16 Mai 2024
"Construímos este livro a partir de diálogos que gravamos no começo de 2021 e, posteriormente, atualizamos. Na verdade, parece que se passaram décadas de lá para cá. Isso faz parte de nosso tema! A política pode, às vezes, se arrastar. Temos a impressão de que estamos repetindo sempre os mesmos problemas", escrevem Alberto Carlos Almeida e Renato Janine Ribeiro, autores do livro A Política como ela é, em artigo publicado por A Terra é Redonda, 06-05-2024.
Alberto Carlos Almeida é cientista político, jornalista e escritor. Autor, entre outros livros, de A cabeça do brasileiro (Record). Renato Janine Ribeiro é professor titular aposentado de filosofia na USP. Autor, entre outros livros, de Maquiavel, a democracia e o Brasil (Estação Liberdade).
Alberto Carlos Almeida & Renato Janine Ribeiro. A política como ela é: Diálogos entre Alberto Carlos Almeida e Renato Janine Ribeiro. Rio de Janeiro, Difel, 2024, 252 págs. (Reprodução: A Terra é redonda)
Trechos selecionados pelos autores do livro recém-publicado.
Este livro pretende atender a uma demanda e uma necessidade: de que especialistas na política falem sobre ela, sem disfarces ou complicações, o mais perto possível de sua realidade. Uma coisa que perturba muito nosso avanço democrático é que a maior parte dos cidadãos sabe pouco sobre a política. Uns dizem que é apenas assunto de corruptos – e por conta disso desistem de atuar, o quanto podem, para melhorá-la. Outros esperam que a política resolva tudo – até unha encravada, como diz a piada, ou que traga seu amor de volta em cinco dias. Claro que isso não é possível.
Temos formação e atuação diferentes. Eu, Renato Janine Ribeiro, sou filósofo. Sempre gostei de política e de história. Na filosofia, trabalho com a filosofia política, que trata sobretudo dos grandes, enormes temas – como democracia, representação, soberania. Mas, justamente por gostar de política, me interesso em saber como tudo isso funciona, para além da teoria. Na verdade, o papel da teoria não é mandar no mundo real, é entender o que ele é, em que consiste a prática da política.
E, por gostar de história, gosto de ver como as coisas se realizam. Além de meus trabalhos sobre filosofia política, fui Ministro da Educação, o que me permitiu perceber certas dificuldades, quando um governo se defronta com falta de dinheiro e hostilidade parlamentar, e também algumas possibilidades, quando aprendemos o que podem fazer, de bom, políticas públicas bem focadas.
Eu, Alberto Carlos Almeida, sou um engenheiro das ciências sociais. Em que pese o fato de ter iniciado o curso de graduação em engenharia e não ter concluído, creio ter levado a forma de raciocinar desta disciplina para a ciência política e sociologia: a constante busca pelo rigor analítico e por evidências empíricas que sustentem minhas afirmações. Tive a felicidade de concluir o doutorado em ciência política, tornar-me professor universitário (e deixar de sê-lo), especializar-me em pesquisas de opinião pública — o que me obriga e permite ouvir o outro, um outro espalhado por todo o Brasil, de diferentes regiões e classes sociais – e de conviver com os mais diversos públicos da elite brasileira: intelectuais, empresários, participantes do mercado financeiro, políticos e jornalistas.
Meu aprendizado é constante e diário, o que com frequência me leva a rever minhas visões e afirmações. Minhas palavras neste livro são resultado desta trajetória que sempre desafiou, e continuará desafiando, minha maneira de ver o mundo.
Construímos este livro a partir de diálogos que gravamos no começo de 2021 e, posteriormente, atualizamos. Na verdade, parece que se passaram décadas de lá para cá. Isso faz parte de nosso tema! A política pode, às vezes, se arrastar. Temos a impressão de que estamos repetindo sempre os mesmos problemas. Quem viveu a forte inflação brasileira, que durou dos anos 1970 até os 1990, e foi um dos principais legados da ditadura à democracia, entenderá essa sensação de que os esforços são sempre frustrados. E em outros tempos, o relógio da história se acelera. Pois, entendendo melhor a política – e também a nossa política – será possível compreender melhor este ponto, e saber como agir na política.
