24 Junho 2024
"É o capitalismo no seu estado mais puro, o capitalismo que por hipocrisia chamamos de selvagem, mas que em definitiva é a matriz da nossa riqueza", escreve Pino Corrias, jornalista, escritor, roteirista e produtor de televisão italiano, em artigo publicado por il Fatto Quotidiano, 21-06-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
O braço cortado pela máquina que tritura. O sangue misturado com os tomates recém colhidos. O escravo agora inútil, abandonado diante da sua casa, na civilizada Itália, na província de Latina, capital do trabalho informal, com o braço amputado jogado na caixa das verduras, largada ao seu lado, Satnam Singh, indiano: o braço é propriedade dele, que fique com ele, que fique olhando o tempo que quiser para ele, enquanto sangra até morrer.
É o capitalismo no seu estado mais puro, o capitalismo que por hipocrisia chamamos de selvagem, mas que em definitiva é a matriz da nossa riqueza. Os noticiários o repassam, nu e cru na sua ferocidade que nos atordoa, por ter sido um homicídio cometido com a lentidão do sangramento e o gesto ignóbil de abandono que o torna, pela primeira vez, diferente e pior que as outras vítimas do trabalho - também elas despedaçadas pelas máquinas, esmagadas por um pilar, caídas no vazio - que acumulamos três vezes ao dia nos noticiários, mais de mil por ano. Por que desta vez não é o único ponto. Desta vez até a imagem é insuportável, mas perfeita “como um diamante de luz” como diria o Coronel Kurtz na escuridão de seu Coração das Trevas, da exploração do homem sobre o homem até o homicídio, o que o torna possível. É o poder do homem sobre o mundo, em troca da riqueza, que não admite ser contestado, considerando-se o senhor de todos os seres vivos úteis, das crianças enfiadas nos túneis para cavar as terras raras para os nossos carros elétricos, das mulas cegadas para trabalhar na escuridão das minas. Ou recrutando gerações inteiras de soldados para cavar as trincheiras de todas as guerras a serem travadas pela propriedade de uma jazida, pelos lucros geopolíticos de vitória, incluindo aqueles da reconstrução em nome e por conta de Sísifo, o herói do absurdo eternamente contemporâneo.
Homens patrões sem moral, sem piedade. Isso é o que sempre fomos e continuamos a ser mesmo sob a crosta das nossas sociedades evoluídas, onde cultivamos direitos civis, humanos, políticos, sindicais, os vemos desabrochar, os protegemos, fingindo não notar o puro horror que está ao nosso lado, capaz de explorar o corpo do escravo a ponto de cancelá-lo. Da abismal insensibilidade à vida do outro, dos outros, quando ousam atrapalhar uma nossa vantagem, e especialmente o nosso direito de crescimento ano após ano, sem nunca parar. Sempre disponíveis a inflamar e prolongar todas as guerras até transformá-las num conteúdo habitual da nossa balanceada dieta midiática, que inclui receitas culinárias e de moda, amostras de sexo, as idiotices dos influenciadores, todos equivalentes entre si, ou complementares, pois sempre presente entre os serviços do nosso insone entretenimento narrativo.
Somos o vidro sobre o qual aqueles horrores escorrem como a água quando chove. É apenas a distância do nosso guarda-chuva, enquanto as imagens do Hamas cortando a garganta de 1.200 homens, mulheres, idosos, crianças depois de ter aberto uma brecha nas cercas do inimigo judeu, o tempo de correr para dentro do território do ódio e cortar a garganta de tudo o que está vivo e se move. Cada ser vivo um objetivo e uma vingança.
Que a partir daquele 7 de outubro despenca no infinito catálogo de ferro e fogo da reação israelense que multiplica por cem a punição, por mil o massacre. Cada ser vivo em Gaza um terrorista ou um dano colateral. Aquela também é uma guerra selvagem e, ao mesmo tempo, guerra em toda a sua pureza. Enquanto nós ainda pretendemos distinguir entre as armas permitidas pelas convenções e aquelas proibidas, a fósforo nas balas ou a fome nos campos de concentração. Talvez esperando ver, em outra latitude, se a solução da “bomba nuclear tática” se tornará realidade, seja lá o que isso queira dizer, a ser detonada ao longo dos 1.576 quilômetros de fronteira entre a Rússia e a Ucrânia.
Explica o Coronel Kurtz, criado pela tinta de Conrad, “que é preciso ter homens capazes de usar seus instintos primordiais para matar sem emoção, sem paixão, sem discernimento”.
Porque “o horror tem um rosto e é preciso ser amigo do horror”. A ponto de suportar sua “pura, cristalina verdade”.
Nós temos aqueles homens, somos nós.
Até mesmo dispostos a alegrar-nos pela elegância das cúpulas convocadas pelos nossos chefes – como acabou de acontecer - na pequena Disneylândia do G7, com a sua espetacular teoria de vértices, degustações, passeios, jogos, música, circundados por um aparato de segurança de 10 mil homens armados, drones e satélites, enquanto os barcos afundam no azul do alto mares com sua carga de seres vivos inúteis e um escravo qualquer abandonado no chão, diante de casa, morre na companhia do seu braço decepado.
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Braços decepados e mortos no mar: escravos na pureza. Artigo de Pino Corrias - Instituto Humanitas Unisinos - IHU