"Esse é o quadro muito complexo enfrentado por aqueles no âmbito da teologia, da fides quaerens intellectum, segundo a antiga definição, ainda não superada, de Anselmo de Aosta, tendem hoje a abordar a delicada questão da variedade das religiões no mundo. O que nos chama a nos conscientizar de um cenário em andamento que se transformou radicalmente em poucos anos", escreve Brunetto Salvarani, teólogo, escritor, professor de Teologia de missão e do diálogo na Faculdade Teológica da Emilia Romagna e nos Institutos de Ciências Religiosas de Modena, Bolonha e Rimini, em artigo publicado por Rocca, n. 08, 11-04-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
“A virada histórica do pluralismo”, escreveu Alberto Cozzi, “significa uma fragmentação do humano em muitas histórias diferentes e irredutíveis uma à outra. É impossível unificar essa rica pluralidade no âmbito de um único ponto de vista, sesmo sendo aquele da fé”. É evidente, de fato, que a notável aceleração do processo de pluralização das referências religiosas, na Itália e na Europa, está colocando em jogo a necessidade de rever, de parte das diferentes religiões, as respectivas autocompreensões: uma operação, na realidade, nada simples, que exige paciência, coragem e parrésia. Como negar que, diante da presença de outras religiões, o cristão, enquanto se questiona sobre sua própria identidade, percebe cada vez mais que as perguntas vindas do universo das religiões desafiam a compreensão que o cristianismo tem de si mesmo? Claro, se o ateísmo pôde ser o horizonte segundo o qual a teologia da segunda metade do século XX reinterpretava as grandes verdades da fé cristã, o pluralismo religioso tende cada vez mais a tornar-se o horizonte da teologia do século XXI. Essas são dinâmicas turbulentas, complexas e exigentes. Com o encontro das tradições religiosas da humanidade que agora – como gostava de destacar Raimon Panikkar – se tornou atual para o cristianismo e ao mesmo tempo, inevitável, importante, urgente, confuso, arriscado e purificador.
Esse é o quadro muito complexo enfrentado por aqueles no âmbito da teologia, da fides quaerens intellectum, segundo a antiga definição, ainda não superada, de Anselmo de Aosta, tendem hoje a abordar a delicada questão da variedade das religiões no mundo. O que nos chama a nos conscientizar de um cenário em andamento que se transformou radicalmente em poucos anos.
Os padres conciliares, de fato, que votaram a declaração Nostra aetate em 28 de outubro de 1965, tinham como referência o imaginário do clássico cuius regio eius et religio, com o qual a Paz de Augsburgo (1555), e depois aquela da Vestfália (1648), haviam se iludido ao pensar que poderiam pôr fim às guerras entre católicos e luteranos no velho continente. Em outras palavras: salvo exceções bem conhecidas (Estados Unidos, estudos de caso clássicos), eles compartilhavam a ideia de que cada nação do mundo tivesse uma religião definitivamente prevalecente sobre as outras; enquanto o pluralismo religioso representava uma condição excêntrica em relação àquela regra. As décadas seguintes foram numa direção completamente diferente, e não só tornando definitivamente obsoleta a resposta tradicional segundo a qual extra Ecclesiam nulla salus, mas também semeando algumas dúvidas sobre a própria resposta conciliar (ou pelo menos, contribuindo para que se sinta como aguda a necessidade de superá-la, na linha de um caráter absoluto da mediação de Jesus Cristo em função da salvação).
Foi aqui que havia escolhido se aprofundar na sua inesgotável investigação o teólogo jesuíta belga Jacques Dupuis, falecido há vinte anos e considerado por muitos o maior teólogo do diálogo inter-religioso do século XX. Nascido em 1923, homem gentil de extraordinária competência sobre as tradições espirituais oriental (principalmente hinduísmo e budismo, visto que se estabeleceu na Índia por mais de trinta anos), ele se propôs a identificar um caminho convincente entre as duas linhas estabelecidas a esse respeito no pós-concílio: a linha inclusivista (segundo a qual as religiões são as vias salvíficas subordinadas a Cristo); e aquela pluralista (para a qual as religiões são vias salvíficas equivalentes). Numa tentativa de abrir uma passagem entre inclusivismo e pluralismo, Dupuis percebeu que, enquanto o inclusivismo tem o sabor de uma anexação das outras religiões ao cristianismo, o pluralismo corre o risco de comportar uma relativização da identidade cristã... A ele cabe o mérito de ter assumido o ônus de abrir uma série de caminhos agora sob escrutínio por uma teologia já definitivamente mundial: qual é o papel e o sentido da mediação salvífica única e universal de Cristo?
Se devem ser reiteradas, do ponto de vista cristão, a singularidade e a plenitude da revelação de Deus em Jesus Cristo, qual é o significado da função salvífica das religiões? Dupuis sabia que seus escritos teriam levantado alguns questionamentos, mas acreditava por outro lado que não poderia mais ser adiada a tentativa de resolver as novas questões em conformidade com a profissão de fé cristã. Depois do Vaticano II, juntamente com a consciência de ter entrado numa época global também para a Igreja, estava convencido que o carisma inaciano do Deus semper maior tivesse tudo para ser posto à prova num mundo em constante busca do Absoluto.
“Se eu tivesse dito, acreditado ou quisesse dizer tudo o que me atribuem, seria realmente um herege. Mas não fiz isso”. Essa é a autodefesa que ele pronunciou diversas vezes diante da investigação iniciado por volta de 2000 pela Congregação para a Doutrina da Fé (CDF, antigo Santo Ofício), então presidida pelo Cardeal Joseph Ratzinger, futuro Papa Bento XVI, e à relativa Notificação sobre algumas teses de seu livro Verso una teologia cristiana del pluralismo religioso (Queriniana 1997). Dupuis teria morrido aos oitenta e um anos, em 28 de dezembro de 2004, em Roma, em decorrência de uma queda no refeitório daquela Universidade Gregoriana onde havia por tanto tempo ensinado Cristologia, obtendo consensos unânimes entre os estudantes.
As críticas da CDF propiciaram nele o surgimento de uma forte depressão, apesar de suas repetidas tentativas de explicar o sentido autêntico da sua elaboração. Caberá a um livro lançado em 2014 pela Emi com um título chamativo (Por que não sou herege), promovido pelo amigo de longa data, além de discípulo e curador editorial, William R. Burrows, a tarefa de recolher materiais preciosos sobre a obra pioneira de Dupuis e sobre o processo canônico que este último teve que sofrer, mas também dois longos textos do próprio teólogo sobre todo o episódio (incluindo um exame da declaração doutrinária de 2000 Dominus Iesus, redigida pela CDF, que, embora não citando o seu nome, segundo os comentaristas foi elaborado especificamente para contestar a sua visão da relação entre Jesus e as religiões). Burrows argumentava que a ideia do livro tinha nascido nele para dar a Dupuis a oportunidade póstuma de responder aos seus críticos na forma como lhe foi negada durante a sua vida.
Eis então a documentação direta de um passagem crucial da teologia pós-conciliar, que de fato reabriu o caso Dupuis num momento da história da Igreja em que pareceria que – graças também à influência do Papa que veio quase do fim do mundo, dotados de uma abordagem menos teórica e mais pragmática das teologias contextual, como demonstra entre outras coisas a reabilitação de Gustavo Gutierrez e da sua Teologia da libertação – finalmente chegou o momento de olhar para os problemas levantados pelo pluralismo religioso numa perspectiva mais aberta e menos preocupada em ficar na fronteira.
Pode-se perceber a visão de um homem de fé segura, capaz de ficar na fronteira, que pagou um preço muito alto pelo seu trabalho intelectual: um vasto período de vida passado na Índia, trinta e seis anos, até não poder evitar a pergunta sobre o que as outras religiões têm a ver com a mensagem de salvação trazida ao mundo por Jesus. E acreditar que tenha sido acima de tudo o medo do pluralismo religioso e do relativismo que pressionaram aqueles que o editor de Perché non sono eretico define como os cuidadores romanos da fé que erguem barricadas a respeito (mas, “o medo é mau conselheiro", costumava afirmar Dupuis).
Afinal, o teólogo belga escrevia principalmente para explicar a razão subjacente ao seu empenho: o seu objetivo era simplesmente “propor alguns caminhos de reflexão dos quais pudesse resultar um salto qualitativo da teologia cristã e católicas das religiões, no sentido de uma avaliação teológica mais positiva das mesmas e de uma atitude mais aberta aos seus seguidores". Com dois resultados, que para ele estão ligados: por um lado, o compartilhamento da exigência de que os cristãos se unam a pessoas de outras crenças para aliviar os sofrimentos do planeta e aprofundar a questão do diálogo; por outro lado, o fato de tal diálogo ser destinado, seja qual for a avaliação, a ter um impacto profundo na autocompreensão e na prática cristã na época do cristianismo global.
Dupuis deu prova da primazia desse diálogo em vários escritos e no seu ensinamento, invocando um salto qualitativo que “permita superar as atitudes negativas e muitas vezes ofensivas em relação às outras religiões que caracterizaram o passado, que surgiram de avaliações muitas vezes injustas e difamatórias que foram feitas". Um salto qualitativo que, ignorado naqueles anos, aparece hoje encorajado pelo Papa Francisco e caracterizador do seu magistério, como demonstra amplamente o documento de Abu Dhabi de 2019 sobre a Fraternidade Humana em prol da paz mundial e a convivência comum. Temas delicados, claro, mas também incontornáveis para uma Igreja que pretenda dar testemunho pleno do Evangelho do seu Senhor perante a humanidade contemporânea.
O título de um livro póstumo que reúne outros escritos inéditos de Dupuis traduz perfeitamente o lugar preciso onde deve se colocar quem teve o privilégio de um trabalho intelectual: Alle frontiere del dialogo (Nas fronteiras do diálogo, em tradução livre, Emi 2018). Nessas fronteiras, sem medo e consciente dos perigos, mas também das novas oportunidades, Jacques Dupuis espera por nós e espera pela sua Igreja.