A ciência política, assim pensam muitos, nasceu com Maquiavel. O pensador florentino do século XVI ficou com uma imagem péssima. Muita gente sabe, dele, apenas que “os fins justificam os meios”. Mas ele nunca disse isso! Ou seja, muita gente não sabe nada dele. O que Maquiavel procurou foi entender como a política funciona. É chocante, às vezes. Mas é o caminho. Para melhorar a política, há que se fazer política.
Mas podemos comparar os males da política às doenças. Um cientista, quando procura a cura para uma moléstia, tem de entendê-la. Ele vai explicá-la. Mas isso não quer dizer que ele a aprove! Só que, sem esse estudo, jamais teríamos vencido tantas doenças. Está mais que na hora de entender que problemas sérios, graves, exigem conhecimento. A corrupção, por exemplo. Se não entendermos quais são as suas causas, jamais vamos superá-la.
Esperamos, por fim, que você, nossa leitora ou leitor, aprecie este livro, e que ele lhe dê elementos para viver melhor a política – seja como político, seja como cidadão.
Alberto Carlos Almeida: Antes de começar a abordar o sistema presidencial de governo, o presidencialismo, dentro do qual o Brasil vive desde a instauração da República, gostaria de fazer uma breve comparação entre presidencialismo e parlamentarismo. Nesse sentido, considero importante refletirmos sobre a fonte da legitimidade nos dois sistemas.
Em primeiro lugar, qual é a fonte de legitimidade do poder exercido pelo chefe de governo no presidencialismo? O voto popular. Com exceção do sistema eleitoral formado por colégios eleitorais, como é o caso dos Estados Unidos, no presidencialismo o povo vota sempre diretamente no presidente da República. Mesmo no caso norte-americano – em que o povo elege um colégio eleitoral –, [i] a fonte da legitimidade ainda é o povo: pelo voto popular, é a população quem elege um colégio eleitoral para intermediar a escolha por um presidente. Ou seja, a fonte da legitimidade será sempre o voto popular no presidente.
Assim, se compreendermos “legitimidade” como sinônimo de “consentimento”, entenderemos que a sociedade consente ser chefiada pelo presidente. De modo, portanto, que a fonte do consentimento é a escolha da sociedade. No presidencialismo, há diferentes fontes de consentimento, ou seja, votos diferentes: para chefiar o Poder Executivo, votamos em um presidente; para o exercício do Poder Legislativo, votamos em um deputado federal, por exemplo, e em um ou dois senadores. Cada voto, uma fonte de legitimidade distinta, um consentir diferente.
Por outro lado, no parlamentarismo, a fonte de consentimento e, portanto, de legitimidade, será a mesma tanto para o deputado quanto para o chefe de governo – o primeiro-ministro. Enquanto, no presidencialismo, diferentes votos consistem em diferentes fontes de legitimidade, no parlamentarismo, o cidadão, ao votar em um deputado, vota também para a formação do governo inteiro. Com um único voto, ele escolhe tanto o Poder Legislativo quanto o Poder Executivo. [ii] E dessa distinção entre os dois sistemas de governo derivam outras diferenças.
Renato Janine Ribeiro: Exatamente. E acrescento outra reflexão: quando falamos em presidencialismo, e sobre as diferenças entre presidencialismo e parlamentarismo, estamos falando sobre o que exatamente? Sobre democracia.[iii] Presidencialismo e parlamentarismo são as duas principais formas de organização das democracias.
