03 Mai 2024
"Ao olhar para trás, parece haver algum motivo para comemorar. Todavia, o presente ainda se revela na grande tragédia da fome. Ao abrir os resultados da pesquisa para o Nordeste e, neste particular, para o Ceará, percebe-se que a realidade da fome continua a se impor como forma e como método", escreve Rafael dos Santos da Silva, doutor em sociologia, professor na Universidade Federal do Ceará – UFC e autor do livro As cores da Laudato si'.
Para refletir o título deste ensaio, é preciso voltar na tenra infância quando brincávamos com os antônimos quase como quem praticava uma espécie de educação popular. Era comum sermos indagados por algum adulto incauto a perguntar euforicamente: qual o contrário de grande. Sem titubear, respondíamos: pequeno. Qual o contrário de alto, intuitivamente dizíamos: baixo. Para rápido, a resposta exata era: lento. E assim por diante... Foi precisamente o educador Rubens Alvez que iniciou uma ruptura neste silogismo ao afirmar que “educação não é ensinar respostas, mas ensinar a pensar.” O que modifica radicalmente a forma e o método de educar na nossa vida adulta. A partir desse chão cabe recorrer a profundidade do teólogo L. Boff, para quem o antônimo de pobreza, não é riqueza, e sim justiça social.
Para desenvolver este raciocínio relembro que a pobreza sendo um fenômeno social estrutural, rural e urbano, antigo e moderno, possui uma densa dinâmica que pode sofrer diversas variações a depender da sua extensão, da sua intensidade e especialmente da sua profundidade. O fenômeno da pobreza pensada em ciclos nos ajuda a compreender seu dinamismo que a depender dos elementos políticos, econômicos, e sociais – em síntese ecológicos - modificam-se afetando a sociedade sob diferentes aspectos. A fome, objeto central deste texto, é consequentemente o ciclo mais profundo da experiência social da pobreza. Levei esse tema a exaustão na tese A Dinâmica Social da Pobreza e conclui que aquele(a) uma vez estando no ciclo da fome, já sofreu os efeitos dos dois primeiros ciclos da pobreza (a desigualmente e a exclusão social.) Ou seja, em um primeiro momento as pessoas são afetadas pela ausência no equilíbrio da distribuição da renda, e no segundo momento tem seus direitos negligenciados por ausência de políticas públicas, das quais em sua maioria a responsabilidade é do Estado.
Neste limite, falar de pobreza, e de modo particular da fome, é falar de forma expressa sobre justiça social.
Pois bem, em níveis nacionais, as últimos informações sobre a fome apresentadas pela Pnad Contínua sobre Insegurança alimentar divulgada pelo IBGE no dia 25 de abril de 2024, revelam dados relativamente positivos se comparados com os períodos anteriores. Se antes falava-se em 68,9 milhões de pessoas convivendo com algum tipo de insegurança alimentar, podendo alcançar o limite de 125 milhões no auge da pandemia, agora os dados apontam para 64 milhões. Destes, 20,6 milhões estão nos níveis de Insegurança Grave ou Moderada.
Ao olhar para trás, parece haver algum motivo para comemorar. Todavia, o presente ainda se revela na grande tragédia da fome. Ao abrir os resultados da pesquisa para o Nordeste e, neste particular, para o Ceará, percebe-se que a realidade da fome continua a se impor como forma e como método.
Tem-se que a terra da luz, continua a ser terra da fome. Segundo aponta o IBGE, nessas terras alencarinas há 3,4 milhões de pessoas a conviver com algum tipo de Insegurança Alimentar (IA). Destes, os dados revelam que 2,1 milhões convivem com a IA leve. Outras 724 mil pessoas estão expostas a IA moderada, enquanto registra-se 546 mil pessoas no nível mais grave da IA. Ao considerar as duas faixas moderada e grave, podemos afirmar que no Ceará existem cerca de 1.2 milhão de pessoas aprofundadas no ciclo da fome.
Não obstante, o governo do Ceará adotou como uma de suas principais políticas para o enfrentamento da fome o programa denominado “Ceará sem Fome”. De modo especial o programa estabelece duas formas de intervenção: a primeira ação prever a distribuição direta de renda via Cartão Ceará sem Fome. Seus técnicos elegeram cinco critérios para melhor selecionar o público. São eles: (I) ser beneficiário do bolsa família (II) ter como responsável familiar no CadÚnico, preferencialmente mulheres (III) pessoas de baixa escolaridade (IV) possuir na composição familiar pelo menos uma criança com menos de 14 anos (V) não estar com o cadastro do bolsa família suspenso. Ao aplicar estes critérios os técnicos elegeram 53.581 famílias aptas ao programa.
Já a segunda linha de ação consiste em distribuição direta de alimentação por meio do cadastro de cozinhas comunitárias espalhadas por todo o Estado. Na página do programa Ceará sem Fome, ver-se a distribuição de 100 mil refeições diárias. Isso significa aproximadamente 2 milhões de refeições por mês. Naquela mesma página o governo prever investir extraordinariamente cerca de R$ 87 milhões de reais.
Ninguém em plena consciência dúvida da boa vontade do governo e de seus técnicos. Mas de verdade, os dados do programa parecem nitidamente insuficientes para o enfrentamento da realidade da fome no Estado. Longe da crítica vaga, é preciso compreender que o programa adota critérios com rareado alcance.
Neste particular cabe apontar como exemplo a baixa efetividade do recorte utilizado para estimar a linha da pobreza. Ou seja, R$ 218,00 per capta é insuficiente para colocar uma pessoa acima da linha da extrema pobreza. Para tanto, basta lançar mão de uma álgebra simples (dividir o valor por 30) para verificar que o valor é inferior a U$ 1,9/dia, utilizado universalmente para definir a extrema pobreza. Se está é uma métrica adotada pelo Ministério do Desenvolvimento Social – MDS, isso por si só não justifica sua adoção direta, pelo contrário, somente nos obriga a estender a crítica à esfera nacional.
Quanto ao segundo critério destinado a atender as famílias preferencialmente chefiadas por mulheres, fica evidente a necessidade de revisita-lo. Por que? Porque os novos números do IBGE revelam que cerca de 40% dos lares com algum tipo de insegurança alimentar são chefiados por homens.
O terceiro e o quarto critérios parecem não necessitar de reformas, mas o quinto critério definitivamente não contribui para a efetividade do Programa Ceará sem Fome. Isso porque excluir as famílias com o cadastro do Bolsa Família suspenso, impondo uma dupla condenação ao pobre, quando na verdade qualquer política pública nesta área deve prezar pela inclusão e não o contrário.
Na prática, a suspensão no programa Federal pode acontecer por diversas motivações como o não cumprimento das condicionalidades na saúde e educação, mas também pode ser um problema de atualização de endereço. Neste limite, o que fazer com a realidade das pessoas em situação de rua? No Ceará está condição pode alcançar quase 10 mil pessoas? Nos parece que excluí-las não pode ser uma opção.
Se está ação for levada a cabo o programa local deixa de cumprir as manchas populacionais que o programa nacional não alcança. Isso evita a efetividade entre as ações. Dito de outra forma o programa local não cobre as lacunas do programa nacional, mas como se encontra passa a reafirmar suas falhas.
Como resultado, a partir dos critérios de elegibilidade o Programa Ceará sem Fome alcançam a 214.324 mil pessoas, via do Cartão Ceará sem Fome. E outras 100 mil pessoas pelo critério de distribuição direta de alimentação pronta. O que totaliza o alcance de aproximadamente 314.324 pessoas.
Em contraste, ao tomar os dados da Pnad/IBGE como reais – ou mais próximos dela – então tem-se que no Ceará há aproximadamente 3,4 milhões de pessoas atingidas por algum tipo de Insegurança Alimentar. Confrontando os dados do programa Ceará sem Fome com os números do IBGE, é fácil perceber que o programa local alcança a pouco mais de 10% do público alvo.
Todavia, ainda se o público considerado for apenas aqueles afetados pelos níveis moderados e graves da fome, o que segundo o IBGE somam 1.270 milhão de pessoas (sendo 724 mil IA moderada e 546 mil IA grave) então a eficácia do programa alcança apenas a 24,72% da população em situação de Insegurança Alimentar.
Não obstante, é digno notar que o programa Ceará sem Fome mereça análise mais profunda para identificar seu alcance indireto como por exemplo o fortalecimento da economia local. Os impactos na agricultura familiar pelo programa da aquisição de alimentos, bem como os efeitos do crescimento econômico local pela comercialização de insumos para produção de 100 mil refeições diárias. São de fato números importantes a perseguir, mas que não estão em tela neste momento.
Nos cabe refletir ainda que diante deste cenário precisamos com clareza apontar para a necessidade urgente do governo cearense em realinhar seus critérios de elegibilidade de famílias atendidas por seu programa. Especialmente, revisitar os critérios 1, 3 e 5 apontados na nota técnica 80 do IPECE. Pois, categoricamente, é possível aluir que tais elementos estão ultrapassados pela realidade concreta, tornando-se insuficientes para enfrentar os desafios que se quer histórico, mas definitivamente associado às condições contemporâneas de uma economia capitalista moderna. Finalizo lembrando a fala entusiasmada do governador do Ceará Elmano de Freitas quando em 2023 afirmou solenemente: “não vamos descansar enquanto não encontrarmos a última pessoa passando fome”. Pois bem, esse exercício deve estar na base compreensiva de que a ausência da pobreza, não é riqueza, mas justiça social. Se essa dimensão for levada a cabo, então o pensamento valoroso de Rubens Alvez nos servirá de guia até finalmente ser possível elaborar saídas efetivas e afirmativas destinadas aos pobres e famintos no exato limite de suas necessidades.
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Justiça Social para as 3,4 milhões de pessoas com fome no Ceará. Artigo de Rafael dos Santos da Silva - Instituto Humanitas Unisinos - IHU