18 Julho 2017
"O golpe em curso no Brasil se insere no processo internacional da contrarrevolução neoliberal que está construindo estados constitucionais não democráticos pelo mundo inteiro. Os golpistas estão divididos e enfrentam dificuldades para lidar com a crise de legitimidade decorrente do golpe, mas estão unificados programaticamente. E esse programa põe em questão princípios fundamentais do pensamento democrático do pós-guerra, gerando um cenário de instabilidade , ódio e intolerância". A avaliação é do cientista político Juarez Guimarães, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que aponta graves conseqüências desse quadro nos planos nacional e internacional. "Os valores fundamentais da paz, da liberdade, dos direitos humanos, do pluralismo e da tolerância estão em questão e é por isso que falo que estamos vivendo uma crise civilizacional", diz o cientista político.
A entrevista é de Marco Weissheimer, publicada por Sul 21, 16-07-2017.
Juarez Guimarães analisa os acontecimentos recentes da vida política brasileira sob a perspectiva de uma linha histórica mais longa, aponta um déficit de consciência da esquerda sobre o que está acontecendo no Brasil e no mundo, defende a centralidade da campanha por Diretas Já e adverte sobre os riscos de depositar todas as esperanças em 2018 para a superação da crise atual. Para ele, quem achar que estamos vivendo apenas um intervalo no processo de normalidade democrática, pode avaliar, por exemplo, que a sentença do juiz Sérgio Moro contra o ex-presidente Lula deve ser reformada em segunda instância, uma vez que não tem base jurídica nem provas. No entanto, diz, estamos vivendo um estado de excepcionalidade onde a exceção é a regra. "Moro é corrompido politicamente e está exercendo seu mandato de juiz de forma partidária". E acrescenta:
"Qualquer pensamento político que se estreitar no plano da legalidade jurídica estará cometendo um gravíssimo erro. Com o STF, tal qual está funcionando, com a Constituição tantas vezes violada como foi, qual a dificuldade em praticar mais uma violação? Não há nada mais desmobilizador, hoje, do que 2018, porque entre nós e 2018 há o abismo. Se não enfrentarmos a possibilidade do abismo corremos o risco de ser tragado por ele".
Diante de uma conjuntura extremamente instável, que muda rapidamente, como, qual a sua avaliação sobre a situação política que o Brasil está vivendo?
Estou trabalhando com a ideia de uma contrarrevolução neoliberal, que dialoga com elaborações que estão sendo feitas pela ciência política brasileira. A ciência política brasileira, majoritariamente, se posicionou, através da Associação Brasileira de Ciência Política e da Associação Latino-americana de Ciência Política (Alacip), caracterizando o que aconteceu no Brasil como um golpe. O cientista político sênior do Brasil, Wanderley Guilherme dos Santos, escreveu o livro "A democracia impedida. O Brasil no século XXI" (FGV Editora), cujo título deve ser bem entendido.
A "democracia impedida" contém a denúncia do que ele chama de golpe parlamentar, que é uma figura nova na ciência política. Em regimes democráticos representativos, forças políticas utilizam-se de aparatos previstos na Constituição, reinterpretando-os de forma ilegítima, forçando o sentido previsto na Carta Constitucional, para promover um golpe parlamentar. Esses golpes são ditos parlamentares, diz Wanderley Guilherme dos Santos, porque os atores são parlamentares que necessitam de uma cobertura de legitimação do Judiciário. Eles são, por natureza, instáveis e carecem de legitimidade, razão pela qual procuram a via anti-democrática.
O autor acrescentou o subtítulo "O Brasil no século XXI" por entender que esse golpe parlamentar não é um ser estranho na atual conjuntura das democracias ocidentais, embora ele não queira fazer, do que ocorreu no Brasil, um paradigma. Está apenas chamando a atenção para o fato de que existe uma crise das democracias ocidentais e que fenômenos semelhantes, de captura da soberania popular e de um encaminhamento anti-democrático das instituições a partir de seu próprio interior encontra alguma tipicidade, hoje, no funcionamento dessas democracias. Ele revisita Karl Polanyi, recuperando a oposição dramática entre democracia e capitalismo para pensar esse novo contexto.
As forças capitalistas empoderadas estariam retirando dimensões fundantes da democracia. O autor opõe essa visão a de T.H.Marshall, autor de "Cidadania, Classe Social e Status", que via uma relação mais virtuosa entre democracia e capitalismo, o que levaria a um aprofundamento crescente das condições de cidadania até se chegar a um ponto em que a própria ideia de classe social estaria subsumida a um status de igualdade que seria construído. Wanderley Guilherme dos Santos reivindica a ideia de que as democracias representativas, tais como nós as conhecemos, são eventos recentes na história ocidental, eventos do pós-guerra, mergulhados hoje em um processo de grande tumulto e instabilidade.
