01 Junho 2024
"Todas as obras que fazemos para colocar em prática os sinais da nossa fé não são nada se não formos tocados, curados e transformados pelo Senhor. No momento da celebração eucarística paramos a nós mesmos, paramos as nossas palavras, paramos as nossas obras, a Igreja para aqui. Do Papa ao último batizado de ontem há um momento, o da santa liturgia, em que a Igreja se detém para confessar que não é ela quem salva, que não é ela quem revela, que não é ela quem cura, que não é ela quem nos conduz ao limiar da cidade de Deus", escreve o teólogo e padre italiano Pierangelo Sequeri, ex-presidente do Pontifício Instituto Teológico João Paulo II para as Ciências do Matrimônio e da Família (2016-2021) e consultor do Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida, em artigo foi publicado por Settimana News, 26-05-2024.
Gostaria de expressar a minha gratidão pela honra que me concedes ao presidir esta celebração, pela hospitalidade desta Basílica, e esta hospitalidade faz-me imaginar que, talvez, poderei regressar à terra dos meus pais. Ao celebrar a missa aqui, quase sinto que recebo o compromisso de que poderei terminar o descanso aqui, na minha Igreja, na nossa terra. As Ursulinas, aliás, são uma espécie de segunda família do ponto de vista eclesial, por isso gostaria de vos dirigir alguns pensamentos inspirados na Palavra de Deus, sabendo, no entanto, que estais em confiança com esta Palavra.
A primeira palavra, o primeiro pensamento diz respeito precisamente a esta antiga leitura sobre o anúncio do ano jubilar: o ano da pausa, o ano em que as preocupações devem ser limitadas. Estes muitas vezes, durante anos normais, assumem as preocupações certas, tornam-se preocupações, tornam-se uma ganância inconsciente por resultados, por desempenho, por crescimento. Queremos fazer do “crescimento” a palavra de ordem.
Estamos numa condição eclesial em que este risco se aproxima e é também proporcional às coisas boas, proporcional a um certo despertar, e o desejo de despertar foi o Vaticano II. Agora há o despertar da comunidade, da sua laboriosidade, da sua capacidade de testemunho, da sua mais evidente fraternidade de exercício: uma comunidade que não depende apenas do exercício de ordens, uma comunidade que cria por si mesma, com o ajuda do Espírito, espaço da vida no Senhor, espaço do testemunho do Evangelho.
E isso torna o risco proporcional, o risco de preocupação. Sou um padre idoso, por isso posso permitir-me algumas palavras bastante fortes. Somos bem intencionados e dispostos a uma certa diligência mas, nos últimos anos, também estamos muito histéricos. Também estamos muito tensos. Com uma espécie de preocupação com o nosso faturamento, digamos, com o nosso desempenho; na verdade, enrijecidos, enervados pelos sinais negativos: não há mais padres, não há mais freiras, não há mais vocações...
E assim, como é inevitável, se você fica histérico, você também fica briguento; e mesmo para pequenas coisas, coisas que às vezes beiram o ridículo. E isto, apesar da aparência e da retórica do nosso despertar, paralisa uma comunidade cristã, paralisa uma vocação cristã. Ficamos mortificados com brigas de rua reais, entendeu? Brigas são como fofocas, porque mesmo sendo monsenhores são fofoqueiros. Isso não ajuda, isso entra na alma, isso entra no inconsciente, isso paralisa também os músculos faciais: essa tensão é percebida.
Eis então, nesta perspectiva, o convite a abraçar o espírito do jubileu. Significa, antes de tudo, privilegiar de coração, até na prática, até na evidência, a parte felizmente inativa do nosso seguimento cristão, da nossa vocação, do nosso testemunho cristão.
Fé e Eucaristia
E esta celebração que estamos a realizar, a celebração da Eucaristia, é a imagem mais precisa do ato de fé, do que significa o ato de fé, e é uma imagem perfeitamente eloquente mesmo para quem não vem à igreja ou que não sabem mais nada sobre o Evangelho. É física e espiritualmente a realização do ato de fé, porque o ato de fé – no qual estamos pendurados – na sua raiz, no seu fundamento, no seu princípio, na sua norma tem o fato de Jesus nos falar, de que Jesus nos toca, Jesus nos cura, Jesus nos lava, Jesus nos perfuma...
O ato de fé significa expor-se ao contato com Jesus: “Só tu tens as palavras de vida eterna”, “Só tu, se me tocares, podes curar-me”. É o que acontece aqui, e no momento em que acontece confessamos ao mundo que todas as nossas palavras com que tentamos explicar o Cristianismo, que são indispensáveis – até o jubileu fazem sentido, porque há uma vida normal em que os campos são cultivados e os animais são manejados –, porém, não podem acrescentar um grama à substância e à força da fé, à força da fé em nós e nos outros, se cada vez, no devido tempo, não pararmos para ouvir o Senhor, não nos movemos para sermos tocados pelo Senhor novamente.
E todas as obras que fazemos para colocar em prática os sinais da nossa fé não são nada se não formos tocados, curados e transformados pelo Senhor. No momento da celebração eucarística paramos a nós mesmos, paramos as nossas palavras, paramos as nossas obras, a Igreja para aqui. Do Papa ao último batizado de ontem há um momento, o da santa liturgia, em que a Igreja se detém para confessar que não é ela quem salva, que não é ela quem revela, que não é ela quem cura, que não é ela quem nos conduz ao limiar da cidade de Deus.
Acredito que esta coisa deve encontrar novamente a sua força; e para recuperar a sua força, talvez, terá que voltar a ser na nossa intenção a mensagem que enviamos, o ato a olhar. Você quer saber o que significa ser um crente e seguir o Senhor e esperar tudo dele? Venha para a missa! Para um futuro próximo, creio, deveríamos querer encher-nos de mulheres samaritanas, de “zaqueus”, de cananeus, de cobradores de impostos, de leprosos... Queres saber o que é o ato de fé, queres saber o que significa colocar-se diante do Senhor com a emoção de ser tocado por Ele, de ser falado por Ele, de ser olhado por Ele? Venha para a missa.
Na história da celebração tivemos indicações generosas sobre isto, que é hora de guardar: há um desenvolvimento eclesial material do dogma eucarístico, do sacramento eucarístico, e diante dos nossos olhos ele foi gerado na intimidade da comunidade dos discípulos, mas destinada a muitos, a todos, como dizemos nas palavras da consagração. E, de fato, na história do cristianismo a massa tornou-se isto; e quando deixou de ser assim, nos encontramos em quatro gatos, pensando que tínhamos selecionado uma espécie dura e pura de verdadeiros crentes que sabem o que é a Eucaristia: um movimento generoso pelo qual seremos perdoados, mas errado.
Na tradição das solenidades importantes dos nossos bairros, a alegria da comunidade e da sua celebração foi dada pelo fato de nela participarem praticamente todos; mas todos se referiam também ao prefeito ateu, ao marechal agnóstico, ao médico incrédulo e tantos outros que não participaram da vida de seguimento dos discípulos, mas foram como que atraídos pela ideia que está justamente nestes momentos – ou seja, além de todas as diferenças – que se forma uma comunidade e quem a forma – quem vai à igreja e vai à missa sabe muito bem disso – é Jesus. E é isso que dizemos, que é a nossa profissão de fé.
O segundo pensamento diz respeito precisamente à vocação religiosa, à vocação do discípulo, daquele que é chamado a segui-la. Jesus não percorre os bairros da Terra Prometida ansioso por recrutar militantes; ele escolhe os que quer e cura os outros, como diz no Evangelho: "Vá e conte a João o que você vê"…
Então está chegando um tempo, na minha opinião – então não reclame se vocês são poucos – está chegando um tempo, e está chegando em breve, em que aquilo que chamamos de religiosos (aqueles, homens e mulheres que levam o sinal de uma consagração ) serão quase tudo o que a Igreja terá, e eles, por sua vez, não terão uma Igreja grande, pois outrora, que os sustentará, não terão um grande aparato.
Mas precisamente assim a nossa anomalia tornar-se-á tão forte, tão eloquente, tão provocadora: porque é uma anomalia, uma anomalia que o Senhor nos pediu... Portanto, não pestanejamos, a sua força será multiplicada pela a fraqueza dos sistemas, será ainda mais evidente, porque não haverá mais aqueles: “Você vê a igreja, ela segue as suas políticas...”; "O que querem as instituições? O que o papa quer? Qual é o objetivo dos bispos? Quais são os objetivos do clero que procura dirigir, orientar?”… Estas questões tornar-se-ão muito mais leves, tornar-se-ão muito marginais.
A questão do dia será: "Mas quem leva estes homens e mulheres a fazê-lo? E eles também envelhecem por dentro e não desistem, mas quem os faz fazer isso?"... E esta pergunta abrirá o caminho da fé dez vezes mais do que todos os aparatos que colocamos para tentar para torná-lo, como dizem hoje, “relevante”. "Relevante"! Por outro lado, estes são tempos de mercado e a concorrência exige marketing e, por isso, também nós nos adaptámos um pouco, pelo menos na linguagem. Mas a verdadeira questão será: “Quem o obriga a fazer isso?”.
É aqui mesmo, onde já não há justificação para lugares, onde não se tem nada, como as nossas cidades de há cem anos onde diziam: "Bom, o menino ou a menina acabou lá porque comem lá, porque lá eles pode estudar, porque lá tem alguém que cuida deles, porque lá eles conseguem um cargo, então vira freira, vira padre"...
Sabemos que já não é assim, mas será cada vez menos. Vivemos em países onde você pode comer e estudar facilmente; então, quem os faz fazer isso? Assim, por si só, cada um de nós, mesmo sendo velho, talvez se sinta um pouco emocionado, questionado por esta pergunta e não se sinta sobrecarregado pela passagem da idade, mas antes ficará feliz com ela.
A Palavra nos diz hoje: “Alegrai-vos, porque hoje estamos mais perto da salvação do que quando começamos”. Aqui, nós, idosos com esta anomalia do Senhor, daremos este testemunho. Sim, porque chegamos ao essencial e compreendemos ainda melhor, estamos ainda mais próximos, porque a vida é assim, aproxima-se do essencial, para todos.
E assim entendemos, e também diminuímos muito as nossas preocupações, as nossas histerias, as nossas discussões de corrimão, e conseguimos espalhar uma certeza serena: estamos mais perto, agora é a sua vez de chegar lá. Estamos mais próximos do que quando começamos. Nós, que nos afastamos do tempo do enamoramento, em que nos entusiasmávamos – e da primeira comunhão, da ordenação, etc. e agora... –, agora nada!
Comparados com as coisas daquelas crianças, estamos agora mais próximos do que quando partimos, porque somos capazes de dar todo o peso a este apelo e ao seu testemunho, de dar toda a provocação à sua anomalia, de questionar com a simples presença física; e portanto não é necessário que sejamos dezenas de milhares para isso, basta apenas um: com a nossa presença física podemos testemunhar o que esta Palavra faz, que promessa ela nutre, que amor ela permite distribuir, que encantamento é capaz de um homem ou de uma mulher que teria mil outras possibilidades.
E este será um lindo testemunho; a Igreja, talvez, terá que vender algumas igrejas que são redundantes, mas nós não nos venderemos. Não estamos à venda, ele não nos comprou, não nos vende e poderemos (simplesmente porque o Senhor nos chamou e porque adoptámos um estilo de vida algo anómalo, correspondente ao chamado, algo desproporcional às exigências da vida) para levantar a questão à qual Jesus responde, mostrando o que acontece.
Graças a esta anomalia, muitos percebem e estão convencidos de que podem ser curados pelo Senhor, mesmo que não sejam chamados a fazer parte da consagração do discipulado. E poderíamos ser mais felizes interiormente com uma experiência como esta, de ter visto o Senhor transformar a mandíbula do nosso burrinho, mesmo um pouco torto, não o melhor, num ponto de força desta proporção, desta profundidade. Estou convencido de que o Senhor nos guiará neste caminho e que abençoará os passos de vocês que desejam segui-lo neste mesmo caminho.
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Vida religiosa: tudo o que a Igreja terá. Artigo de Pierangelo Sequeri - Instituto Humanitas Unisinos - IHU