01 Março 2024
Reconhecer a validade de alguns pontos dessa cultura contemporânea “espiritualizante” implica algumas conversões na forma como olhamos para as vozes católicas não conformistas, incluindo, por exemplo, alguns seminaristas e padres mais jovens. Mas a academia teológica católica nem sempre está aberta a dar voz e/ou ouvir aqueles que expressam tal “diversidade”.
O comentário é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos Estados Unidos. O artigo foi publicado em La Croix Internacional, 29-02-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Nos últimos 11 anos, ficou claro que os Estados Unidos são a capital da oposição organizada ao Papa Francisco. Há uma oposição institucional que procura manter o status quo institucional, uma oposição teológica que resiste à “sinodalidade”, a mais nova fase da recepção do Concílio Vaticano II (1962-1965), e uma oposição política que vê muito claramente a tentativa do papa de desalinhar o catolicismo em relação às várias versões da visão de mundo “America first”.
Mas os Estados Unidos são um país grande, com um cenário religioso e espiritual efervescente. Tudo aqui tende a ser interpretado em uma divisão bipartidária e quase metafísica de tudo – “liberais versus conservadores”. O país, dividido entre visões contrastantes sobre o que significa ser “estadunidense”, está passando por uma crise de identidade. Esse é um fenômeno cultural que a Igreja Católica e o Vaticano precisam levar a sério.
Tara Isabella Burton, uma ensaísta com doutorado em Teologia pela Universidade de Oxford, publicou um artigo muito interessante no ano passado na The New Atlantis, no qual discute a ascensão de uma “subcultura online fluida conhecida como pós-racionalistas”. O artigo é intitulado “Magia Racional. Por que uma cultura do Vale do Silício que já foi obcecada pela razão está se tornando espiritual” [woo]. Ela examina uma nova subcultura online que emergiu na última década em vários quadrantes – online, mídias sociais e mundo virtual – onde agora se congregam muitos estadunidenses e norte-americanos influentes e com fome espiritual.
Um dos lugares mais importantes para se olhar, a fim de entender o que está surgindo a partir das nossas telas, diante dos nossos olhos e nos nossos cérebros, é o Vale do Silício. As pessoas que vivem e trabalham lá, ou com as quais estão ligadas, têm um imenso poder de influenciar a nossa cultura de muitos modos diferentes. Burton diz que há uma nova elite que concluiu que “o foco tecnocrático da cultura da racionalidade na melhoria da condição humana por meio de objetivos hiperutilitaristas” emergiu “às custas de levar a sério os elementos menos quantificáveis de uma vida humana bem vivida”. Ela ressalta que isso já estava ficando claro na última década. “No fim dos anos 2010, o panorama racionalista começou a mudar, tornando-se cada vez mais aberto à investigação, senão necessariamente das reivindicações de verdade da espiritualidade, da religião e do ritual, pelo menos de alguns de seus efeitos benéficos”, escreve Burton.
Seu artigo não aborda diretamente o catolicismo, exceto por esta passagem perturbadora:
Há a ascensão daquilo que se poderia chamar de neojunguianismo popular: figuras como Jordan Peterson, que apontam para o poder do mito, do ritual e de uma relação com o sagrado como um veículo para combater a alienação pós-moderna – muitas vezes em uma aliança desconfortável com cristãos tradicionalistas (um artigo inteiro poderia ser escrito sobre a estreita relação intelectual de Peterson com o bispo católico romano Robert Barron). Há a versão em código progressista que você pode encontrar no TikTok, onde bruxaria, ativismo, limpeza a base de ervas e ‘manifestações’ coexistem em um miasma de vibrações. Há a versão abertamente fascista à espreita nas margens da Nova Direita, em que nacionalistas de sangue e solo, paleofisiculturistas, tradicionalistas leitores de Julius Evola como Steve Bannon e podcasters sedevacantistas católicos fazem causa comum na defesa do renascimento dos costumes de um passado místico e machista, para injetar mais vida no esclerosado mundo moderno.
O que transparece a partir da cultura on-line é uma fase de desencantamento com a fé progressista na tecnologia e com as promessas feitas pelos novos mestres do universo desde que a tecnologia computacional e a internet mudaram as nossas vidas. É assim que Burton a descreve:
O otimismo alegre e distintamente liberal da cultura racionalista que define grande parte da ideologia do Vale do Silício – que pessoas inteligentes, usando as ferramentas epistêmicas certas, podem pensar melhor e salvar o mundo ao fazê-lo – está cedendo espaço não ao pessimismo exatamente, mas a uma espécie de tecnoapocaliticismo. Deparamo-nos com os limites – políticos, culturais e sociais – do nosso progresso civilizacional; e algo mais novo, mais estranho [weird], talvez até um pouco mais empolgante, tem de tomar seu lugar. Parte do que perdemos – um sentimento de admiração, digamos, ou o transcendente – deve ser restaurado.
Essa desilusão particular com a tecnocracia e o racionalismo, e sua abertura ao transcendente, não é um regresso ao cristianismo tradicional. Burton diz que é também uma recusa a um secularismo ingênuo que “não é menos cheio de dogmas não examinados, tingidos de falta de seriedade moral e intelectual”.
O que Tara Isabella Burton escreve aqui é extremamente importante, não apenas para os Estados Unidos e seus católicos, mas também para o Papa Francisco e a Cúria Romana. Isso é especialmente verdade ao se lidar com questões sensíveis, como a cultura da atual geração de jovens padres e seminaristas, o movimento pela “reforma da reforma litúrgica” e a chamada “missa tradicional em latim”.
Na verdade, existem focos de um sentimento anti-Vaticano II sem remorso, enriquecido com sectarismo e vibrações neognósticas que podem ser encontrados na direita católica tecnoapocalíptica. Como eu já escrevi no início de 2010, o que está em jogo são questões eclesiológicas sobre as quais o ensinamento da Igreja deve ser firme.
Ao lidar com a mensagem central do Vaticano II, nenhuma negociação é possível. Nos Estados Unidos, contudo, o movimento para perpetuar a chamada “missa tradicional em latim” é uma rejeição ao Vaticano II. Também está ligado ao libertarianismo, uma atitude cultural chave, presente em grande parte dos Estados Unidos, incluindo suas porções religiosas. Os proponentes da missa antiga, de fato, veem o Vaticano II e o papa atual como parte de um tecnopoder que está oprimindo a genuína busca religiosa deles.
Essa atitude se assemelha àquela que moldou o tradicionalismo de Marcel Lefebvre, mas não é exatamente a mesma. É por isso que é um movimento que continuará clandestino e, ao mesmo tempo, será hospedado em salas próximas às pessoas que estão no poder dos Estados Unidos.
Mas há também uma fome pós-racionalista pelo estranho que não é exatamente a mesma que a nostalgia pelas “rendas e incensos” do passado sobreidealizado que a maioria dos nossos contemporâneos nunca conheceu. É algo que a Igreja institucional luta para discernir e distinguir.
De um lado, está a “versão abertamente fascista”, impulsionada por provocadores como o arcebispo Carlo Maria Viganò e o tradicionalista católico convertido Taylor Marshall. De outro, estão aqueles que abraçam uma “esquisitice legítima” para a qual deve haver espaço na tenda ampliada de uma Igreja sinodal. Esse desencanto pós-racionalista com a modernidade secular e o reencantamento com o transcendente é mais um fascínio à la Werner Herzog pelo selvagem e pelo estranho, pelo numinoso e pelo primitivo. Tem menos a ver com a visão heresiológica do cristianismo à la cardeal Gerhard Müller.
É também muito diferente do tecno-otimismo de alguns teólogos católicos pós-eclesiais e trans-humanistas. Eles não estão apenas nos Estados Unidos. Se você quiser entender o sucesso da virada pós-racionalista, basta olhar para o sucesso da editora italiana Adelphi Edizioni e os títulos de seus livros sobre religião (um deles, de uma coleção de ensaios esotéricos da falecida Cristina Campo, foi recentemente traduzido para o inglês).
Sem dúvida, a teologia católica também está lidando com essa nova subcultura, talvez até mais do que a Igreja institucional. A linguagem da teologia acadêmica é profundamente moldada (senão até dominada) pelas ciências sociais e por uma abordagem dos estudos religiosos. Ela é menos erudita em filosofia e história. Assim, tornou-se difícil captar os instintos saudáveis e até mesmo as profundas intuições teológicas inconscientes que provêm dessas vozes aparentemente marginais, mas influentes.
A atitude que esse pós-racionalismo traça – um realismo ligado à referência ao transcendente – leva em conta a experiência e reconhece (na linguagem de Tomás de Aquino) que a graça aperfeiçoa a natureza. É uma crítica útil e séria à objetivação/quantificação generalizada da experiência cotidiana.
Ela também converge não apenas com a forte crítica do Papa Francisco ao paradigma tecnocrático, mas também com a teologia do Vaticano II, tanto em suas versões de ressourcement quanto de aggiornamento e especialmente em sua interação com a teoria crítica.
O fato é que, para aqueles que não conhecem as diferentes faces da vitalidade da tradição católica, esses pós-racionalistas espirituais e estranhos parecem candidatos naturais para se qualificarem como tradicionalistas – diferentes e opostos a uma ideia dinâmica, mas derivada do Iluminismo, de tradição. Mas essa seria uma resposta simplista.
Reconhecer a validade de alguns pontos dessa cultura contemporânea “espiritualizante” implica algumas conversões na forma como olhamos para as vozes católicas não conformistas, incluindo, por exemplo, alguns seminaristas e padres mais jovens. Mas a academia teológica católica nem sempre está aberta a dar voz e/ou ouvir aqueles que expressam tal “diversidade”.
A Igreja precisa ser mais espaçosa em sua cultura teológica, em suas expressões vividas e em sua vida litúrgica. Essa amplitude não deve ser, como muitas vezes se diz no jargão acadêmico, “menos católica”. Mas exatamente o oposto. Deveria ser mais católica.
Uma certa paixão pelo estranho e pelo espiritual no catolicismo nunca foi e nunca será a preferência de todos. Mas reconhecer que também há espaço na tenda para esses católicos pode ser o primeiro e o mais necessário passo para enfrentar a polarização na Igreja.
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Existe espaço para o “espiritual e o estranho” no catolicismo contemporâneo? Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU