experiências em quintais agroecológicos permitiram aumentar a área explorada, intensificando e diversificando as hortas, cercando espaços de pastejo para aves, ovinos e porcos e até uma eventual vaca leiteira, construindo galinheiros, pocilgas e currais. Os pomares foram ampliados e diversificados de modo a produzir frutas ao longo do ano. Os pequenos roçados foram introduzidos ou ampliados e diversificados. A área dos quintais se ampliou para um quarto e até meio hectare, dependendo da disponibilidade de mão de obra e de espaço.
As práticas da agroecologia, neste público muito carente, encontram algumas limitações. Em primeiro lugar, a disponibilidade de água é uma imposição para o sucesso da iniciativa. Depender de chuvas em quantidade e na hora certa, no quadro de crescente instabilidade climática (em geral e em particular no semiárido) é cortejar o fracasso. Para enfrentar este problema básico as ONGs identificaram várias infraestruturas de captação de água de chuva, para distintos fins.
Para o consumo humano exige-se água de melhor qualidade e, para isto, construíram-se cisternas de baixo custo e dimensões apropriadas para garantir a água para beber e cozinhar ao longo do ano.
Para o consumo dos animais criados no “ao redor de casa” (galinhas, porcos, ovinos e caprinos e até a eventual vaca leiteira), usam-se os barreiros-trincheira, que permitem acumular água em quantidades maiores, mas de qualidade menos exigente.
Para irrigar as hortas e pequenos roçados de milho, feijão e mandioca e fruteiras é necessária uma quantidade maior de água, também sem exigência maior de pureza. São usadas várias infraestruturas hídricas, como as barragens subterrâneas, pequenos barreiros e poços (onde é possível encontrar água não salobra) e, em maior porte, as cisternas calçadão desenvolvidas pela Embrapa Semiárido.
As opções de barragem subterrânea e de barreiros dependem de condições ambientais (solos, relevo e a presença de leitos de riachos intermitentes, secos na maior parte do ano). Já a cisterna calçadão pode ser usada em qualquer circunstância, embora seja mais cara. Todas estas infraestruturas exigem, em maior ou menor grau, equipamentos de distribuição da água e de bombeamento, em geral de baixo custo e manuais. Estas diferentes infraestruturas hídricas permitem ampliar a área dos quintais, com um máximo de meio a um hectare de “molhado”.
As práticas da agroecologia não utilizam adubos químicos e busca-se favorecer a produção de composto orgânico a partir de esterco dos animais criados neste sistema. Entretanto, para que isto seja possível, são necessárias outras infraestruturas para abrigo das criações e que concentram o esterco. Muitas vezes o esterco disponível é insuficiente, e torna-se necessária a compra de esterco de outros produtores. Já os controles de pragas, eventualmente necessários apesar da diversidade dos cultivos as minimizarem, são feitos com caldas variadas de produção caseira, empregando produtos naturais.
O tamanho dos quintais agroecológicos vai depender das condições de solo e relevo neste ao redor da casa e da disponibilidade de mão de obra para manejá-los. Há um custo de mão de obra na implantação do sistema, com a construção de cercas isolando os quintais e separando os subsistemas, na construção dos abrigos para os animais, na construção das infraestruturas hídricas, na formação dos leirões das hortas, bem maiores que as tradicionais, na semeadura dos pastos, no plantio das árvores frutíferas e das voltadas para a produção de lenha e carvão.
Esta mão de obra não será apenas das mulheres e mesmo com a colaboração dos homens ela poderá não ser suficiente, cobrando o pagamento de serviços externos ou trabalho coletivo e grupos comunitários solidários. Já o manejo do sistema é responsabilidade das mulheres com, eventualmente, a ajuda de adolescentes e crianças.
Estes sistemas altamente diversificados com meio a um hectare irrigado permitem alimentar uma família de quatro pessoas em quantidade e qualidade nutricional adequados e ainda dispor de pequenos excedentes que podem ser colocados nas feiras comunitárias ou distritais ou na vizinhança. São, sem sombra de dúvida, uma excelente solução para garantir a segurança alimentar das famílias que os utilizam. A questão está mais em como generalizar estas experiências, que se contam em milhares na região nordeste.
Embora o esquema apresentado pareça simples e passível de ser copiado, existem múltiplas variações em cada caso ou casa. Vai ser preciso adaptar a proposta para as condições de cada família e de cada quintal, incluindo as decisões de cada mulher sobre o que plantar e criar, a partir de suas preferências, tanto alimentares como de tipo de trabalho. Há quem não goste de lidar com animais, por exemplo. Mas as práticas mostram que, de modo geral, as mulheres tendem a incorporar todos os subsistemas propostos, mas em proporções bastante distintas.
Esta variabilidade exige que se façam escolhas em relação ao que produzir, em que dimensões, onde e como manejar os subsistemas e o sistema como conjunto. E existe um aprendizado a ser realizado, envolvendo as técnicas da agroecologia como a combinação de culturas e a sua sucessão, a produção de composto orgânico, de controles biológicos, podas, épocas de plantio, produção de sementes e outras mais.
Lembremos também que a introdução de várias espécies de hortaliças e legumes nas hortas intensivas, muitas desconhecidas pelas mulheres, não só exige conhecimento sobre o manejo como sobre a importância de cada uma para a nutrição e as maneiras de transformá-las em alimentos saborosos. E ainda aparece com frequência a demanda de técnicas para a conservação dos produtos e/ou para seu armazenamento seguro.
É comum nestas experiências a atração dos homens para este espaço intensivo e diversificado, sobretudo quando as condições ambientais são adversas para os cultivos de sequeiro, os roçados e pastos sob responsabilidade masculina. Quando as infraestruturas hídricas têm maior capacidade, abarcando um hectare ou dois, os quintais se confundem com outros subsistemas e o desenho produtivo torna-se mais complexo e a própria divisão de trabalho é alterada, tornando-se mais compartida.
Tudo isso aponta para um processo de extensão rural (ATER) exigente em conhecimentos técnicos, mas sobretudo em métodos adequados. A busca das soluções para cada caso não pode ser feita de forma individual, o que tornaria a ATER impossível em uma escala de grande número de participantes. O método usado pelas ONGs de ATER agroecológica é o de organizar coletivos de mulheres que passam a discutir suas situações específicas e as escolhas técnicas a serem aplicadas em cada caso.
A troca de conhecimentos e de experiências é vital neste processo. O tamanho dos grupos não tem regras fixas e depende mais da disposição das mulheres, sendo que o ideal é formar grupos de vizinhança, tanto quanto possível, facilitando reuniões e visitas. Os grupos variam entre uma e duas dezenas, com a assistência de um(a) técnico(a) de ATER. Nestas experiências a presença de mulheres na ATER tende a facilitar o entrosamento dos grupos, mas isto não é uma exigência absoluta.
Temos que garantir o financiamento público da implantação dos sistemas, já que estamos lidando com um público classificado como de extrema pobreza. Entre estes custos estão: (1) obras de infraestrutura hídrica de captação e de distribuição de água, (2) cercas, (3) abrigos para animais, (4) equipamentos de bombeamento e distribuição de água, (5) carroças e/ou carrinhos de mão, (6) jegue para tração, (7) depósitos para armazenamento, (8) composteiras, (9) animais de criação (galinhas, porcos, ovelhas, vaca), (10) sementes de hortaliças, de capim, de adubos verdes, de milho, feijão, mandioca, outros, (11) mudas de frutíferas e outras árvores para lenha, carvão ou madeira, (12) arados, arreios e outros implementos, (13) pagamento de serviços de terceiros.
O custo de operação do sistema de quintais é muito menor. Por um tempo pode ser necessária a compra de esterco para adubar os vários subsistemas e, eventualmente, o pagamento de serviços de terceiros em algumas etapas do manejo dos quintais. A compra de produtos para confeccionar os controladores biológicos ou orgânicos e pragas também tem que ser incluído nestes custos de operação.
Não tenho o cálculo preciso destes custos neste momento (pretendo fazê-lo em breve), mas é claro que eles ultrapassam em muito o valor atribuído pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário no programa apresentado na Marcha das Margaridas, 1 mil reais por quintal.
Não creio que este financiamento possa ser feito através de crédito como o Pronaf. Este não é um público com acesso a bancos e é avesso a um endividamento formal. Se os recursos disponíveis forem insuficientes para todas as mulheres simultaneamente no formato de fomento, proponho que eles sejam doados para mecanismos de acesso sob o controle dos próprios interessados, como os Fundos Rotativos Solidários. Isto já funcionou, e muito bem, no financiamento das cisternas. O inconveniente é que o processo é mais lento, já que nem todas as interessadas poderão receber o benefício simultaneamente, algumas tendo que esperar que as primeiras beneficiárias paguem os seus empréstimos.
É importante notar que este crédito alternativo, não bancarizado, é perfeitamente aceitável por este público que, como já foi assinalado, tem aversão ao endividamento. Por ser um sistema sob controle dos próprios interessados e com regras estabelecidas por eles, fica superada a referida aversão.
Finalmente, é preciso incluir entre os custos o pagamento de salários e diárias para as agentes de ATER, bem como o custo das múltiplas reuniões dos coletivos de mulheres participantes do programa. Este custo das reuniões tende a ser bastante reduzido, mas a sua frequência pode torná-los significativos. Além disso, é comum estes processos coletivos mobilizarem a assessoria de mulheres agricultoras mais experientes, que transmitem seu conhecimento para as outras. isto significa, muitas vezes, remunerar estas assessoras populares para compensar o tempo dispendido a serviço do coletivo. Estas diárias tampouco representam, individualmente, muito recurso, mas se esta contribuição importantíssima ganhar espaço em um grupo, o custo aumenta na mesma proporção.
A formação de grupos de mulheres manejando quintais agroecológicos em vizinhança ou em comunidades enseja a possiblidade de se criarem empreendimentos coletivos para a produção de insumos, o que facilitaria o trabalho de cada uma. Entre estes podemos citar a criação de vetores para controle de pragas. A experiência cubana de construir pequenos laboratórios e criatórios de insetos benéficos é, sem dúvida, espetacular e deveria ser estudada e reproduzida no Brasil.
Estes empreendimentos são manejados pelos próprios agricultores, sem necessidade de uma presença técnica especializada permanente e tem um custo baixo de implantação (20 mil dólares) e manutenção. Em Cuba a dimensão destas “fábricas” de insetos varia segundo a densidade das comunidades, mas pode beneficiar centenas de produtores para cada uma delas.
Partindo do princípio de que cada grupo deveria estar ancorado em algum quintal já implantado que serviria de suporte/modelo para o processo coletivo, o potencial imediato deste programa seria de 300 mil quintais. Este cálculo se baseia na existência de uns 20 mil quintais e na formação de coletivos com uma média de 15 mulheres em cada um. Se consideramos que uma técnica(o) de ATER pode assessorar 5 coletivos, a demanda de assistência técnica vai ficar em 4 mil agentes.
Esta demanda vai ser mais pesada na fase de implantação dos sistemas e tenderá a ficar mais rarefeita na medida em que a operação vai progredindo. O tempo desta implantação não deve ultrapassar os dois primeiros anos. Depois disso estas técnicas de ATER poderão dedicar parte do seu tempo à criação de novos coletivos.
Esta grande demanda de agentes de ATER pode ser um entrave para um programa mais amplo desde o seu primeiro ano. Não existem tantos técnicos ou técnicas com experiência em agroecologia e muito menos em quintais agroecológicos no Brasil. Para se ter uma ideia do tamanho dos serviços de ATER atualmente, as Emater dispõe de 13500 extensionistas e as entidades da sociedade civil uns 2000, e apenas uma fração minoritária deste conjunto tem alguma experiencia em agroecologia. O programa teria que investir um tempo importante em formação de quadros, tanto em métodos quanto em técnicas.
Onde encontrar estas técnicas e técnicos de ATER? Três movimentos deveriam ser iniciados: (i) mobilizando as Emater dos Estados como parceiras do programa, (ii) mobilizando as entidades da sociedade civil (ONGs e organizações sociais como MPA, MST, MMC, CONTAG e CONTRAF), (iii) mobilizando o SEBRAE e o SENAR.
Finalmente, deveriam ser mobilizadas as Escolas Técnicas Federais e Universidades Agrárias em todos os Estados para que se incorporem ao programa, tanto para indicar potenciais técnicos participantes como para assumir programas de formação em ATER.
O ponto de partida deste programa poderia ser a sistematização das muitas experiências já em curso, de modo a produzir um manual orientador dos novos técnicos. Por outro lado, deverão ser organizados cursos de formação em todos os territórios onde já existam quintais e que deveriam ser os alvos de uma primeira concentração de esforços.
