25 Abril 2024
"O legado da revolução não pode ser apenas ficar no que foi e reclamar do que é. Uma revolução não é, e nunca pode ser, outra coisa senão o futuro, então há uma contradição em "celebrar" passivamente uma revolução do passado".
O comentário é de João Camargo, pesquisador português sobre a crise climática e militante do Climáximo, em artigo publicado por El Salto, 24-04-2024.
Nos próximos dias veremos muitas celebrações do 25 de abril, 50º aniversário da revolução portuguesa. Serão mais fervorosas diante do surgimento de um projeto de extrema-direita em Portugal, mas ainda estarão muito distantes tanto da revolta contra o fardo que arrastou o povo até 1974, quanto da profunda transformação alcançada então. Na véspera do cinquentenário, 11 ativistas climáticos do Climáximo estarão nos tribunais por se levantarem para deter a guerra contra a sociedade que é a crise climática. Como vamos celebrar isso e de que forma?
"25 de abril sempre, fascismo nunca mais" é o slogan que mais tem sido lançado ultimamente, tanto contra o autoritarismo de uma polícia agora entrelaçada com a extrema-direita, quanto contra a manifestação parlamentar da extrema-direita internacional em Portugal, chamada Chega. Seria inspirador se estas palavras tivessem mais de aspiração do que de lembrança, mas fazem mais parte de uma cerimônia do que de um anseio coletivo pelo futuro. No 50º aniversário da revolução que derrubou a ditadura mais longa da Europa, o medo do futuro domina aqueles que afirmam fazer parte da tradição revolucionária. E é por isso que só se fala em defender a Constituição de abril, as promessas de abril, os feitos de abril. Porque em 2024, querer e ter a coragem de buscar muito mais do que em 1974 é considerado coisa de meia dúzia de sonhadores.
Na véspera do aniversário, 11 ativistas climáticos serão julgados por ações em que denunciaram a guerra conduzida por governos e empresas contra a humanidade como um todo. A crise climática é um ato deliberado da elite capitalista nos governos e empresas, cujos efeitos são a morte de milhares de pessoas hoje e de centenas de milhões no futuro. Nosso sistema econômico vive hoje nos estertores da acumulação de riqueza e poder contra a viabilidade da sociedade no futuro.
A revolução em Portugal ocorreu em um contraciclo histórico, arrancada violentamente de uma elite decrépita que matava uma geração em uma guerra para fingir que Portugal continuava sendo o que nunca havia sido: um projeto de elites que exploravam escravos e matérias-primas dos territórios que saqueavam, enquanto contratavam fábulas de história épica, pinturas e estátuas de artistas talentosos que precisavam não morrer de fome e cumpririam a fantasia. Depois da revolução, enquanto os países europeus começavam a receber os primeiros golpes do neoliberalismo, Portugal construía rapidamente o Estado de bem-estar social para tentar curar as hemorragias sociais deixadas por 48 anos de um fascismo tão arcaico que teria estado bem no século XIX. Em poucos anos, a saúde pública, a educação pública e alguns setores essenciais foram nacionalizados, mas logo a história nos alcançou. O reaganismo e o thatcherismo chegariam uma década depois pelas mãos de Cavaco Silva, que reverteu a redistribuição ascendente da riqueza e do poder através de privatizações e liberalizações, camufladas de seus efeitos danosos pela entrada dos primeiros milhões da União Europeia.
A noção romântica de que o 25 de abril foi uma revolução não violenta choca com a informação essencial: centenas de tanques, veículos militares e soldados armados nas ruas de Lisboa, dezenas de unidades militares sublevadas ao longo do país. Eles capturaram as principais figuras do regime e desmantelaram à força as principais ferramentas de poder do Estado Novo, a ditadura de Marcello Caetano. A força bruta de que dispunham os militares insurgentes, o desequilíbrio momentâneo das forças e a decisão de assumir riscos funcionaram de tal maneira que nem mesmo foi necessário derramar grandes quantidades de sangue. A surpresa veio do fato de que os militares não estavam sendo governados por elites regressivas, conservadoras ou fascistas após 13 anos de guerra nas colônias. Nos poucos lugares onde não havia abundância de pessoal militar, como a sede da polícia secreta da ditadura em Lisboa, o regime contra-atacou atacando e matando os civis que se mobilizavam do lado de fora.
Mas a desobediência civil foi o fator chave para transformar o que só poderia ter sido um golpe de Estado bem executado em uma revolução social e popular. Aqueles que passaram quase toda a vida obedecendo a uma ditadura decidiram que já era suficiente. O povo desobedeceu aos militares, não ficou em casa, saiu às ruas e impulsionou a revolução, muito além do que os militares do Movimento das Forças Armadas tinham planejado. O 25 de abril foi uma revolução contra uma guerra. Foi uma revolução contra a barbárie e o selvagerismo que estavam matando pessoas em Portugal e os revolucionários independentistas em Angola, Guiné e Moçambique. Para manter essa barbárie, o regime fascista dos anos 20 teve que recorrer a todas as armas da repressão, mantendo gerações inteiras sob controle.
Utilizou o incessante aparato propagandístico do regime, impondo valores racistas, eugenistas e conservadores para justificar a continuação do colonialismo, mesmo após o fim da escravidão e o aumento da demanda do capitalismo global por mais mercados a serem explorados. Anos de guerra minaram a capacidade narrativa e coercitiva do aparato fascista português e a ação do movimento dos Capitães iniciou o que foi o golpe final. O futuro já não estava escrito e o que aconteceu depois não era o plano dos militares nem das forças políticas que afirmavam fazer parte da revolução. Uma vez terminada a guerra, o povo se propôs a conseguir muito mais do que acabar com uma guerra e com um regime que existia para impedi-lo de ser livre. Durante o ano e meio seguinte, na confusão típica que toda revolução traz consigo, o povo português deu um salto de 60 anos na história, avançando mais rápido do que nunca em direção a um futuro melhor. Cair no momento errado para melhorar a vida das pessoas, pois a elite capitalista global estava prestes a lançar o maior assalto à sociedade de sua história, que levou a um mundo ainda mais desigual e às primeiras etapas do colapso ambiental.
A mobilização social contra a guerra acontece hoje em um contexto tão adverso ou mais do que em 1974. A ditadura está dentro de nossas cabeças. A passividade e o respeito, a obediência, o cinismo e a hipocrisia são incutidos incessantemente, e o argumento principal, mesmo dos "herdeiros" da revolução, é que não há condições para avançar, apenas para se manter na defensiva. Quem diria em 1974 que elas existiam? Outras tentativas, como a revolta militar-civil de Beja em 1962, fracassaram em sua tentativa de derrubar o regime. Mas, quem sabe se teria havido uma revolução em 1974 sem a coragem e o martírio de 1962? Ou os anos de resistência dos militantes antifascistas e antibelicistas, assassinados e perseguidos pela ditadura de Salazar? O legado da revolução não pode ser apenas ficar no que foi e reclamar do que é. Uma revolução não é, e nunca pode ser, outra coisa senão o futuro, então há uma contradição em "celebrar" passivamente uma revolução do passado. Em abril de 1974, tudo girava em torno do futuro, as portas do novo estavam abertas, enquanto as âncoras do passado eram levantadas. No entusiasmo e na vontade de avançar, muitas dessas âncoras não foram levantadas. É por isso que hoje pode existir em Portugal um projeto de extrema-direita.
Cinquenta anos depois, na véspera do aniversário da revolução, os Onze de Abril, ativistas climáticos do Climáximo presos por ações dos últimos meses para deter uma guerra declarada por governos e empresas contra toda a sociedade, serão julgados e enfrentam penas de prisão por expor um governo e um regime em guerra, chamando à mobilização. É um sinal político importante, não sobre o passado, mas sobre o futuro.
Como lembraremos de 2024 em 2074? Como o momento em que o impossível voltou a se tornar realidade? Celebrar passivamente a revolução, ou como cantou o autor revolucionário Zé Mário Branco, "sair à rua com um cravo na mão sem percebermos que saímos à rua com um cravo na mão apenas no momento certo", é contribuir para que a revolução não faça parte do futuro.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A revolução portuguesa está velha, não é verdade, filho? Artigo de João Camargo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU