21 Junho 2024
"Para a Igreja italiana ainda é tempo de refletir, de aprofundar e, seguindo o impulso do Espírito, de mudar", escreve Francesco Cosentino, teólogo, professor de Teologia Fundamental na Pontifícia Universidade Gregoriana, de Roma, e membro da Secretaria de Estado do Vaticano, em artigo publicado por Vita Pastorale, e reproduzido por Settimana News, 20-06-2024.
Dez anos se passaram desde o primeiro documento do Papa Francisco, Evangelii gaudium (EG). A exortação apostólica, que na verdade é também inovadora no seu gênero e estilo literário, tem a sua primeira conquista teológico-pastoral na recentragem da identidade e da missão da Igreja no essencial, que é o anúncio do Evangelho.
A mensagem é clara desde o início:
A Alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus. (...) Quero, com esta Exortação, dirigir-me aos fiéis cristãos a fim de os convidar para uma nova etapa evangelizadora marcada por esta alegria e indicar caminhos para o percurso da Igreja nos próximos anos (EG 1).
Somos então convidados a perguntar-nos se a transformação necessária para recolocar o Evangelho no centro, redescobrir a alegria da fé e enfrentar os desafios presentes e futuros do cristianismo foi verdadeiramente desencadeada na Igreja italiana.
A Evangelii gaudium tem o mérito de destacar uma necessária conversão pastoral da Igreja, numa perspectiva evangelizadora e missionária. Desde o primeiro capítulo, o Papa exorta-nos a mudar a mentalidade pastoral, para que a Igreja se torne “em saída” (cf. EG 20).
Trata-se de passar de uma simples pastoral de conservação a uma pastoral missionária que não deve ser obcecada pela transmissão desarticulada de doutrinas, mas sim concentrar-se "no essencial, no que é mais belo, mais importante, mais atraente e, ao mesmo tempo, mais necessário” (EG 35). E isto exige abandonar os critérios pastorais que visam apenas preservar a existência, para “repensar os objetivos, as estruturas, o estilo e os métodos evangelizadores das respectivas comunidades” (EG 33).
Em várias dioceses e em vários territórios italianos, encontram-se pequenas e grandes comunidades que foram postas em movimento pela Evangelii gaudium e podem-se vislumbrar alguns sinais encorajadores: uma renovada vivacidade do Povo de Deus, o desejo de aprofundar a fé para além das suas formas convencionais e devocionais, algumas tentativas corajosas de inovação em linguagens e práticas pastorais; ao mesmo tempo, porém, parece que o amplo âmbito em que o documento pretende introduzir toda a Igreja é retardado por uma certa timidez na sua recepção e por uma certa ansiedade em identificar caminhos e ferramentas úteis para a mudança.
Poderíamos dizer que há um início de conversão pastoral, mas permanecem algumas questões sobre as quais seria útil refletir precisamente à luz da novidade que emerge da Evangelii gaudium.
Uma primeira questão é a leitura parcial da realidade, que às vezes impede que a exortação do Papa Francisco desencadeie verdadeiras transformações. Esta é uma leitura do contexto sociocultural que, de fato, afirma a existência de um substrato católico e cristão global, tanto que não é necessária nenhuma mudança verdadeiramente radical.
O passo que a Evangelii gaudium talvez nos pede é precisamente este: convencer-nos da necessidade de uma evangelização essencial a partir da consciência de que o tempo do cristianismo acabou e do húmus cristão das famílias e da sociedade que, no passado, garantiu uma certa transmissão da fé.
Isto colocaria especialmente os pastores e os agentes pastorais em movimento na direção de uma renovação do "modelo paroquial", que geralmente prossegue com a sua pastoral clássica e tradicional, encontrando-se com pouca energia e pouco espaço para o anúncio do Evangelho àqueles que estão ausentes ou precisam redescobrir a fé de uma nova maneira.
Nesta perspectiva, a segunda questão diz respeito à crise da transmissão da fé, que exige um novo modelo de comunidade já não centrado no ministério do sacerdote, mas capaz de um envolvimento eficaz e responsável dos leigos, para que a renovação pastoral possa gerar novos espaços de anúncio do Evangelho e propostas inovadoras para quem está distante e indiferente à fé.
O Papa escreve, entre outras coisas: "Sonho com uma opção missionária capaz de transformar tudo, para que os costumes, os estilos, os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial se tornem um canal proporcionado mais à evangelização do mundo atual que à autopreservação" (EG 27).
Este sonho, porém, exige uma nova forma de presença eclesial no território e, sobretudo, uma nova centralidade da Palavra de Deus e uma evangelização capaz de promover um encontro vivo com Jesus.
No entanto, tal mudança exige - terceira questão - uma renovação das linguagens da espiritualidade e da pastoral, que não diz respeito apenas às técnicas de comunicação, mas a tudo o que diz respeito aos estilos, às posturas, aos gestos, às palavras do anúncio, ao que, por vezes, pode ser moralista, enfadonho, opressivo, preso na tentação de reduzir a força libertadora do Evangelho a uma série de regras a observar ou a formas de piedade sentimentalistas e devocionais.
Então, qual Palavra realmente anuncia o Evangelho? Qual palavra consegue realmente comunicar a beleza da Boa Nova, cujo centro é “o Deus que manifestou o seu amor imenso em Cristo morto e ressuscitado” (EG 11)?
O Deus que Jesus nos revelou é, como Bonhoeffer escreveu lindamente, aquele que
(...) onde os homens dizem “perdido”, aí ele diz “salvo”; onde os homens dizem "não", aí ele diz "sim"... Onde na nossa vida acabamos numa situação em que só podemos ter vergonha diante de nós mesmos e diante de Deus, onde pensamos que até Deus deveria estar agora vergonha de nós, onde nos sentimos longe de Deus como nunca antes na vida, ali mesmo Deus está perto de nós como nunca antes. Ali ele quer irromper na nossa vida, ali nos faz sentir a sua aproximação, para que compreendamos o milagre do seu amor, da sua proximidade e da sua graça [1].
É este o Deus que é anunciado e pregado nas nossas igrejas e cujo rosto bendito e abençoador emerge das nossas práticas pastorais? Talvez não devêssemos admitir isso
(...) talvez tenha chegado o momento de abandonar muitas daquelas palavras piedosas que temos continuamente nos nossos lábios e nas nossas bandeiras. Estas palavras, devido ao uso contínuo, muitas vezes demasiado superficial, desgastaram-se, desgastaram-se, perderam o sentido e o peso, tornaram-se vazias, tornando-se leves e fáceis. Outros, porém, estão sobrecarregados, rígidos e enferrujados; tornaram-se demasiado pesados para poder expressar a mensagem do Evangelho, a boa nova [2].
São questões, desafios e questões abertas, que certamente não pretendem obscurecer tudo o que há de bom e de belo, na esteira da Evangelii gaudium, que também surgiu na Itália nos últimos anos. No entanto, querem exortar-nos, segundo as mesmas palavras que o Papa Francisco dirigiu aos seus irmãos jesuítas no dia 24-10-2016:
Acredito que a Evangelii gaudium precisa ser explorada com maior profundidade, que precisamos trabalhá-la em grupos de leigos, sacerdotes, nos seminários, porque é o ar evangelizador que a Igreja quer ter hoje. Precisamos avançar nisso... Recomendo a Evangelii gaudium, que é uma estrutura... A Evangelii gaudium é a estrutura apostólica da Igreja hoje.
Para a Igreja italiana, portanto, ainda é tempo de refletir, de aprofundar e, seguindo o impulso do Espírito, de mudar.
[1] D. Bonhoeffer, Riconoscere Dio al centro della vita, Queriniana, Brescia 2004, 12s.
[2] T. Halík, Pazienza con Dio, Vita e Pensiero, Milano 2020, 23.
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A alegria do Evangelho e os desafios a enfrentar. Artigo de Francesco Cosentino - Instituto Humanitas Unisinos - IHU