A envergadura deste programa, visando beneficiar (em quatro anos) 300 mil famílias ( e 1,2 milhão, em outros quato anos), vai exigir uma intensa colaboração com os movimentos sociais. A prática mostra que a mobilização das mulheres para participarem da proposta e a organização dos coletivos não pode ser feita sem uma forte liderança das organizações dos agricultores e agricultoras. Antes de ser lançado este programa deveria ser discutido com os movimentos sociais e garantir a sua participação na formulação final e na sua execução.
Por outro lado, as ONGs de ATER detém a maior parte do acervo de experiências de quintais agroecológicos e elas deveriam ser chamadas a participar da sua formulação e execução. Finalmente, o fato de que uma parte dos técnicos e técnicas deverá ser disponibilizada pelas Emater exige que estas entidades também participem da formulação e execução do programa. E não podemos esquecer que os objetivos deste programa o colocam na fronteira entre as obrigações do Ministério do Desenvolvimento Agrário e as dos ministérios do Desenvolvimento Social e do Meio Ambiente.
Embora esteja propondo este programa para o Ministério do Desenvolvimento Agrário, acredito que o agente executor deva ser o BNDES que tem menos entraves burocráticos no uso dos fundos sob seu controle. Isto já ocorre com o programa Ecoforte que poderia servir de modelo de gestão. Vantagem de se ter o BNDES como gestor está, sobretudo, em se colocar todos os recursos (investimentos, custeio, ATER, etc.) em um mesmo lugar. Se os recursos ficarem dispersos em vários departamentos do MDA, como crédito e ATER, o acesso fica mais complexo e demorado.
O acesso a estes recursos deveria ser por chamadas públicas para a apresentação de projetos que deveriam ser assumidos por consórcios de entidades incluindo, pelo menos, uma organização representativa do público-alvo em um ou mais dos territórios escolhidos pelo programa (um STR, uma Cooperativa, Associações Comunitárias, Associações de Assentados, outros) e uma entidade de ATER (Emater, organizações de ATER dos movimentos sociais, ONGs).
Vou ter que afinar e detalhar todos os custos indicados acima, de investimentos a apoio técnico e os de operação do processo de promoção do desenvolvimento. O custo mais alto deverá ser o das infraestruturas hídricas, em particular a cisterna calçadão (25 mil reais). Estimo que os outros investimentos dobrem este valor, chegando a 50 mil reais. Ou seja, um valor total de 15 bilhões de reais para as 300 mil beneficiárias.
Além dos investimentos nas infraestruturas e outros custos dos quintais o programa terá um custo importante nos serviços de ATER, que estou estimando em 400 milhões por ano.
Óbviamente, um projeto desta envergadura terá que ser escalonado em vários anos, até porque será necessário formar agentes de ATER em grande escala e isto não vai ser feito de uma só vez. Em um projeto de 4 anos, o custo total da ATER seria de 1,6 bilhões e o custo total do programa seria de 16,6 bilhões ou 4,15 bilhões por ano.
É muito dinheiro, mas lembremos que o Ministério do Desenvolvimento Agrário está gastando nove bilhões por ano só com a equalização dos juros subsidiados para financiar a produção de commodities para menos de 350 mil agricultores capitalizados. Com um custo menor do que a metade do gasto com o agronegocinho a cada ano o Ministério do Desenvolvimento Agrário proporcionaria um benefício fundamental a 300 mil famílias dentre as mais pobres do nosso campesinato, que sairiam do Bolsa Família.
O Ministério do Desenvolvimento Agrário pode deixar de ser o ministério do agronegocinho, uma pequena minoria capitalizada da agricultura familiar. Na verdade, este setor não preciso deste subsidio elevado. Ele está bem enquadrado na cadeia de produção de commodities de exportação e é capaz de produzir lucrativamente pagando as taxas de juros de mercado, abrindo caminho para que os parcos recursos do ministério sejam usados para beneficiar os mais pobres.
Além disso, este programa pode servir como base de formação de uma ampla capacidade de assistencia técnica voltada para a agroecologia e que será crucial para darmos um salto na difusão deste modelo produtivo em um próximo governo de Lula. Isto poderia começar com a extensão do programa de quintais agroecológicos para os 1,2 milhão de mulheres.
Se os custos para levar este programa para mais 1,2 milhão de famílias seriam 4 vezes maiores, a sua execução seria muito facilitada pela existência de 300 mil quintais que serviriam de modelo tanto para os novas beneficiárias como para os serviços de ATER.
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Política agrícola. Artigo de Jean Marc von der Weid - Instituto Humanitas Unisinos - IHU