Por razões que serão discutidas mais adiante, [iv] o continente americano é quase todo formado por nações presidencialistas. Os Estados Unidos, onde o presidencialismo começou, são um país presidencialista. São presidencialistas as antigas colônias espanholas e a antiga colônia portuguesa, o Brasil. Na América do Sul, somente as antigas colônias britânica e holandesa são parlamentaristas, a Guiana e o Suriname. Ou, na América Central, do Norte e no Caribe, as ex-colônias britânicas, como a Jamaica e o Canadá. Já o parlamentarismo vigora com mais intensidade fora da América: na Europa Ocidental, formada por sólidas democracias, e em algumas nações democráticas da Ásia, como o Japão e a Índia. De fato, o sistema de poder presidencialista é algo basicamente do nosso continente, uma invenção dos Estados Unidos. E como surgiu?
Após conquistarem sua independência, os estadunidenses se viram diante de um desafio gigantesco: como construir uma sociedade democrática? Como construir uma democracia aplicada em uma grande sociedade, não apenas em uma cidade pequena, como em Atenas na Antiguidade, ou como ocorreu em cidades italianas, holandesas e suíças no final da Idade Média? O filósofo e teórico político Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), por exemplo, se orgulhava de viver em uma Genebra democrática, a república em que ele nasceu. Mas os intelectuais que pensaram a política nos séculos XVII e XVIII eram unânimes em considerar a democracia um regime de poder adequado ao contexto das cidades, inadequado para grandes populações.
Nos Estados Unidos, formulou-se, então, um sistema de organização de poder constituído por uma síntese de outros sistemas: um elemento da monarquia, o presidente; um elemento da democracia, a Câmara dos Representantes – como eles chamam o que no Brasil conhecemos por Câmara dos Deputados; e um elemento da aristocracia, o Senado. A este novo sistema se dá o nome de presidencialismo.
Com o presidencialismo, os Estados Unidos se tornam o primeiro Estado democrático de grande extensão geográfica, com representação direta, em que o Poder Executivo é eleito pelo voto popular, ainda que por intermédio de um colégio eleitoral, e no qual a sociedade em geral cultiva uma identificação bastante relevante com o presidente da República. Mais tarde, será este também o sistema praticado pelos países emancipados da Espanha na América Latina e pelo Brasil, quando se torna republicano. [v] De uma forma ou de outra, nós, do continente americano, nos sentimos mais confortáveis escolhendo o presidente da República diretamente.
Para nós, brasileiros, a ideia de que a chefia do Poder Executivo seja diretamente estabelecida pelos cidadãos é muito importante. Isso vale não apenas na União, para o presidente da República, mas também para governadores e prefeitos. Em todas as esferas, executivo e legislativo são preenchidos pelo voto direto. Pelo voto direto, mas separadamente, o que às vezes gera conflitos. Não é raro existir um Executivo sob controle de um grupo político e o Legislativo sob controle de outro.[vi] Esse tipo de conflito será comum, portanto, porque, como Alberto explicou, no presidencialismo, há duas legitimidades conferidas: a que se atribui pelo voto popular direto no presidente e a que se atribui a deputados e senadores com outro voto.
Além disso, aparentemente, o presidencialismo funciona melhor quando se tem duas Câmaras. [vii] Ou seja, uma chamada Câmara Baixa, a Câmara dos Deputados – que representa a população mais ou menos proporcionalmente à população dos estados ou distritos –, e uma Câmara Alta, o Senado, que, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, é preenchida por um número igual de representantes por estado, independentemente de sua população. Quando se tem Senado e Câmara, o presidente tem uma tarefa difícil, porque precisa encontrar entendimento com as duas Casas, enquanto governadores e prefeitos precisam dialogar somente com uma casa legislativa.
Não por acaso, é raro governadores e prefeitos terem minoria na Assembleia Legislativa ou na Câmara Municipal, e mais raros ainda os casos de impeachment. Já no âmbito federal, o presidente deve conquistar entendimento com as duas casas legislativas. Ao mesmo tempo, como são duas casas, nenhuma pode se considerar a legítima representante do povo isoladamente – o que, em compensação, fortalece o presidente, porque evita seu enfrentamento direto com um Legislativo unicameral. (No Equador, a soma de presidencialismo com unicameralismo levou a sucessivas derrubadas de governo em curto prazo.)
