24 Março 2023
"Não dá para tapar o sol com a peneira e aplaudir as FFAA por não terem dado o golpe que era pedra cantada depois da derrota de Bolsonaro. Sim, o golpe não foi dado. Mas isto não se explica por um comportamento respeitoso para com a democracia. Afinal de contas, o próprio comandante do exército peitou o ministro da Justiça e a polícia do DF, que buscavam prender os participantes do quebra-quebra na Praça dos Três Poderes e que tinham refluído para as portas do quartel general da força. 'Tenho mais tropa e poder de fogo', teria ameaçado o general, dirigindo-se para o comandante da PM. Sim, o caminhão foi freado na hora H, mas não por respeito à democracia. As motivações seriam a posição das FFAA americanas contra o golpe ou, mais rasteiramente, o medo dos generais de se meterem em um regime ingovernável que poderia atrapalhar o seu dolce far niente, com altos salários", escreve Jean Marc von der Weid, ex-presidente da UNE (1969-71) e fundador da organização não governamental Agricultura Familiar e Agroecologia (ASTA).
Esse artigo é a continuação dos textos "Os perigos que ameaçam o governo do presidente Lula", "A Armadilha (2)", "A Armadilha (3)", "A Armadilha (5)" e "A Armadilha (6)".
Segundo alguns analistas mais otimistas, nos episódios que semearam o governo do energúmeno e nos dias que se seguiram à sua derrota eleitoral, as FFAA se mostraram fiéis respeitadoras dos cânones republicanos e democráticos. A meu ver, esta interpretação pode ser comparada com o caminhão que corre desgovernado na direção de um precipício ser considerado confiável, porque freou no último momento antes de se estabacar no abismo.
As FFAA brasileiras não se mostraram republicanas nem democráticas desde que deram o golpe que instituiu a própria República. Quando não atuaram diretamente intervindo na política através de golpes e apoiando ou assumindo diretamente ditaduras, elas sempre foram uma sombra ameaçadora, pairando sobre o regime e as instituições.
Para não alongar o percurso de ameaças, pressões, golpes e tentativas de golpe lembro apenas do papel dos militares após terem se retirado do poder que controlaram pela violência mais bárbara, incluindo prisões, torturas e assassinatos. Já na Constituinte esta sombra pesou sobre os deputados e senadores, intervindo, notavelmente, na redação do famoso artigo 42. Segundo a versão dos próprios militares, controvertida pela análise da grande maioria dos juristas, este artigo dá às FFAA um “poder moderador” que justificaria legalmente uma intervenção se os outros poderes não estiverem de acordo.
Em outro momento chave da nossa história recente, o ultimato do general Villas Bôas (via twitter!) constrangeu o STF a votar contra o habeas corpus do Lula, o primeiro passo para levá-lo à prisão e torná-lo inelegível. Finalmente, os altos mandos das FFAA foram cúmplices da campanha do energúmeno contra as urnas eletrônicas, e protegeram os manifestantes que pediam o golpe militar na porta dos quartéis defendendo a “liberdade de expressão”.
Não dá para tapar o sol com a peneira e aplaudir as FFAA por não terem dado o golpe que era pedra cantada depois da derrota de Bolsonaro. Sim, o golpe não foi dado. Mas isto não se explica por um comportamento respeitoso para com a democracia. Afinal de contas, o próprio comandante do exército peitou o ministro da Justiça e a polícia do DF, que buscavam prender os participantes do quebra-quebra na Praça dos Três Poderes e que tinham refluído para as portas do quartel general da força. "Tenho mais tropa e poder de fogo", teria ameaçado o general, dirigindo-se para o comandante da PM. Sim, o caminhão foi freado na hora H, mas não por respeito à democracia. As motivações seriam a posição das FFAA americanas contra o golpe ou, mais rasteiramente, o medo dos generais de se meterem em um regime ingovernável que poderia atrapalhar o seu dolce far niente, com altos salários.
O governo Lula e, sobretudo, o judiciário, estão fazendo o possível para levar os golpistas à barra dos tribunais e o STF tomou uma importante decisão ao declarar que as investigações e o julgamento dos militares envolvidos na tentativa de golpe e na proteção aos golpistas sejam de responsabilidade da justiça civil e não da militar. É um princípio essencial o reconhecimento de que a justiça militar julga crimes militares, mas os crimes civis de militares são julgados pela justiça civil. Veremos até onde irá esta queda de braço e a hora da verdade vai ser a condenação dos generais implicados neste caso. O STF terá a coragem de enquadrá-los e condená-los? A generalada vai aceitar o resultado? O futuro do papel das FFAA no Brasil depende disto.
É preciso olhar o quadro mais amplo e o comportamento das FFAA desde a redemocratização. Fora do poder, mas blindados contra a cobrança de todos os seus crimes durante a ditadura, os militares se recolheram aos quartéis e às suas atividades profissionais, mas cultivaram o ressentimento contra o poder civil. Seguiram defendendo o seu papel de “libertadores” e “defensores do país contra as ameaças comunistas”. Seguiram despudoradamente comemorando o golpe de 64 em ordens do dia lidas em todos os quartéis, ano após ano. As autoridades civis engoliram estas provocações e olharam para o lado, fechando os ouvidos, mesmo nos governos de Lula e de Dilma.
A posição tímida, para não dizer intimidada, dos sucessivos presidentes da República desde o fim da ditadura, levou-os a fazer concessão sobre concessão para “acalmar a tropa”. O número de militares nas três armas subiu de 280 mil para 370 mil, em números redondos. O orçamento também cresceu, com os gastos com militares da ativa e da reserva chegando a mais de 80 bilhões. Quando se incluem na conta os outros gastos e os brinquedinhos de guerra (submarino atômico, caças suecos, tanques modernos) o orçamento das FFAA fica maior do que os dos ministérios da educação e da saúde somados. Não entram nesta conta todos os salários dos 8 a 12 mil oficiais contratados para cargos civis, durante o governo Bolsonaro, salários que foram adicionados aos que recebiam como militares. Segundo algumas fontes, perto de 1,6 mil oficiais recebem hoje salários/soldos superiores a 100 mil reais por mês. Pazuelo, o “especialista em logística” que mandou oxigênio para Macapá em vez de atender a urgente demanda de Manaus, embolsou 300 mil paus ao passar para a reserva. Um brinde de despedida?
E tudo isso para que, exatamente? Para que servem as FFAA? Teoricamente, a função desta gente é a defesa do território, mas elas foram utilizadas mais para reprimir movimentos republicanos, durante o império ou movimentos sociais como Canudos, Caldeirão, Contestado e outros menores nas primeiras décadas da República. Ou a Coluna Prestes. A única guerra em que lutamos na República, a Segunda Guerra Mundial, levou milhares de civis fardados, chamados de pracinhas, para lutar na Itália, depois de termos namorado o nazifascismo durante boa parte da ditadura de Getúlio. De lá para cá, as FFAA adotaram uma outra definição para a sua missão: no quadro da guerra fria pós o fim da segunda grande guerra, o objeto da ação dos nossos militares passou a ser a “defesa da democracia contra as ameaças comunistas”. Esta doutrina continua sendo vigente nos documentos oficiais das FFAA e foi usada para justificar tentativas de golpe e o próprio golpe de 64. Anacronicamente, ela segue sendo objeto da formação da oficialidade e do planejamento das três armas.
O caráter messiânico da postura da oficialidade os leva a acreditar que são a única força do país capaz de dirigir a nação para o futuro. E que futuro é este? Recentemente, os think thanks das FFAA elaboraram um projeto de país com metas até 2035. Contavam com a continuidade do governo de Bolsonaro para realizar a sua proposta, uma mistura de neoliberalismo misturado com conservadorismo nos costumes, destruição da legislação ambiental, já bem abalada, eliminação das reservas indígenas e quilombolas, militarização da educação e outras gracinhas fora do tempo e do lugar.
A politização das FFAA nunca deixou de acontecer, mas este período de bolsonarismo no poder levou este processo ao paroxismo. Centenas de oficiais passaram a se posicionar publicamente sobre temas políticos, através das redes sociais e em direta contradição com os estatutos militares. Muitos foram cursar as aulas do pretenso filósofo Olavo de Carvalho, consolidando um conjunto de posições reacionárias no conteúdo e antidemocráticas nas suas pretensões. Coronéis e outros oficiais abraçaram sem peias, os movimentos na porta dos quartéis, ignorando as regras de segurança destes estabelecimentos. Não por acaso, os movimentos civis bolsonaristas passaram a pressionar diretamente a oficialidade, clamando pelo golpe, quando se deram conta de que os generais, almirantes e brigadeiros estavam vacilando em tomar a iniciativa. Já escrevi sobre este processo em outros artigos para indicar que, só faltou unidade de ação entre a oficialidade média, para que chegassem a enquadrar seus superiores ou para atropelá-los para dar o golpe. A covardia de Bolsonaro deixou esta camada média da oficialidade sem liderança e faltou um general que fizesse o que fez o outro Mourão em 1964: botar a tropa nas estradas e forçar a mão dos generais comandantes. No momento presente, estes últimos se deram conta da resistência de boa parte da sociedade e da ameaça de isolamento internacional e contiveram a maré golpista.
E agora? Com uma ampla maioria de direitistas, muitos deles ainda bolsonaristas apesar da crescente desmoralização do “mito”, a oficialidade está na ponta dos cascos, esperando a volta do cipó, quer na legalidade quer na força. A limpeza na oficialidade, com o afastamento dos mais comprometidos com a intentona de 8 de janeiro, pode colocar a categoria na defensiva por um tempo, mas o fato de que cada troca de comando vai colocar no topo da carreira oficiais mais engajados na linha da intervenção “salvadora da nação” nos leva a crer que teremos crise sobre crise nas relações com os militares. E não vai adiantar a tática adotada nos governos de FHC, Lula e Dilma, cedendo às pressões para desarmar crises. Lula já engoliu um sapo enorme ao ceder às pressões da Marinha para afundar o porta aviões envenenado, confessadamente por amianto e, secretamente, por material radioativo. O IBAMA se posicionou contra e Marina, discretamente, também. Mas Lula, em crise com o exército, não quis abrir outro foco de embate. Na aeronáutica também há problemas se acumulando, com acusações de compra de aviões sem concorrência. Está tudo por baixo dos panos até agora, mas os casos virão à tona cedo ou tarde. Ceder aos militares não tornará Lula palatável para a oficialidade. Só vai acirrar o ímpeto de provocações e chantagens.
A discussão sobre o papel das FFAA na atualidade mundial e nacional tem que ser aberta na sociedade e no Congresso, mas a composição deste último não permite supor que se possa começar uma transição reduzindo o tamanho das nossas forças armadas e dirigindo o seu papel para a garantia da legalidade.
Vai haver uma prova dos nove, muito provavelmente no momento do acionamento das FFAA para controlar as atividades criminosas na Amazônia. Como já apontei antes, eliminar o garimpo ilegal controlado pelas facções criminosas (CV, PCC, AdA, outros) vai exigir uma operação incluindo as três armas, possivelmente com choques armados nos rios e nas matas da fronteira norte. Como vão se comportar as três forças?
Eliminar o comportamento político das FFAA é tarefa para mais de um governo, mas os passos tem que ser dados desde agora. O novo comando do exército adotou um discurso republicano e profissional e, na aparência, está tratando de disciplinar a oficialidade, eliminando as manifestações políticas públicas. É importantíssimo, mas não controla a conspiração inter pares, feita dentro dos quartéis. É água represada, mas a pressão pode continuar se acumulando na surdina. Qualquer fragilização do poder civil nestes quatro anos pode fazer o dique da contenção disciplinar vir abaixo. É mais uma ameaça, e das grandes, para o governo Lula.
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A armadilha (4). Artigo de Jean Marc von der Weid - Instituto Humanitas Unisinos - IHU