26 Março 2024
O artigo é de Michael P. Moore, doutor em teologia e professor da Universidade Católica de Córdoba, Argentina, publicado por Religión Digital, 25-03-2024.
Resumindo, eu poderia dizer que há cerca de 50 anos participo das celebrações da Semana Santa. Com mais ou menos consciência, piedade, monotonia, obrigação, fervor, convicção. Depende. De muitas coisas. Porque tanto experimentar quanto expressar a vida de fé — se não está morta —, muda em "matéria e forma". Gosto de dizer que a fé se conjuga no gerúndio: vamos acreditando... e desacreditando. Mas, assim como no último Natal, nestes dias fui surpreendido, insolente e insistente, pela pergunta: o que significa, hoje, este tempo litúrgico para mim? O que vou celebrar?
Foto: Belinsky | Religión Digital
Tenho a sensação — embora, como sabemos, os sentidos possam enganar — de que diluímos bastante o potencial "subversivo e subjugante" que a sã memória desses acontecimentos contém (J.I. González Faus). Porque, em última análise, trata-se nada mais, nada menos, do que rememorar e comemorar a vida e a morte de Alguém importante — único — para que confronte, ilumine, sustente e sacuda nossas próprias vidas e mortes. Caso contrário, se reduzirá, mais um ano, a assistir a espetáculos litúrgicos de gosto estético duvidoso e de menor impacto ético.
A vida é drama. É tensão. É agonia. Desenrola-se "entre": entre muitos "entres". Se a vida fosse uma paleta de cores, diria que predomina um cinza claro. E depois, pinceladas de diversas tonalidades. Algumas com cores muito brilhantes e, outras, opacas ou neutras. No meio deste drama que vivo, há homens e mulheres que ainda me entusiasmam; entre esses, o que mais, este Homem. Aqui estão alguns traços de seus últimos dias.
Foto: Belinsky | Religión Digital
O Homem — bom, justo — entrou há alguns dias nesta cidade símbolo do poder que é Jerusalém. Com pessoas religiosas que têm muito poder e pouca autoridade. O Homem bom, ao contrário, aparece revestido de misteriosa autoridade (exousía) e bastante impotência diante desses prepotentes. Apenas ostenta sua boa notícia, seu evangelho "como faca afiada" (Pedro Casaldáliga); uma faca que fere mas não mata, que desperta para que possa nascer vida nova. Ele é recebido com entusiasmo... que dura até que as expectativas sejam frustradas.
O Homem chegou entre hierático e abatido. Cansado da viagem e cansado das fechaduras. Mas decidido. Rodeado por um punhado de próximos cujas discussões, enquanto vinham no caminho, desnudavam — mais uma vez — suas ambições e incompreensões: nunca entenderam nada ou sempre entenderam pouco.
Urge pensar no presente e imaginar o futuro, porque a morte espreita. Percebe-se no ar mais do que uma simples ameaça. A mesa compartilhada é um bom lugar para discernir. E tenta dizer com gestos reafirmativos o que foi sua vida e o que será sua morte: uma entrega gratuita e até o fim. É preciso dividir e redividir. Mas eles e elas não veem: não podem ou não querem... Talvez porque o próprio vinho tinha um gosto diferente e o pão parecia mais ázimo do que nunca naquela (última) refeição.
Foto: Belinsky | Religión Digital
Depois do jantar com sabor a testamento e cheiro de traição, é preciso se retirar um pouco. Mas no jardim não encontra apenas o silêncio, mas também a solidão. O Homem sozinho com sua solidão. Estão, mas sem estar, seu Pai e seus irmãos. Aquele parece calar; estes preferem dormir (ou fechar os olhos diante da realidade). Silêncio e escuridão. Gemidos. Balbuceios. Rosto na terra, dura e seca.
A angústia dá lugar à traição que avança, sibilina. E, mais uma vez, mostrando sua desinteligência, alguns que querem se defender da violência com mais violência. E o Homem pensa consigo mesmo e se repete, murmurando: "só o evangelho como uma faca afiada". Essa é a Sua verdade. Aquela que tentará, em vão, oferecer mais uma vez diante de juízes sem justiça, prepotentes e ambiciosos. "E mais nada". Enquanto alguns lavam as mãos, outros as sujam com sangue inocente. Alguns se escondem. Outros saem e choram... mas antes que as lágrimas sequem, também se escondem. Todos pusilânimes.
E o Homem fica novamente sozinho. Sozinho com sua verdade, mas para quê?
Foto: Belinsky | Religión Digital
Uma coisa — imagino — é vislumbrar a morte e outra é senti-la nas mãos e nos pés. Os pregos não mentem. E agora? Virá algum deus, alguma legião de anjos ou de militantes insurretos para despregá-lo? O corpo vivo dói, mas mais doem as ilusões mortas. Torturada a carne e torturadas as esperanças. Entre o céu e a terra agora está o inferno, pendurado. Elevado para o alto, não atrai ninguém para si. Mais ainda: afasta todos.
A realidade é demais, parecem pensar muitos.
O silêncio só é quebrado pelo barulho dos martelos e pelo zumbido das moscas. E por algum grito distante. Uma execução em massa onde são mortos, indiscriminadamente, inocentes e culpados. Tudo é escuro. Com a escuridão do sem sentido: densa e negra.
O Homem que sussurrou no jardim agora grita no Gólgota para quem? Para quê? A boca seca e a sensação de fracasso. O fracasso é indigesto e o vinagre não ajuda.
Os indecentes do espetáculo das vidas alheias passeiam e os entediados que cumprem mecanicamente seu trabalho. Ao longe, tentando entrever através das chagas abertas, talvez alguém ainda se atreva a buscar alguma resposta.
Na última agonia, um fio tênue de confiança o sustenta e sussurra — quase inaudível — que seu Pai terá a última palavra. Inclinando a cabeça, o Homem entrega o que resta: seu vazio e sua angústia esperançosa. E, então, somente então, morre para Ele sem Ele.
Depois, quando tudo está consumado, alguém parece reconhecer o Homem... que agora quase não é mais homem. Homem de dores. O divino no não divino. O deiforme no deformado.
Quando ocorre a dispersão dos curiosos e dos trabalhadores da morte, após o espetáculo das execuções, só paira no ar uma firme convicção: mais uma vez, o mal triunfou na história.
Foto: Belinsky | Religión Digital
É sábado e não resta nada. Ou, melhor dizendo: resta o nada. Nem mesmo o cadáver ensanguentado permanece para contemplar, esperando, o milagre. Não há mais choros nem gritos, súplicas nem zombarias. Apenas ausências. Não há carne, não há espírito? O que há, o que resta quando só restam lápides? Ontem, tudo era negro. Hoje, tudo é frio. Como as pedras que cobrem a morte.
As únicas palavras que ressoam diabolicamente no ar são aquelas que ontem o Tentador havia atirado ao Homem crucificado: "esse não era o caminho".
Talvez seja hora de virar a página e esperar novos messias. A maioria se esconde novamente. Mas sempre há alguém, algum marginalizado, alguma mulher que mantém certa esperança. Que continua esperando enquanto continua procurando: "onde o colocaram?"
Foto: Belinsky | Religión Digital
E então, em um domingo, das garras da morte surge a Vida: o Homem desumanizado foi glorificado. Tornou-se plenamente Homem. Seu Pai o resgatou da escuridão para abraçá-lo eternamente. O Mistério da Vida triunfa sobre o mistério da morte. O Vencido é o Vivente. Alguns, agora sim, começam a acreditar.
Derramam seu Espírito para impulsionar a história. A história que está em nossas mãos. Do alto, e de baixo, convidam a apressar ressurreições no meio de tantas crucificações.
E o Espírito do Homem nos lembra do único dogma: apenas o Amor é onipotente, mas não prepotente. O Reino está chegando, continua chegando. Devagar. Em silêncio.
A vida, a morte e a ressurreição de Jesus de Nazaré, o Homem, o Filho do Homem e o Filho de Deus, nos são oferecidas para contemplação mais uma vez. Para ler nosso presente, nosso passado e, acima de tudo, pensar em nosso futuro. Toda história é permeada de Páscoa, de passos, de grandes mortes e pequenas ressurreições.
Entre o domingo de Ramos e o domingo da Ressurreição somos convidados a pensar o que é o triunfo, como chega, o que significa que Deus tem apenas a última palavra... e a primeira, a da criação. Porque as palavras do enquanto isso, as palavras penúltimas da(s) história(s), foram-nos delegadas.
"O que vou celebrar?", eu me perguntava no início destas reflexões. Vou celebrar que Jesus, o Homem, também viveu nossas vidas e morreu nossas mortes. Por isso, seu Deus e meu Deus, seu Pai e meu Pai, me parecem críveis. Vou celebrar que teve que aprender a ser Homem, a ser Filho e a ser Irmão, no meio de choros, súplicas, tentações e apostas. Vou celebrar que se animou a construir Reino e desmascarar antirreinos, embora isso lhe custasse a vida e o pagasse com a solidão.
Vou celebrar que, embora não pudesse se salvar, salvou outros, e assim nos ensinou que só nos salvamos salvando. Vou celebrar que, diante de tanta violência e prepotência repetida, diante de tanta sonolência entediada, diante de tanta corrupção viralizada, diante de tanta traição racionalmente argumentada, diante de tanta desilusão justificada, diante de tanta morte prematura não reclamada, diante de tanta fragilidade e pecado de ontem e de hoje, ainda me seduz a proposta desse Homem. E porque acredito que, embora a teologia ainda não me alcance para explicitá-lo, o Mistério último de tudo o que chamamos Deus, na carne de Jesus Cristo, experimentou e fez seus, de alguma forma, todos esses "entres" nos quais a biografia de Jesus foi escrita e, hoje, se tensiona a minha. E por isso me entende e me sustenta.
El camino de la fe (Foto: Divulgação)
"E mais nada".
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Semana Santa, há algo a celebrar? Artigo de Michael P. Moore - Instituto Humanitas Unisinos - IHU