22 Fevereiro 2024
"O contraste melódico só é perceptível no refrão, que dá destaque ao Filho do Homem com sua palavra vivificadora, fazendo reviver tudo aquilo que está morto, e levantar seus ossos. Só ele, com sua palavra, é capaz de fazer isso. Nesse sentido a letra poética prevista para o tempo da Quaresma reforça o sentido de que o tempo é de ficar sempre olhando para a ressurreição, na sua perspectiva, e que não se deve estacionar no túmulo e na morte".
O comentário é de Ismael Oliveira do Nascimento, estudante de Psicologia na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas, em Belo Horizonte, em artigo enviado ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Sob o título de “Imensa Planície”, a versão do capítulo 37 de Ezequiel, de letra e música do saudoso padre Reginaldo Veloso, está na classe dos cânticos bíblicos no Ofício Divino das Comunidades, subsídio litúrgico já difundido entre nós. O Ofício acontece na vida, no dia a dia, no ritmo das horas, do tempo, do momento vivido e celebrado pela comunidade. Nas festas, nas alegrias, mas também nas angústias e sofrimentos, o Ofício Divino das Comunidades assume caráter memorial e celebrativo, nos colocando em atitude orante, mistagógica e profunda. Na Oração do Amanhecer, os cânticos bíblicos do Antigo Testamento podem ser incluídos no roteiro da celebração e entoados após os salmos. O mesmo pode acontecer no Ofício do Entardecer/Anoitecer, incluindo os cânticos do Novo Testamento. Por ser uma rápida introdução, não darei conta de aprofundar o ODC neste brevíssimo relato, que tem como foco o cântico bíblico acima lembrado.
Antes de tudo, o cântico “Imensa Planície” fez/faz parte do primeiro LP (aquele disco fabricado em vinil) do padre Reginaldo Veloso, nos idos anos de 1979. “Canto do chão” – Tempo de mudar – gravado pela COMEP, da editora Paulinas, reúne 11 faixas, entre as quais está a versão musicada de Ezequiel 37, primeiramente com a intenção de apresentar o cântico nordestino nas suas diversas possibilidades musicais, mas posteriormente assumindo lugar na oração, como lembramos acima, pois trata-se de um cântico bíblico da Liturgia das Horas/Ofício Divino das Comunidades. Podemos tomar o caminho de análise literária e musical a partir dos seguintes pontos: texto bíblico, letra/poema e música e o sentido na celebração. Primeiro, uma contextualização no livro de Ezequiel.
“A mão do Senhor estava sobre mim e por seu espírito ele me levou para fora e me deixou no meio de uma planície cheia de ossos e me fez andar no meio deles em todas as direções. Havia muitíssimos ossos na planície e estavam ressequidos. Ele me perguntou: ‘Filho do homem, será que estes ossos podem voltar à vida?’. E eu respondi: ‘Senhor Deus, só tu o sabes’. E ele me disse: ‘Profetiza sobre estes ossos e dize: Ossos ressequidos, escutai a palavra do Senhor! Assim diz o Senhor Deus a estes ossos: Eu mesmo vou fazer entrar um espírito em vós e voltareis à vida. Porei nervos em vós, farei crescer carne e estenderei a pele por cima. Porei em vós um espírito, para que possais voltar à vida. Assim sabereis que eu sou o Senhor’. Profetizei como me foi ordenado. Enquanto eu profetizava, ouviu-se primeiro um rumor, e logo um estrondo, quando os ossos se aproximaram uns dos outros. Olhei e vi nervos e carne crescendo sobre os ossos e, por cima, a pele que se estendia. Mas não tinham nenhum sopro de vida. Ele me disse: ‘Profetiza para o espírito, profetiza, filho do homem! Dirás ao espírito: Assim diz o Senhor Deus: Vem dos quatro ventos, ó espírito, vem soprar sobre estes mortos, para que eles possam voltar à vida’. Profetizei como me foi ordenado, e o espírito entrou neles. Eles voltaram à vida e puseram-se de pé: era uma imensa multidão! Então ele me disse: ‘Filho do homem, estes ossos são toda a casa de Israel. É isto que eles dizem: ‘Nossos ossos estão secos, nossa esperança acabou, estamos perdidos!’ Por isso, profetiza e dize-lhes: Assim fala o Senhor Deus: Ó meu povo, vou abrir as vossas sepulturas e conduzir-vos para a terra de Israel; e quando eu abrir as vossas sepulturas e vos fizer sair delas, sabereis que eu sou o Senhor. Porei em vós o meu espírito, para que vivais e vos colocarei em vossa terra. Então sabereis que eu, o Senhor, digo e faço – oráculo do Senhor” (cf. Ez 37,1-14, grifo nosso).
O profeta de Deus, Ezequiel, está junto com o povo no exílio. É um verdadeiro castigo. Diante do sofrimento, o povo age como quem não tem apego à promessa do Senhor-Deus. Remediando essa situação, o Senhor-Deus intervém, dando a ela um sinal de vida, de coisa nova, de ressurreição. Desde o capítulo 36, o profeta já anuncia ao povo a restauração que o Senhor-Deus fará, agindo no perdão e na transformação. O profeta diz que a ação do Senhor-Deus dará ao povo um novo coração, agora de carne, passível de sentimentos, de amor, de fidelidade, sugerindo a aliança do desse povo com seu Deus (cf. Ez 36,28b). A imagem das ossadas ressequidas, sem vida, sem anima, é a sugestão para a ação de Deus: frente à morte, ao que não se pode mais reanimar ou trazer à vida, Deus fala e age, renovando e vivificando os ossos mortos. No lugar da desesperança, da frieza plena e do total desprezo, o sopro vital, o Espírito da Vida, reentra e transforma. Os ossos se juntam, agora com vida, e saem dos túmulos, antes morada, agora passado. Podem sair, à vida voltaram. Os ossos sem vida, como os corações de pedra do capítulo 36, são o povo de Israel insensível. Mas o Senhor-Deus, solidário e disponível, devolve a vida.
Eis a letra, acompanhada do texto bíblico do Novo Testamento e do encaminhamento do canto no Ofício Divino das Comunidades:
“Jesus gritou bem forte: ‘Lázaro, sai para fora!’ O morto saiu” (Jo 11,43).
Convoquemos o Espírito para libertar e restaurar a vida do povo de Deus. Que este canto nos anime na esperança.
1. Imensa planície,
Juncada de ossos,
Coberta de mortos,
Sem vida e calor!
Ó, filho do Homem,
Profere a Palavra
Que vem do Senhor! (Bis)
2. Os ossos 'stão secos,
É morta a esperança,
Perdida tua herança,
Escuta o clamor!
3. O sopro da vida
Reentre nos ossos,
Levantem-se os mortos,
Que a vida voltou!
4. O Espírito meu
Em vós eu porei,
Dos túmulos saireis,
Que a vida voltou!
O que Reginaldo Veloso propôs foi uma letra com quatro estrofes constituídas por quatro versos de cinco pés, acentuados no 2º e no 5º pés, que são as sílabas que sustentam o verso, garantindo a cadência, possibilitando um canto regular. O mesmo acontece com refrão. A música compreende duas escalas: uma natural e outra grega (Dórico). A tonalidade da gravação no disco “Canto do Chão – Tempo de mudar” é Lá menor. Foi uma tonalidade mais confortável para a gravação das vozes. Embora no HL da CNBB – Ciclo da Páscoa, p. 127, esteja em Dó# menor. A melodia é descendente de dois em dois versos. No 4º verso retorna-se sua tônica. O refrão começa de forma ascendente remetendo-se ao Filho do Homem, movimento de subida, ou que está no céu. A mudança de plano da melodia se dá no Fá# quando passa pelo verbo "proferir", e, a partir daí fazendo um leve movimento descendente: a "palavra que vem do Senhor", provocando o repouso melódico desejado, tendo como ponto de chegada a tônica. As ideias descendentes provocadas pela melodia encontram sua razão de ser sempre nas expressões do plano terreno: "planície juncada de ossos" (2º verso, 1ª estrofe); "sem vida e calor" (4º verso, 1ª estrofe), remetendo-se a ideias de morte, chão e humanidade sem vida. Na 2ª estrofe a expressão "clamor" também remete a esse plano como se quisesse afirmar "clamor que vem do chão". O mesmo acontece nas estrofes 3 e 4 com as expressões: "Levantem-se os mortos" e "dos túmulos saireis". Reparemos que a letra poética faz uma espécie de movimento de subida, embora as melodias tendam a descer, sempre. O contraste melódico só é perceptível no refrão, que dá destaque ao Filho do Homem com sua palavra vivificadora, fazendo reviver tudo aquilo que está morto, e levantar seus ossos. Só ele, com sua palavra é capaz de fazer isso. Nesse sentido a letra poética prevista para o tempo da Quaresma reforça o sentido de que o tempo é de ficar sempre olhando para a ressurreição, na sua perspectiva, e que não se deve estacionar no túmulo e na morte. Só a palavra do Filho do Homem é capaz de tornar-nos todos seres ressuscitados. As características próprias da música foram gentilmente apresentadas pelo músico, membro da Equipe de Reflexão da Música Litúrgica da CNBB, Eurivaldo Silva Ferreira.
O canto litúrgico, conforme orientação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, através da assessoria para a Música Litúrgica, deve ter primazia da letra, a qual deve conter a mesma quantidade de sílabas e acentos, isto é, uma métrica correta. Além de sua estrutura, a letra deve ser poética, orante, sem explicações, evitando moralismos. Que seja fundamentada na Sagrada Escritura, centrada no Cristo. Quanto à música, que ela cante o que propõe a letra, favorecendo a espiritualidade que emerge do texto cantado; que tenha um cunho brasileiro, baseada nas características próprias dos ritmos do Brasil. O critério que avalio ser o mais significativo é que a música seja popular, acessível, que dignifique o que é mais genuíno e natural do nosso jeito de ser.
Assim sendo, extraído do texto bíblico de Ezequiel 37, carta “Imensa Planície”, conforme disse o autor, é cantar o clamor que se faz na confiança, na coragem e no combate, no serviço à vida e no esperançar da Terra Prometida, do Mundo Novo, da Nova Cidade, constituída por homens e mulheres novas, pessoas libertas, dignificadas, sem fome, solidárias, fraternas, que já sentem o novo rompendo no horizonte. O(a) cantor(a) é o(a) responsável por "dar esta ordem" ao Filho do Homem", apropriando-se por sua voz do texto bíblico, assim ele motiva a assembleia a cantar junto, mostrando-se sempre predisposta a ouvir a palavra que levanta os mortos e os ossos sem vida. Na celebração, o canto “Imensa Planície” pode ser reservado para a Imposição das Cinzas, na Quarta-Feira de Cinzas. É uma excelente sugestão para o canto de Comunhão do 5º Domingo da Quaresma – Ano A – quando ouvimos o relato da ressurreição de Lázaro, na atitude espiritual que nos provoca a passar da morte à vida, de condições menos humanas para condições mais humanas, da fome à fartura.
CNBB. Hinário Litúrgico. 2º Fascículo, p. 53. São Paulo: Paulus, 2002.
OFÍCIO DIVINO DAS COMUNIDADES. 3. ed, 2018. São Paulo: Paulus.
OFÍCIO DIVINO DAS COMUNIDADES. I. Salmos e Cânticos Bíblicos., p. 233. São Paulo: Paulus, 2018.
A tradução do texto bíblico citado foi extraída do Lecionário Semanal, editora Paulus.
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“Imensa Planície”, de Reginaldo Veloso: um cântico bíblico para provocar nossa caminhada quaresmal. Artigo de Ismael Oliveira do Nascimento - Instituto Humanitas Unisinos - IHU