Além disso, sobre o sistema eleitoral: vale a pena refletir sobre as eleições em turnos. No Brasil, durante bastante tempo, foi praticado um sistema eleitoral com apenas um turno. [viii] Os dois turnos foram adotados já na Constituição de 1988, para presidente, governadores de estado, prefeitos de capitais e de cidades com mais de 200 mil eleitores, que são poucos municípios.
Alberto Carlos Almeida: Exatamente 85 municípios, incluindo as capitais.
Renato Janine Ribeiro: Ou seja, pouco mais de 1% dos 5.570 municípios brasileiros. E adotamos o sistema de dois turnos, em grande razão, para evitar escolhas presidenciais sem maioria absoluta dos votos.[ix] Mas é interessante notar que, em alguns países da América Latina, os dois turnos funcionam de outro modo. Por exemplo, um candidato é eleito com 45% dos votos na Argentina, ou com 40%, se tiver ao menos 10% de diferença para o segundo colocado. Por que isso ocorre lá? Para evitar uma pulverização de candidaturas.
Aqui no Brasil, e isso acontece em muitas eleições municipais, alguém se apresenta candidato com apenas 2% ou 3% de intenção de voto, acreditando que, se fizer uma boa campanha, pode chegar a 10% ou 15%, e talvez ir para o segundo turno – quando porventura terá chances de ganhar. Cria-se, assim, uma ilusão: pessoas sem chance alguma de vencer apresentam-se como candidatas. E isso pulveriza as candidaturas. Às vezes, gerando resultados muito ruins.
Alberto Carlos Almeida: Interessante, Renato, quando você menciona o sistema argentino, é perceber que, se a nossa regra fosse igual, Lula teria sido eleito no primeiro turno nas duas disputas, em 2002 e 2006. Dilma Rousseff teria sido eleita no primeiro turno em 2010 e Jair Bolsonaro teria sido eleito no primeiro turno em 2018. Só em 2014 teríamos um segundo turno, entre Dilma e Aécio Neves. Lula, por sua vez, teria sido eleito de novo em 2022, com 48% dos votos válidos. Digamos, portanto, que a regra argentina, comparativamente, tenta assegurar uma legitimidade tão grande quanto a nossa, mas faz isso de maneira mais econômica em relação à realização de segundos turnos.
De qualquer maneira, é muito difícil a virada do primeiro para o segundo turno. Se tomarmos como referência as eleições presidenciais no Brasil, sempre quem chega à frente no primeiro turno acaba vencendo no segundo turno. Claro, não significa que uma virada não possa acontecer. Mas é difícil. Inclusive nas eleições estaduais e municipais.
Além disso, Renato, gostaria de acrescentar uma observação sobre o Senado. Ele está presente em federações, em países que dão maior autonomia a governos locais. Em países como Brasil, Argentina, Colômbia, Estados Unidos, Rússia – grandes territorialmente e com uma população numerosa e não concentrada em somente uma ou outra região –, é necessário delegar para que entidades regionais governem. E aí o Senado tem um papel importante para a representatividade das unidades federadas.
O Brasil é um país de forte tradição presidencialista, para se ter ideia do que isso significa, no breve período parlamentarista que tivemos no período republicano, de setembro de 1961 a janeiro de 1963, no Brasil, Tancredo Neves foi o primeiro-ministro por mais tempo e falou uma frase que nunca me esqueci: “Eu nunca vi um parlamentarismo tão presidencialista quanto esse”. Por que ele disse isso?
Porque o Congresso derrubava proposições do governo, mas o gabinete continuava, não caía. Tancredo permanecia como primeiro-ministro. Isso acontecia já por conta da nossa forte tradição presidencialista. Na mente do brasileiro, o Parlamento votar contra o governo não seria motivo para derrubar o gabinete. Ou seja, mesmo naquele breve período em que adotamos uma instituição parlamentarista, nossa prática, nossa mentalidade, estava mais em harmonia com o presidencialismo.
Renato Janine Ribeiro: Aproveitando esse exemplo, vale mencionar que uma grande vantagem do parlamentarismo sobre o presidencialismo é a possibilidade de trocar de governo sem grandes traumas. Porque, no parlamentarismo, o Poder Executivo não tem um mandato fixo. Já no presidencialismo, o governo tem um mandato fixo. [x]
Alberto Carlos Almeida: Sim, e esse advento do mandato fixo dá uma enorme rigidez ao sistema político. Ele é fixo justamente porque está escrito na Constituição. Veja o caso da pandemia, por exemplo, quando, para se alterar a data da eleição municipal, foi necessário alterar o texto da própria Constituição.
Renato Janine Ribeiro: Certamente. E não há essa rigidez no parlamentarismo. Na França, parlamentarista, não há um dia determinado para uma megaeleição que elege presidente, governador, dois senadores, deputados federais e deputados estaduais. Não é tudo no mesmo dia, como aqui no Brasil. Há uma eleição para deputado, depois para prefeito, outra para conselho regional e outra para o Parlamento Europeu, separadamente. Por isso mesmo a França não tem tanta necessidade – assim como outros países parlamentaristas – de mudar para o voto eletrônico. Contar os votos manualmente, por lá, não é tão complicado quanto seria aqui. Faz-se em uma ou duas horas.
Mas, voltando ao que eu dizia sobre a troca de governo nos dois sistemas, no regime presidencialista, se um presidente não satisfaz, é difícil tirá-lo do cargo. No presidencialismo, só se pode impedir o presidente em razão de um crime cometido. Não se deve aprovar um impeachment meramente porque o presidente ficou impopular. No caso do ex-presidente Fernando Collor de Mello, na época filiado ao então Partido da Reconstrução Nacional (PRN), o crime até que foi detectado, tipificado etc. Mas, no fundo, ele caiu porque tinha se tornado impopular. Já no caso da ex-presidente Dilma Vana Rousseff, do Partido dos Trabalhadores (PT), foi mais difícil comprovar o cometimento efetivo de um crime, e mesmo assim a afastaram. [xi]
Alberto Carlos Almeida: Importante você mencionar isso. Existe muita controvérsia sobre o impeachment da Dilma. Há quem afirme que ela foi impedida sem crime de responsabilidade. Mas vamos pensar em que consiste o mecanismo do impeachment? Eu o comparo a uma bomba atômica. Porque o sistema presidencialista é rígido. No presidencialismo, o impeachment é algo muito traumático. Mas o julgamento de um impeachment não é um julgamento jurídico. É político. Deve-se ter isso em mente, porque ele é decidido pelo voto de representantes eleitos, deputados e senadores. Por isso é político. O impeachment não é julgado por juízes, pelo Supremo Tribunal Federal (STF) ou pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ). Para acontecer, ele precisa ter uma razão com bases jurídicas, mas o julgamento em si é um julgamento político.
O que se pode afirmar é que há impeachments com uma base jurídica mais bem estruturada – portanto, mais aceitáveis do ponto de vista da lei –, e há aqueles com uma base jurídica deficiente, então com maior dificuldade de aceitação legal. Porém, no fim das contas, quem decide se foi crime ou não são deputados e senadores. Eles é quem decidem. E, justamente por isso, o impeachment será sempre um julgamento político.
Renato Janine Ribeiro: Entendo que aqui temos um aspecto duplo: por um lado, o impeachment é um julgamento político, mas por outro é um julgamento que presume um crime. O impeachment é algo que nasce na Inglaterra. “Impeach”, em inglês, na verdade, não significa condenar, mas acusar alguém para ser julgado por outro tribunal. Algo como “acusar, apontar”. Nos Estados Unidos, quem faz o impeachment é a Câmara dos Deputados, que acusa o presidente para depois ser julgado no Senado, sem afastamento do cargo. Um processo muito rápido. O impeachment de Donald Trump, no começo de 2021, foi decidido em quinze dias. Em apenas quinze dias, ele estava absolvido.
Diferentemente daqui, onde um processo de impeachment demanda meses. Mas, nos dois casos, a ideia por trás do impeachment é decidir com base em um patamar de exigência elevado. Nos Estados Unidos, esse patamar elevado funciona. Apenas um presidente chegou perto de ser condenado a perder o cargo – Andrew Johnson, em 1868. De 45 presidentes estadunidenses, nenhum foi destituído. Já no Brasil, dos cinco presidentes eleitos pelo povo desde 1985, dois foram afastados. Então, nesse sentido, o mecanismo do impeachment se tornou algo traumático no Brasil. [xii]
Isso significa que mudar para o parlamentarismo seria positivo para nós, brasileiros? Não necessariamente. Nossa cultura não abre muito espaço para isso. Tudo indica que nós queremos um indivíduo que chefie, que personalize o governo. Deixarmos o presidencialismo em favor do parlamentarismo pressuporia, necessariamente, uma mudança de cultura política. E não se faz isso facilmente.
Alberto Carlos Almeida: Com certeza. Veja, por exemplo, que, à época do plebiscito de 1993, os partidários do presidencialismo justificavam sua aversão ao parlamentarismo com o lema “Não deixe que os políticos tirem o seu direito de escolher o presidente da República”. Ou seja, escolher o parlamentarismo, para eles, seria o mesmo que delegar a escolha do chefe maior da nação. Perceba a força desse argumento. E perceba o quanto ele está associado a uma mentalidade, a uma cultura política, de personalização.
Como resultado, é natural que, geralmente, os partidos políticos sejam mais fracos em países presidencialistas e mais fortes nos parlamentaristas. Mesmo nos Estados Unidos, onde os partidos são fortes, ainda são mais fracos que os partidos europeus. Por quê? Porque o personalismo permite que determinados líderes guiem o partido para uma determinada direção. [xiii] Isso não ocorre no parlamentarismo. Se um determinado líder não encontra consenso com a maioria do partido, ele é derrubado. Simples assim.
Renato Janine Ribeiro: Acrescento outro elemento que ilustra nossa aversão cultural ao parlamentarismo: damos mais atenção à escolha do candidato ao Poder Executivo. Os cidadãos brasileiros pensam, discutem e escolhem em quem votar para prefeito, governador ou presidente, mas refletem pouco ou nada sobre sua escolha para deputado, vereador e até mesmo para senador. Essa pouca atenção ao Poder Legislativo cria Câmaras pouco representativas da vontade popular, se comparadas com o Poder Executivo. Presidentes, governadores e prefeitos acabam tendo uma legitimidade maior, não no sentido legal, mas no sentido do investimento afetivo que as pessoas fazem em sua escolha.
Para mudar isso, para porventura nos tornarmos parlamentaristas, haverá uma necessidade prévia, lógica, de nos voltarmos para o Legislativo com mais atenção. Não sei se somos presidencialistas porque prestamos mais atenção ao nosso voto para o Executivo, ou se prestamos mais atenção ao nosso voto para o Executivo porque somos presidencialistas.
Alberto Carlos Almeida: Vira um alçapão. Depois que você entra no sistema é muito difícil sair. Isso vale para nós, presidencialistas, e para os países parlamentaristas também. O sistema se retroalimenta o tempo inteiro. Quando vejo pessoas argumentando que, se o Brasil fosse parlamentarista, evitaríamos algumas das últimas crises políticas, sempre lembro o seriado House of Cards e o personagem Frank Underwood, interpretado pelo Kevin Spacey: um deputado que pouco a pouco foi se tornando cada vez mais importante. Como? Utilizando seus contatos com os principais lobistas para distribuir recursos aos parlamentares de seu partido e, consequentemente, recebendo cada vez mais apoio e poder até chegar à presidência.
Guardadas as devidas proporções, a trajetória de Frank lembra a do deputado federal Eduardo Cunha até se tornar presidente da Câmara. Como ele conseguiu? Fazendo pequenas e grandes benesses. Ou seja, tivéssemos o parlamentarismo vigente no Brasil, talvez resolvêssemos as crises mais facilmente, mas talvez alguém com o perfil de Eduardo Cunha conseguisse mobilizar recursos de campanha e financiar deputados para ser primeiro-ministro eternamente.
Nos países onde é vigente, o parlamentarismo é vinculado a um determinado sistema eleitoral. O nosso sistema eleitoral, combinado ao parlamentarismo, poderia proporcionar as condições ideais para um tipo como Eduardo Cunha permanecer primeiro-ministro eternamente. Nós temos o voto proporcional com a lista aberta, isto é, nosso eleitorado vota na pessoa de um candidato, é o eleitor quem define quem vai ficar em primeiro, segundo, terceiro lugares e assim sucessivamente na lista.
Os países europeus parlamentaristas que, como nós, adotam o voto proporcional apresentam em sua grande maioria uma lista fechada e pré-ordenada, é dentro do partido, em uma convenção, que se define os primeiros colocados em cada lista e que são justamente os que provavelmente serão eleitos. Nosso sistema incentiva as campanhas individuais, fazendo com que cada deputado obtenha recursos exclusivamente para sua campanha, daí a necessidade de se ter a ajuda de alguém como Eduardo Cunha, ao passo que nos sistemas de lista fechada a campanha é para se votar no partido. Nesse sentido, para o Brasil o presidencialismo pode ser infinitamente superior.
Renato Janine Ribeiro: Concordo. Parlamentarismo e presidencialismo são apenas sistemas de governo diferentes. Cada um tem vantagens e desvantagens. Porque um funciona bem na Europa não significa que funcionaria bem aqui. Vejamos a seguir, mais detalhadamente, o parlamentarismo.
[i]. Nos Estados Unidos, o voto direto popular elege um Colégio Eleitoral que escolhe o presidente. O Colégio Eleitoral é a soma de delegados eleitos em cada estado da federação. Estados com mais eleitores, como é o caso da Califórnia, elegem bem mais delegados do que estados eleitoralmente pequenos. Uma característica importante do sistema é o que se chama em inglês a regra “the winner takes all”. O candidato mais votado em um estado fica com todos os delegados daquele estado; não se trata, portanto, de uma distribuição de delegados por estado proporcional ao voto para o candidato democrata ou republicano. É por isso que às vezes ocorre de o candidato mais votado no voto popular ficar com menos delegados e não ser o eleito.
[ii]. Em resumo, nos países parlamentaristas, a fonte da legitimidade do Parlamento e do chefe de governo (o primeiro-ministro) é a mesma. Já nos países presidencialistas, como o Brasil, a fonte de legitimidade do presidente da República (chefe de Estado e de governo) é diferente da fonte que confere legitimidade ao Poder Legislativo. Deputados e senadores são, portanto, escolhidos mediante uma fonte de consentimento diferente da que elegeu o chefe do Poder Executivo.
[iii]. Não incluímos nesta conversa o presidencialismo nos casos em que o presidente é um ditador, claro, pensamos ambos, presidencialismo e parlamentarismo, dentro de um contexto democrático.
[iv]. Ver o capítulo 2. Parlamentarismo.
[v]. Vale ressaltar a ocorrência de dois breves ensaios sobre parlamentarismo no Brasil. No segundo reinado, com d. Pedro II, que aceitou o parlamentarismo, mas tutelado pelo poder moderador do monarca; e na República, entre setembro de 1961 e janeiro de 1963, quando um breve parlamentarismo foi posto em prática para impedir que o vice-presidente João Goulart exercesse os poderes presidenciais. De todo modo, tanto no plebiscito de 1963 quanto no realizado após a redemocratização em 1993, o presidencialismo foi escolhido pela maioria esmagadora dos brasileiros.
[vi]. Veja, por exemplo, que, dos cinco eleitos após 1985, dois presidentes perderam a maioria no Congresso a ponto de sofrerem impeachment com votos de mais de dois terços da Câmara e do Senado. Foram os casos de Fernando Collor de Mello e Dilma Rousseff.
[vii]. O Equador, por exemplo, adotou o sistema unicameral e, por isso, passou por alguns conflitos de legitimidade, sobretudo na década de 1990 e 2000. Várias vezes o presidente da República foi afastado. Um deles foi afastado sob acusação de ser louco (e parece que era mesmo). Ou seja, no presidencialismo, há um equilíbrio entre presidente e Parlamento que precisa estar sempre em negociação.
[viii]. Os dois turnos, embora tivessem surgido antes, emplacam basicamente em 1958, quando o general Charles de Gaulle, ao reformar o sistema político francês, cria um parlamentarismo com presidente forte. Em função disso, ele propõe que o presidente seja eleito com maioria absoluta dos votos. Se nenhum dos candidatos receber a maioria absoluta, passa-se para o segundo turno entre os dois mais votados.
[ix]. ACA: Alguns acreditam que, se houvesse dois turnos à época, Jânio Quadros (presidente em 1961) e Juscelino Kubitschek (presidente de 1956 até 1961) não teriam sido eleitos. Eu duvido.
[x]. Além disso, no presidencialismo brasileiro, há um vice-presidente escolhido normalmente por questões de conveniência — para ganhar mais tempo de TV, por exemplo —, que depois pode se tornar um problemão, como foi Itamar Franco para Fernando Collor e mais recentemente Michel Temer para Dilma Rousseff. Ou, se não se torna um problema, o vice não faz muita diferença, como Marco Maciel para Fernando Henrique Cardoso e José Alencar para Lula. Ou seja, ou o vice é leal e não faz nada, ou acaba se voltando contra o titular.
[xi]. RJR: Vivêssemos sob regime parlamentarista, isso não seria um problema. No parlamentarismo, a mesma coalizão que sustentava Collor, ou a mesma que sustentava Dilma, poderia decidir trocar o governo, simplesmente, inclusive por alguém da mesma aliança. No parlamentarismo há uma facilidade para trocar o governo, que não ocorre no presidencialismo. Nesse sentido, a república brasileira poderia ter evitado vários de seus traumas, causados por crises presidenciais, com a adoção do regime parlamentarista. Porém, nossa cultura, e há quem afirme a cultura latino-americana, é bastante personalista. Personalizamos quem está no poder, um hábito do qual, aparentemente, não estamos dispostos a abrir mão. Toda e qualquer pesquisa de opinião evidencia que a preferência pelo presidencialismo é amplamente majoritária no Brasil. O PSDB, por exemplo, surgiu com a proposta de trabalhar pelo parlamentarismo, mas Fernando Henrique Cardoso ficou no poder por dois mandatos e o que fez para implementar o parlamentarismo? Nada.
[xii]. Porém, perceba uma curiosidade: no caso de governadores de estado, o ritual é um pouco diferente. A Assembleia Legislativa acusa, mas o julgamento é feito por um tribunal misto, formado por cinco deputados eleitos e cinco desembargadores sorteados. Os legisladores eleitos vão provavelmente representar as forças políticas dominantes, mas os desembargadores, porque são sorteados, podem ser simpáticos ou não a qualquer espectro político.
[xiii]. Por exemplo, a influência que Donald Trump exerceu sob o Partido Republicano nos Estados Unidos.
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A política como ela é. Artigo de Alberto Carlos Almeida e Renato Janine Ribeiro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU