27 Novembro 2014
Os esforços que os bispos italianos e norte-americanos estão fazendo (ou não) para se ajustarem à mensagem do Papa Francisco por uma Igreja mais aberta e misericordiosa nos dizem que a questão não é meramente ideológica. Ela não está sujeita a um simples quadro de conservadores versus liberais. Ao contrário, trata-se de uma reinicialização de alguns parâmetros invisíveis e não declarados da relação entre o papado e a Igreja inteira.
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor de história do cristianismo da University of St. Thomas, em Minnesota, nos EUA. O artigo foi publicado no sítio Global Pulse Magazine, 25-11-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O Papa Francisco definitivamente definiu um novo tom para a Igreja. Mas, quando se trata dos bispos do mundo, ainda não está claro se isso foi música para os seus ouvidos.
É difícil ter um bom senso de uma reação abrangente através das palavras e das ações de milhares de bispos individuais. Mas uma olhada nas Conferências Episcopais nacionais pode oferecer uma forma sugestiva para capturar a complexa relação que está se configurando entre o papa em Roma e o resto da hierarquia.
As Conferências Episcopais nacionais são emblemáticas do impulso do Concílio Vaticano II para a descentralização da Igreja, e as suas responsabilidades cresceram consideravelmente nos primeiros anos depois do Vaticano II. Mesmo que João Paulo II e Bento XVI tenham se movido no sentido de recentralizar toda a autoridade em Roma, eles não tiraram das conferências todos os direitos e prerrogativas que elas ganharam no primeiro período pós-conciliar. Elas ainda gozam de um perfil mais elevado do que as suas incipientes antecessoras antes do Concílio, que o Vaticano via como uma ameaça para a perpetuação do primado papal absoluto.
É instrutivo olhar para como as conferências nacionais estão respondendo à agitada reunião do Sínodo dos bispos, que ocorreu no mês passado em Roma. Um número delas realizou grandes reuniões depois da "assembleia extraordinária" do Sínodo sobre a família, mas as deliberações de suas delas em particular se destacam.
A Conferência Episcopal Italiana (CEI) e a Conferência Episcopal dos Estados Unidos (USCCB) oferecem uma indicação de algumas tendências importantes na redefinição do primado papal em relação à Igreja mundial com o Papa Francisco. Essas reações têm a ver com a autorrepresentação dessas Igrejas nacionais na sua relação com o papa em Roma e com todo o restante em seu meio.
A conferência italiana ainda está abalada pela mudança de paradigma que Francisco provocou com grande clareza desde o início do seu pontificado, que procura dar aos bispos uma liberdade e uma responsabilidade que eles nunca tiveram antes.
Até poucos meses atrás, essa dinâmica era inimaginável para os bispos da Itália. Na mentalidade católica do país, o Vaticano foi um grande escudo para proteger a Igreja na esfera secular, mas também impediu que a Igreja na Itália amadurecesse plenamente. Até Francisco, não havia nenhuma "Igreja Católica italiana" propriamente dita; ao contrário, cada Igreja local (ou diocese) e o seu bispo estavam submetidos diretamente ao papa e à Cúria Romana. Isso porque João Paulo II e Bento XVI nomeavam pessoalmente o presidente e o secretário da CEI, efetivamente tornando-os delegados especiais do papado.
A maior parte desse período foi marcado pela hegemonia do cardeal Camillo Ruini, que atuou como secretário da conferência (1986-1991) e depois como presidente (1991-2007). O antigo cardeal de 83 anos também foi o vigário de Roma por muito tempo (1991-2008) e continua sendo o mais importante guerreiro cultural da Itália no período pós-Vaticano II.
Bento XVI escolheu o atual presidente da CEI, cardeal Angelo Bagnasco, de Gênova. Ele está se transformando em uma espécie de figura de transição, porque o Papa Francisco decidiu que o sucessor de Bagnasco não será um nomeado papal, mas será eleito diretamente pelos bispos (sujeito à confirmação do papa). Pela primeira vez na história, os bispos da Itália serão responsáveis por escolher o seu próprio líder, graças a uma mudança nos estatutos da CEI que o papa exigiu, mas que muitos bispos não queriam.
Francisco, na verdade, teve que empurrar os bispos italianos para aceitarem o dom da liberdade da nomeação papal. Isso desencadeou um período de transição na Igreja italiana, em que sinais de vitalidade estão começando a surgir entre os bispos, alguns dos quais desempenharam papéis importantes no Sínodo recente.
O mais proeminente entre eles é o bispo Bruno Forte, 65 anos, um teólogo bem-visto e o principal autor do controverso relatório intermediário do Sínodo (Relatio post disceptationem). Embora seja um dos mais entusiásticos apoiadores do papa jesuíta, ele fracassou na sua tentativa de se tornar vice-presidente da CEI na mais recente assembleia geral da conferência. Por uma grande porcentagem, os bispos elegeram em seu lugar o bispo Mario Meini, 68 anos, uma figura relativamente obscura que lidera a pequena diocese de Fiesole, na Toscana.
A sua eleição é um sinal de que os bispos italianos estão lutando para seguir Francisco. Os católicos italianos nunca estiveram tão entusiasmados com um papa desde João XXIII, mas parece que os seus bispos não compartilham esse entusiasmo. Os hierarcas entendem que, com Francisco, os italianos estão perdendo a sua supremacia na Cúria Romana. E ele está desafiando-os a ajudar a Igreja italiana a finalmente se tornar "adulta".
A Conferência dos Bispos dos Estados Unidos também está passando por um período de transição. A USCCB, até agora, não conseguiu adotar uma nova postura diante do Vaticano de Francisco, que enviou alguns poucos sinais, mas inequivocamente claros, para a Igreja dos EUA de que as coisas estão mudando.
O mais evidente foi a nomeação por parte do papa do arcebispo Blase Cupich, 65 anos, para suceder o cardeal aposentado Francis George, em Chicago. Com a sua recém-anunciada visita à Filadélfia no próximo mês de setembro, o "papa da mudança" está indo para os EUA, mas muitos bispos dos EUA aparentemente estão confusos em relação a toda a agenda do pontificado.
Isso ficou claro na recente assembleia da USCCB em Baltimore, quando os bispos elegeram homens que representam um status quo mais conservador para serem os seus delegados na segunda rodada do próximo ano do Sínodo sobre a família.
O cardeal George pontuou a sensação de mal-estar com o papa em uma dura entrevista de saída, dizendo que ele não entendia o que Francisco está prestes a fazer. O problema não é apenas o desacordo sobre a agenda do papa argentino para a Igreja e sobre a atitude mais inclusiva que ele adotou para discutir questões controversas.
Há também uma mudança epocal nas relações entre Roma e a Igreja dos EUA que ocorreu na esteira do Concílio Vaticano II. No período compreendido entre os séculos XIX e XX, o catolicismo norte-americano foi moldado por uma mentalidade ultramontana entre muitos na hierarquia. O papa – não importasse quem fosse ou o que dissesse – era um ponto inquestionável de referência para a identidade católica coletiva dos EUA.
Depois do Concílio Vaticano II, a Igreja de Roma tornou-se mais confiante da Igreja dos EUA, e os seus bispos ganharam uma grande voz no Vaticano, tornando-se influente como nunca antes com João Paulo II e Bento XVI. Em certo sentido, as duas últimas gerações de católicos se acostumaram com papas amigos dos EUA, especialmente João Paulo II e Bento XVI.
Anticomunismo e valores inegociáveis cimentaram essa aliança. Os católicos norte-americanos formados com a teologia de Wojtyla e de Ratzinger tornaram-se silenciosa mas claramente confortáveis com a ideia de um "excepcionalismo católico norte-americano" específico, a nova fronteira do catolicismo em oposição a um catolicismo europeu que condenava a si mesmo a aceitar a cultura secular.
Mas agora está claro que o papa argentino não acredita que a Igreja dos EUA seja particularmente excepcional, seja historicamente, seja teologicamente. A Guerra Fria acabou, assim como a guerra cultural – ao menos para Francisco.
O instinto em alguns setores norte-americanos nesses últimos meses de alertar sobre um possível cisma chega à beira de queimar pontes com o Vaticano de Francisco e de declarar silenciosamente uma espécie de independência teológica. Há um paradoxo interessante aqui.
O catolicismo neoconservador dos EUA é teológica e politicamente antifrancês, mas o seu senso de excepcionalismo teológico é o mais próximo possível de uma edição do século XXI do moderno galicanismo francês. É uma declaração de supremacia de um catolicismo nacional em relação ao papa.
Os esforços que os bispos italianos e norte-americanos estão fazendo (ou não) para se ajustarem à mensagem do Papa Francisco por uma Igreja mais aberta e misericordiosa nos dizem que a questão não é meramente ideológica. Ela não está sujeita a um simples quadro conservadores versus liberais. Ao contrário, trata-se de uma reinicialização de alguns parâmetros invisíveis e não declarados da relação entre o papado e a Igreja inteira.
A eleição de um papa não europeu está causando uma redefinição das narrativas católicas nacionais. Diferentes tradições e culturas católicas nacionais ainda são elementos importantes da Igreja Católica global. Faz sentido que Jorge Mario Bergoglio, um descendente de imigrantes italianos, esteja redefinindo as identidades longamente negociadas e complexas dos católicos na Itália e nos EUA em relação ao Vaticano.
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Papel dos bispos italianos e estadunidenses é redefinido na era Francisco. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU