Não é seu bispo ordinário. Dom Robert Barron, “Word on Fire” e o ministério pastoral nos dias de hoje. Artigo de Massimo Faggioli

Dom Robert Barron. (Foto: Reprodução | Word on Fire Catholic Ministries)

08 Junho 2022

 

“Muitos chegaram à fé pelo ministério midiático de dom Robert Barron, e sou sinceramente grato por isso. Neste ponto, é difícil imaginar como reorientar esse enorme ecossistema de mídia social católica de centro-direita. É o admirável mundo novo do catolicismo online. Mas também devemos nos perguntar a que custo para o sentido da Igreja Católica esse sucesso aconteceu. Devemos ser honestos em reconhecer os potenciais efeitos prejudiciais que esse tipo de evangelização empresarial está tendo no modelo de ministério, particularmente no ministério dos bispos”, escreve o historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, Filadélfia, EUA, em artigo publicado por La Croix International, 07-06-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

 

Eis o artigo.

 

Dom Robert Barron, um dos mais proeminentes prelados da Igreja Católica nos EUA, foi recentemente promovido de bispo-auxiliar da Arquidiocese de Los Angeles para ordinário da Diocese de Winona-Rochester, no Minnesota.

 

Mas essa não é uma promoção comum.

 

Dom Barron é o fundador do “Word on Fire Catholic Ministries” (“Ministério Católico: a Palavra em chamas” em tradução livre), um serviço pastoral multimídia, baseado em Illinois, criado em 2000. Ele o chama de “orgulho e alegria”.

 

Na véspera do anuncia da nomeação de Barron para Winona-Rochester, que foi dia 02 de junho, o National Catholic Reporter havia publicado uma longa e minuciosa reportagem investigativa sobre o peculiar ambiente de trabalho do “Word on Fire” (disponível, em inglês, neste link).

 

Deixando de lado por um momento os problemas sobre a cultura dentro da organização, a promoção de dom Barron é interessante porque deixa uma questão real: qual é o modelo de bispo na Igreja Católica de hoje?

 

Essa é uma questão importante para uma Igreja que professa que “a missão divina para pregar o Evangelho em todo lugar foi confiada por Cristo aos apóstolos” (Lumen Gentium, 19-20), e para a Igreja Católica os bispos são os sucessores dos apóstolos.

 

Bispos obrigados a permanecerem em suas dioceses

 

Em teoria, o modelo de ministério episcopal remete à tradição antigo da Igreja nos primeiros séculos. Desde então, este modelo recebeu uma robusta reestruturação teológica e jurídica no Concílio de Trento (1545-1563) e foi atualizado novamente no Concílio Vaticano II (1962-65).

 

Uma das decisões mais fundamentais de Trento foi contra o muito negligenciado dever de residência dos bispos.

 

O famoso decreto Tridentino tornou obrigatório para os bispos residirem em suas dioceses, e não gastarem todo ou a maior parte do seu tempo em Roma ou em algum outro local (Concílio de Trento, sessão XXIII, 15 de julho de 1563, cânon 1 de reformatione).

 

O Vaticano II confirmou a exigência de residência, mas também deu mais detalhe sobre a exigência para os bispos serem parte e se envolverem no cotidiano do seu povo. Isso ficou muito claro nos debates liderados pelo decreto conciliar Christus Dominus:

 

Para poderem atender melhor ao bem dos fiéis, segundo a condição de cada um, procurem conhecer-lhes bem as necessidades, dentro das circunstâncias sociais em que vivem” (CD, 16).

 

Nessa mesma seção o decreto também diz que os bispos deveriam ser particularmente próximos aos padres de suas dioceses:

 

Abracem sempre com especial caridade os sacerdotes, que compartilham das suas funções e solicitude, e tão zelosamente satisfazem esses deveres com o trabalho de cada dia, considerando-os como filhos e amigos, e, portanto, mostrando-se prontos a ouvi-los e tratando-os com confiança, procurem dar nova vida a toda a atividade pastoral da diocese inteira”.

 

Tecnologia e um novo modelo de bispo

 

Na prática, a aplicação deste modelo deve variar significativamente e o caso de dom Barron apresenta-nos a um modelo diferente de bispo.

 

Ele é o diretor do Comitê sobre Leigos, Matrimônio, Família e Juventude da Conferência Episcopal dos EUA. Ele acabou com isso.

 

No ano fiscal iniciado em 1º de julho de 2019, a Word on Fire reportou 9,2 milhões de dólares em receita, 3,6 milhões em gastos operacionais e 28 funcionários empregados. A organização cresceu tanto desde então, que na reunião ampliada da companhia de outubro de 2021 participaram 58 funcionários.

 

No seu programa de televisão, Barron frequentemente convida intelectuais provocativos, que servem a sua agenda contra o ativismo social e a justiça social católica.

 

A tecnologia mudou a maneira como os bispos católicos – pelo menos alguns deles – fazem seu trabalho. Um deles é o avião, que modificou a vida de alguns bispos de maneiras que Trento jamais poderia imaginar.

 

Isso permite que alguns deles visitem com mais frequência as comunidades em suas imensas dioceses.

 

Em outros casos, criou o que o Papa Francisco chamou de “bispos de aeroporto”.

 

São bispos diocesanos que passam muito tempo viajando para reuniões, conferências e outros tipos de compromissos mais ou menos relacionados ao seu ministério pastoral, mas ainda mais relacionados à promoção de sua carreira eclesiástica (aliás, há um abuso semelhante em outro tipo de hierarquia – a universidade – onde professores e administradores eminentes raramente veem alunos de graduação, tornando isso o “problema” dos professores auxiliares sobrecarregados e mal pagos).

 

Um Fulton Sheen da atualidade?

 

Outra inovação é a internet, que permitiu novas formas de ministério, pelas quais alguns bispos demonstraram interesse e habilidades, de diferentes maneiras.

 

Além de Barron, existem tipos ainda mais problemáticos de presença episcopal nas mídias sociais. Pensa-se imediatamente em dom Joseph Strickland, de Tyler (Texas), e em outros que emergiram como autoproclamados defensores da fé católica.

 

Mas há algo mais. É importante entender um fenômeno como Robert Barron porque as novas tecnologias interagem com a situação do sentido da unidade da Igreja hoje e o desenvolvimento do que pode ser chamado de “catolicismo de marca” (“branding Catholicism”).

 

Muitos veem o nativo de Chicago, de 62 anos, como uma versão atualizada de Fulton Sheen, o bispo estadunidense que se tornou uma estrela por sua pregação e especialmente por seu trabalho na televisão e no rádio dos anos 1930 aos 1970.

 

Isso certamente é verdade: Robert Barron é o Fulton Sheen com a internet, em uma era que é tanto pós-cristã quanto pós-secular. Mas Barron também é representativo das tendências modernas no sentido vivido da Igreja hoje – infelizmente também entre alguns bispos.

 

Sheen nunca fundou seu próprio movimento, como Barron afirma ter feito.

 

E Sheen nunca arriscou transformar seu ministério de mídia em uma Igreja paralela.

 

O fato de Barron promover celebridades controversas como, por exemplo, Jordan Peterson, trai, na minha opinião, um extremismo e um sentimento de desespero sobre as chances de evangelizar hoje.

 

Sua compreensão da teologia do Vaticano II é muito idiossincrática. Ele é impermeável a uma ampla hermenêutica dos documentos – todos eles, não apenas as constituições. E é menos do que generoso para o outro lado do espectro teológico.

 

Uma ideia sacramental e de presença real do ministério na Igreja

 

Muitos chegaram à fé pelo ministério midiático de Barron, e sou sinceramente grato por isso.

 

Neste ponto, é difícil imaginar como reorientar esse enorme ecossistema de mídia social católica de centro-direita. É o admirável mundo novo do catolicismo online.

 

Mas também devemos nos perguntar a que custo para o sentido da Igreja Católica esse sucesso aconteceu.

 

Devemos ser honestos em reconhecer os potenciais efeitos prejudiciais que esse tipo de evangelização empresarial está tendo no modelo de ministério, particularmente no ministério dos bispos.

 

Word on Fire” é um modelo de ministério católico muito estadunidense, mas tem alcance global, e também sabemos que tudo o que os EUA produzem tende a ser exportado, mesmo na Igreja.

 

Quando Trento decidiu impor o dever de residência aos bispos em sua diocese, o fez para enfrentar o problema da corrupção, mas também na fidelidade a uma ideia sacramental e de presença real do ministério na Igreja.

 

Durante os meses mais trágicos da pandemia de covid-19, os católicos de mentalidade tradicionalista estavam ansiosos para alertar sobre o perigo de celebrações paralitúrgicas caseiras em vez de ir à missa.

 

Algo semelhante deve ser dito para a substituição do ministério presencial pelo ministério de vídeo online, com vídeos cuidadosamente maquiados (com muito merchandising ao lado).

 

Word on Fire” é um exemplo da contradição flagrante neste tipo de neo-apologética católica exuberante: os “pensantes da tradição” também são impulsionados pelo ecossistema de mídia social que eles nutriram, se emocionam e até mesmo investem – em certo sentido, suas próprias celebrações paralitúrgicas digitais em andamento.

 

“Passamos de ministérios ‘paraeclesiásticos’ para ‘parabispos’”, tuitou o escritor católico David Gibson no dia da nomeação de Barron para Winona-Rochester.

 

Isso está certo e é um passo à frente no que alguns bispos alertaram em 1987 na assembleia do Sínodo sobre os Leigos: os novos movimentos católicos, centrados em um fundador carismático, como potencialmente “igrejas paralelas”.

 

Conflito de compromissos e conflito de interesses

 

O ministério online certamente faz parte do presente e do futuro da Igreja Católica. Mas ser bispo (ou padre) e exercer um ministério com um enorme alcance global de seguidores através da internet apresenta problemas importantes.

 

Um é um conflito de compromissos (alocação de tempo e energia), e o outro é o possível conflito de interesses (a compatibilidade entre o bem da sua empresa e o bem da Igreja, servir ao local que deve servir também à Igreja Universal, mas de uma maneira diferente).

 

Para não falar sobre os diferentes estilos e ethos de falar pessoalmente para um público real e falar através da mídia.

 

É o problema que o teólogo católico norte-americano Anthony Godzieba chamou de “imediatismo digital” e o descolamento desencarnado e destemporalizado do ensinamento da Igreja de seu desenvolvimento histórico e contextual.

 

Fundamentalmente, o problema é se um ministério de mídia de massa e mídia social do tamanho do “Word on Fire” é compatível com ser o bispo de uma diocese.

 

Em outras palavras, é coerente com a tradição católica do ministério pastoral? Muitas vezes, os propagandistas de uma visão ossificada da tradição católica simplesmente não conhecem a tradição, ou sabem que é conveniente ignorá-la.

 

Uma das imagens tradicionais para a relação entre um bispo e sua diocese é a conjugal: um bispo é “casado” com sua Igreja local. Esta imagem foi evocada por teólogos e clérigos muitas vezes ao longo da história, inclusive no Concílio Vaticano II.

 

Às vezes isso é usado para criticar o sistema carreirista que torna possível – de fato, bastante normal – que os bispos comecem como auxiliares em grandes dioceses, tornem-se bispos de pequenas dioceses e depois, com o tempo, “subam” para dioceses maiores. Quantas vezes vemos bispos deixando sua primeira diocese/esposa por uma maior, mais rica ou mais prestigiosa.

 

“Catolicismo de marca” baseado no carisma de um bispo midiático

 

O “Word on Fire” é diferente e ainda mais impermeável ao conceito de que um bispo deve ter uma relação monogâmica com sua diocese (podem me chamar de “tradicionalista”, mas eu ainda acredito nisso).

 

Durante a conferência de imprensa de 2 de junho em Rochester, dom Barron afirmou que “Word on Fire” era seu “orgulho e alegria”, e geralmente ocupava “cerca de 10% do meu tempo”. Ele insistiu que “não há ambiguidade” sobre seu papel principal, o de ser o bispo da diocese.

 

Apesar das melhores e mais sinceras intenções de dom Barron, a situação é mais complicada do que isso. Já em meados do século XX, era complicado para Fulton Sheen – que era bispo naquela outra Rochester (Nova York) – equilibrar seu papel de celebridade internacional com seus deveres episcopais e sua relação com o cardeal Francis Spellman de Nova York, seu arcebispo metropolitano.

 

Vivemos agora em um ecossistema de mídia totalmente diferente que tornou as coisas ainda mais complicadas – e esse ecossistema fez da intuição de Barron um sucesso em termos de audiência.

 

Word on Fire” muitas vezes faz Barron parecer um falante partidário semelhante a Raymond Arroyo da EWTN, em vez de um clérigo tradicional como Fulton Sheen.

 

O papel do “Word on Fire” na Igreja hoje enquadra a discussão sobre o modelo de ministério pastoral dos bispos católicos em uma perspectiva diferente.

 

A questão estava bastante adormecida enquanto Barron era bispo auxiliar de Los Angeles. Mas desde sua promoção a ordinário, tornou-se menos adormecido.

 

Quer se goste ou não da mensagem espiritual e teológica elaborada e comercializada por “Word on Fire”, e não importa o que se pense da hipermasculinidade exibida lá, a operação fundada e liderada por Robert Barron criou um idiossincrático carisma autocentrado e muitas vezes uma “marca” de enfrentamento.

 

Não é exatamente um exemplo do bispo como princípio visível e fundamento da unidade na Igreja Católica.

 

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