Trata-se de um livro muito importante e é preciso chamar a atenção sobre ele. A mídia brasileira praticamente o ignorou. O principal cientista político do país, que estuda a democracia há quase cinco décadas, escreve um livro importante como esse e ele é ignorado pela mídia brasileira. Nós estabelecemos uma afinidade com essa interpretação e também com a interpretação do cientista político Luis Felipe Miguel, da Universidade de Brasília, que caracteriza o que nós estamos vivendo como uma situação de exceção. Foi rompida a Constituição e estamos numa situação marcada pelo arbítrio, onde os fundamentos constitucionais de 1988 já não estão valendo. Nesta situação, o Executivo funciona de uma forma ilegítima, o Legislativa funciona com uma alienação de representação, de um modo absolutamente autonomizado em relação à sociedade, e o Judiciário emite jurisprudências arbitrárias de forma seqüencial. Cada caso é um caso, dependendo das conveniências e dos interesses políticos envolvidos.
Luis Felipe Miguel, concordando com essa avaliação de que houve um golpe parlamentar, elabora a ideia de uma crise do estado democrático brasileiro, onde os três poderes estão trabalhando em um regime de exceção. Nós dialogamos com esses dois conceitos – golpe parlamentar e estado de exceção – para trabalhar a ideia de uma contrarrevolução neoliberal.
Quais seriam as características desta contra-revolução neoliberal?
Esse conceito parte da ideia de que, para pensar a conjuntura brasileira na sua imprevisibilidade e elevado grau de arbítrio, é preciso recorrer à história longa, ao processo inacabado e interrompido de construção de uma república democrática no Brasil e aos impasses históricos dessa construção. Ao inserirmos a narrativa do golpe de 2016 na história brasileira, não pretendemos interpretar esse golpe a partir do que ocorreu em 1964. O que queremos é identificar uma reiteração de sentido, isto é, a incapacidade das classes dominantes brasileiras de conviver com a democracia naquilo que ela tem de substantivo, como a distribuição de poder e riqueza e de alargamento de sua base social.
Revisitamos, por essa via, os clássicos de interpretação do Brasil, principalmente o livro "A Revolução Burguesa", de Florestan Fernandes, que interpretou 1964 como uma revolução burguesa brasileira que conjugou capitalismo selvagem e autocracia. As classes dominantes brasileiras, muito prematuramente, viveram o dilema distributivista pela pressão das classes populares em um espaço restrito de manobra, em função de sua dependência em relação às classes dominantes internacionais. Pressionada desde baixo e com um espaço restrito de manobra, ela optou historicamente por conjugar capitalismo com autocracia e essa é a história da ditadura militar.
Na sua opinião, qual a relação que existe entre a narrativa do golpe de 2016 e a do golpe de 1964?
O sentido do golpe de 64 está sendo reiterado agora, com uma grande diferença. Além dessa pressão dos de baixo para conseguir um alargamento da distribuição de poder e das riquezas, e do fato de a economia brasileira ser hoje muito mais associada ao capitalismo internacional do que era em 64, temos uma mudança epocal da tradição liberal. Essa tradição liberal é responsável pela formulação dos princípios civilizatórios dominantes no mundo. No entanto, esses princípios, nas últimas quatro, cinco décadas, passaram por uma grande mudança em nível global.
O neoliberalismo já tem uma história e já há uma literatura especializada sobre esse tema, em grande parte desconhecida pela esquerda brasileira, que estuda esse fenômeno epocal e suas consequências no sentido de desconstruir o princípio da soberania popular nas democracias ocidentais. O livro "Undoing the Demos", de Wendy Brown, trata dessa revolução discreta do neoliberalismo. Estamos falando, portanto, de uma época histórica, não de uma conjuntura específica. O que está ocorrendo no Brasil seria a atualização das classes dominantes nacionais se colocando contemporaneamente nesta revolução epocal do neoliberalismo. Essa revolução epocal reduziu o chamado liberalismo social a uma nota de pé de página dos livros que hoje compõem o paradigma econômico dominante.
Se estamos identificando uma época, é necessário também identificarmos as conjunturas no interior dessa época de quatro ou cinco décadas. Esse golpe no Brasil é a expressão de um terceiro período epocal do neoliberalismo. Se formos olhar sua história, o neoliberalismo teve uma proto-origem nos anos 30 e passa por um primeiro período de acumulação no pós-guerra. Ele alcançou, pela primeira vez, o governo de dois estados centrais, Estados Unidos e Inglaterra, no final dos anos 70, construindo, em nome da liberdade, uma agenda do Estado mínimo nos anos 80. Essa é a primeira fase de irrupção do neoliberalismo na vida política do Ocidente.
Nos anos 90, houve então uma reação, uma tentativa do Partido Democrata, dos Estados Unidos, originário do New Deal e a favor de um keynesianismo, e também da socialdemocracia europeia. Neste processo, ocorre uma absorção da agenda do neoliberalismo tanto pelo Partido Democrata norte-americano como pelo chamado novo trabalhismo de Tony Blair. Aí temos um primeiro momento de fusão do Brasil com esse novo movimento, através do governo Fernando Henrique, que tentou conectar o país nessa ideia de terceira via. Essa terceira via já não era, então, algo intermediário entre o liberalismo e o socialismo, mas sim entre liberalismo e neoliberalismo. O que resultou dos anos 90 foi uma desconstituição das bases programáticas e identitárias tanto do Partido Democrata norte-americano quanto das tradições socialdemocratas europeias, inclusive do Partido Trabalhista inglês.
Entramos neste século vivendo uma terceira fase do neoliberalismo, uma fase mais predatória, onde suas dimensões antidemocráticas ficam mais evidentes. A partir de 2008, quando as dívidas financeiras foram estatizadas, a contradição entre a gestão da dívida pública e as democracias vai para o primeiro plano. Vemos, então, essa dimensão antidemocrática do neoliberalismo irromper de forma mais evidente. O golpe no Brasil se insere nesta narrativa de uma contrarrevolução neoliberal que está construindo estados constitucionais não democráticos. Não são estados militarizados, como na época da guerra fria, mas estados constitucionais não democráticos.
Do ponto de vista do pensamento político de esquerda, quais seriam as principais implicações dessa contrarrevolução neoliberal, tanto no plano nacional como internacional?
Há muitas questões interpretativas sobre essa nova realidade que desafiam os marxistas. A primeira é como entender que o neoliberalismo tenha saído mais forte da crise de 2008. Muitos marxistas e outros intérpretes do neoliberalismo previram ali o fim do neoliberalismo e da globalização neoliberal. Este foi o segundo fim proclamado do neoliberalismo. O primeiro foi com a derrota dos governos conservadores de Reagan e Thatcher para alianças socialdemocratas nos anos noventa. Também aí se teorizou, de modo impressionista, que o neoliberalismo estava no fim. No entanto, ele ressurgiu com mais força. Como entender isso? A grande resposta a isso estaria em estudos feitos sobre a tradição neoliberal que se perguntam, no sentido gramsciano, se o neoliberalismo é apenas um evento superestrutural da política ou se ele já é expressão da constituição de uma classe capitalista transnacional. Isto é, se ele já é a expressão de uma vontade política classista que se organiza para além dos estados nacionais.
Há um artigo muito interessante de William Carroll e Jean Philippe Sapinski sobre esse tema, que utiliza os conceitos clássicos de Marx, de classe-em-si e classe-para-si, para abordar esse fenômeno. De 1970 a 2008, assinalam os autores, as exportações de mercadorias cresceram 6,9% no mundo. De 1970 a 2000, os investimentos globais diretos se multiplicaram 48 vezes. Já os empréstimos bancários internacionais, entre 1977 e 2008, se multiplicaram 55 vezes. Isto é, empoderou-se muito a financeirização do mundo. Esses autores dizem que esse período é de expansão da classe-em-si, um momento de expansão dos interesses financeiros que estavam alargando os seus espaços de reprodução.
A partir da crise de 2008, do acúmulo de suas vitórias e de expansão do setor financeiro, estaria ocorrendo a passagem da classe-em-si para a classe para-si. Essas classes transnacionais já estariam sendo capazes de formular um projeto de uma ordem internacional capaz de submeter estados nacionais aos paradigmas por ela formulados.
Os autores se perguntam: qual o lugar dessa passagem da classe-em-si para a classe-para-si? Onde esses capitalistas estão ganhando essa consciência mundial e formulando um programa internacional de dominação? No Estado norte-americano, fundamentalmente, desde a época Clinton, mas também durante a era Obama, e no processo da unificação europeia. Nestes dois lugares estatais está se dando a formação dessa consciência política nova de uma classe capitalista transnacional. Eles também se pergunta pelos locais onde se organiza essa vontade política. A resposta é que isso se dá, fundamentalmente, em três lugares. Em primeiro lugar, na Organização Mundial do Comércio (OMC), que reúne 133 países e é o espaço onde se resolvem disputas, se produzem consensos estratégicos e se estabelecem regulações comuns.
O segundo lugar seria o Fórum Econômico Mundial de Davos, onde as mil corporações mais importantes do planeta comparecem anualmente. O papel do Fórum de Davos é formular e hierarquizar as agendas políticas. E o terceiro é a Mont Pelèrin Society, organização criada em 1947 para promover valores e princípios liberais e pode ser considerada como a origem do neoliberalismo. Essa sociedade reúne, através da Atlas Economic Research Foundation, quatrocentos think thanks, articulados internacionalmente para organizar a cobertura intelectual desse paradigma.
Em que medida, esse movimento internacional já estabeleceu raízes no Brasil também?
Quando estudamos o caso brasileiro e constatamos as contradições no interior da coalizão golpista, vemos que por trás de um Temer há um Maia e que por trás do Maia há um outro e por trás desse outro há um programa que unifica todos os golpistas. Os golpistas estão divididos e enfrentam dificuldades para lidar com a crise de legitimidade decorrente do golpe, mas estão unificados programaticamente. Essa unificação programática e esse background internacional torna possível fazer operações de reposição política como ocorreu recentemente na França. Lá, tínhamos uma direita derrotada eleitoralmente e uma social-democracia derrotada na sua identidade. De repente, surge um outro, que repõe o fundamento político desse programa e recompõe uma maioria parlamentar. Que milagre político é esse?
Esse milagre político só pode ser entendido a partir de uma visão integrada dessa contrarrevolução neoliberal. Estamos vivendo uma espécie de abalo sísmico civilizacional. O que está em jogo é um princípio de civilização que reorganiza os fundamentos da vida em comum. O liberalismo keynesiano expressa uma visão de sociedade que tem como referência a ideia de soberania popular e é um lugar onde se disputam e se forma os direitos dos cidadãos. É esta ideia civilizacional que está em questão com essa contrarrevolução neoliberal.
Como vê as possibilidades de resistência e de enfrentamento desta contrarrevolução?
A insuficiência de consciência leva a uma desorganização da vontade política. A direita está à frente da esquerda em função disso. Ela está mais contemporânea e mais unificada programaticamente do que a esquerda, em nível internacional. O que a direita brasileira fez foi se amparar neste novo paradigma internacional para, com base nele, quebrar um acúmulo sincrético da esquerda brasileira. O que resulta desta contrarrevolução neoliberal não são nem regimes estáveis no plano nacional nem uma ordem internacional estabilizada, pelo contrário. O que temos visto como fenômeno intrínseco a este desmantelamento dos fundamentos de pactuação das democracias ocidentais é um grau crescente de ilegitimidade e de instabilidade política no centro dessas democracias. Então, essa contrarrevolução neoliberal não gera estabilidade, mas instabilidade permanente e um processo de degradação política.
Temos que entender melhor o que significa essa erosão dos fundamentos da soberania popular. A erosão da soberania popular pode se dar através da erosão da soberania de estados nacionais com a transferência para organismos internacionais de decisões que deveriam ser tomadas soberanamente pelos povos. Além disso, ataca-se os fundamentos democráticos da competição eleitoral através de um grau de financeirização inaudito das eleições. Hoje, por exemplo, a probabilidade de reeleição de um membro do Congresso norte-americano está em torno de 93% ou 94%. Isso significa que o sistema político já está de tal maneira oligarquizado, já se desprendeu do controle popular de uma tal maneira que ele não diz mais respeito ao cidadão comum ou diz muito pouco. Ele se reproduz no seu próprio processo de financeirização.
Junto com isso temos um processo de degradação profunda da formação da opinião pública democrática nestes países, inclusive nos Estados Unidos onde mais existiam leis anti-trustes, que proibiam a verticalização. Em 1996, houve um ato que reviu esses fundamentos de regulação e hoje a mídia norte-americana está concentrada em sete grandes empresas. Isso provoca um processo de corrupção da opinião pública. O que ocorre no Brasil em termos de concentração midiática não é uma excentricidade, mas algo que se verifica inclusive nos Estados Unidos.
Ao invés do pluralismo, o que vemos hoje é o crescimento de uma cultura do ódio e da intolerância. Os fundamentos da vida pública democrática em comum estão sendo erodidos. Isso está levando a uma situação de grande instabilidade e a fenômenos como a eleição de Trump. Vemos hoje também uma profunda desorganização das relações internacionais e a configuração de um contexto global onde o cenário de guerra não se tornou apenas possível, como provável. Os paradigmas de regulação estão em crise. A própria ONU está impotente. Estamos lidando com o crescimento potencial de conflitos bélicos. Isso deve fazer parte da imaginação da esquerda contemporânea. Os valores fundamentais da paz, da liberdade, dos direitos humanos, do pluralismo e da tolerância estão em questão e é por isso que falo que estamos vivendo uma crise civilizacional.
Falando da conjuntura mais de curto prazo, a sua vinda a Porto Alegre coincidiu com o anuncio da sentença de condenação do ex-presidente Lula pelo juiz Sérgio Moro. Na sua avaliação, como esse fato impacta o atual cenário político do país? Ele provoca alguma mudança qualitativa na atual conjuntura ou é apenas mais um capítulo do processo do golpe?
A resposta depende da consciência que você tiver. Há quem trabalhe com a ideia de que o que está ocorrendo no Brasil é apenas um intervalo irregular de uma normalidade democrática, uma espécie de cicatriz no corpo da democracia brasileira. Seguindo essa ideia, poderíamos avaliar que a sentença de Moro, como não possui nenhuma base jurídica, certamente seria revertida na segunda instância. Mas eu penso que não é disso que se trata. Acho errado chamar Moro de juiz parcial. Isso é conceder muito a ele. Na verdade, é um juiz corrompido politicamente. Ele está exercendo o seu mandato de juiz de forma partidária, contra a Constituição e contra o povo brasileiro. É um juiz corrompido e deve ser assim chamado publicamente. A corrupção mora ali em Curitiba. Eu fico indignado quando as pessoas falam da "República de Curitiba". Não há nada de República ali, mas sim o contrário. É o princípio da corrupção da República que está organizado ali.
Então, se eu achasse que o que está acontecendo fosse apenas uma cicatriz no corpo da democracia brasileira, poderia ter esperança de que esse juízo tão corrompido fosse revertido numa segunda instância. No entanto, eu penso que nós estamos vivendo um período de excepcionalidade onde a exceção é a regra. Portanto, a decisão da segunda instância dependerá da correlação de forças políticas que se estabelecer quando ela for julgar. Qualquer pensamento político que se estreitar no plano da legalidade jurídica estará cometendo um gravíssimo erro, pois nós estamos em um estado de exceção. Com o STF, tal qual está funcionando, com a Constituição tantas vezes violada como foi, qual a dificuldade em praticar mais uma violação?
O fundamento da lógica do golpe é que não deve haver mais democracia nem soberania popular no Brasil e que a esquerda não deve mais ser competitiva em eleições. A candidatura do Lula pode ser impugnada de diferentes maneiras. Ele pode levar uma pena leve de dois anos em prisão domiciliar, com perda de direitos políticos, por exemplo. Eles podem argüir a inelegibilidade de Lula, compondo com qualquer tipo de sentença ou podem simplesmente mudar a regra eleitoral.
Nós não estamos trabalhando em um período de normalidade democrática. Se não soubermos capturar o tempo dos golpistas, eles utilizarão o tempo contra nós. É aí que entra a questão das Diretas que foi decidida no último congresso do PT e que frequenta o discurso dos movimentos sociais brasileiros e de outros partidos como o PSOL e o PCdoB. Mas esse discurso ainda não se tornou uma campanha. É como se a esquerda brasileira estivesse, ao mesmo tempo, denunciando o golpe, dizendo "não queremos Maia", mas não organizando uma campanha pelas Diretas.
Alguém poderá dizer que o fato desta campanha não ter deslanchado é um limite do povo brasileiro. Eu acredito, porém, que os limites fundamentais estão no grau de consciência da esquerda. Esse grau de consciência ainda aponta: calma, ainda haverá eleições em 2018; é preciso ter um pouco de paciência; vamos aguardar e acumular para 2018. O problema é que entre hoje e 2018. Não nada mais desmobilizador, hoje, do que 2018, porque entre nós e 2018 há um abismo. Se não enfrentarmos a possibilidade do abismo corremos o risco de ser tragado por ele.
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'Não há nada mais desmobilizador hoje do que 2018. Entre nós e 2018 há um abismo' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU